Soldados Claudemir Alves e Ricardo da Mota estavam com dois homens que denunciam que sofreram golpe; um deles se passou por delegado para capturar empresário em Atibaia (SP), segundo a Polícia Civil. Os cinco estão presos
O Ministério Público Estadual (MPE) denunciou os policiais militares Claudemir Bomfim Alves, 37, e Ricardo Botelho da Mota, 29, e os empresários Felipe de Souza Torresi e Felipe Alves de Jesus, ambos de 26, por tentativa de homicídio qualificado por motivo fútil contra o empresário Eneas de Lima Tomaz, 35. Felipe Torresi ainda foi acusado por falsa identidade ao se passar por delegado de polícia no momento da prisão, ocorrida em 7 de agosto na cidade paulista de Atibaia, interior de São Paulo.
Os quatro foram presos em flagrante ao terem perseguido Eneas Tomaz, que, até aquela data, estava foragido por conta de um mandado de prisão aberto em outubro de 2020 decorrente de um processo de pirâmide financeira pelo qual responde no Tribunal de Justiça.
Os dois Felipes alegaram que haviam sofrido um golpe do empresário ao terem realizado investimento em criptomoedas com a promessa de retorno financeiro que não teria acontecido. Segundo o boletim de ocorrência, Torresi afirmou que ficou sabendo que Eneas estava hospedado em um hotel em Atibaia por causa de uma postagem que ele fez no Instagram. Alves de Jesus se hospedou no local. Naquele dia, Torresi e os dois PMs foram ao hotel alegando que um hóspede era procurado da Justiça. Funcionários estranharam a alegação e acionaram os policiais militares rodoviários Rangel Gomes e Alessandro Rizzardi que foram informados que os ocupantes de um Toyota estavam fazendo disparos contra uma BMW.
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Eneas teria percebido que estava sendo fotografado e monitorado e saiu do estabelecimento em uma BMW blindada. O grupo passou a persegui-lo: Torresi, Claudemir e Ricardo em um Toyota, enquanto Alves de Jesus estava em um Ônix branco, ainda de acordo com a Polícia Civil.
Os PMs relataram que avistaram a BMW próximo à Rodovia D. Pedro I, para dentro de uma propriedade rural, da qual desceu Eneas dizendo que estavam tentando matá-lo e que estavam armados, apontando para um homem que se aproximava, que seria Claudemir, que estava à paisana e portava uma pistola .40, de uso exclusivo das forças de segurança pública. Segundo os policiais rodoviários, a arma estava quente, sinal de que tinha sido usada recentemente. O empresário confirmou que tinha um mandado de prisão aberto com ele por crime financeiro e que não se feriu porque o veículo que dirigia é blindado..
Em seguida, chegou Felipe de Souza Torresi, que teria se identificado como delegado de polícia. Os policiais disseram que, ao solicitarem a carteira funcional de identificação, Torresi apresentou uma carteira de “delegado federal dos direitos humanos”, que tentava interceder e dizia que estava investigando o caso. O soldado Ricardo Botelho da Mota, que também se aproximou, foi detido com uma pistola Glock da corporação e um revólver particular, assim como outro homem, Felipe Alves de Jesus.
Em depoimento à polícia, Torresi alegou sofreu um golpe de Eneas, tendo perdido R$ 400 mil, e que avisou a um escrivão do 47º DP (Capão Redondo) que havia tido informações sobre o paradeiro do empresário. Ele afirma que se dirigiu a Atibaia, onde o amigo Alves de Jesus, que também teria perdido R$ 15 mil no golpe, estava hospedado, para confirmar se de fato era o empresário. Declarou que chegou a fazer um boletim de ocorrência naquela delegacia porque teria sofrido ameaças de morte por Eneas. Também disse que pediu a presença do sargento e do soldado por “questão de segurança” porque Eneas andaria armado. Ao chegarem no hotel, Eneas e o irmão teriam saído em dois carros e Torresi foi atrás com o Toyota. Torresi afirma que Eneas bateu com a BMW no seu carro pelo menos duas vezes quando tentou se aproximar e que enviou a localização para Alves de Jesus e os dois PMs que seguiram num Ônix. Ele negou que tenha se apresentado como delegado de polícia.
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Já os PMs Claudemir e Ricardo informaram que apenas acompanharam Torresi quando chegaram ao hotel. Depois, ele sozinho teria saído com o Toyota atrás de Eneas. A dupla foi com Alves de Jesus no Ônix em seguida porque Torresi enviou a localização e disse que Eneas teria tentado matá-lo ao jogar a BMW contra ele. Os PMs alegaram que dispararam para se salvarem porque a BMW também tentou atropelá-los. Os quatro negam que tinham a intenção de matar o empresário. A BMW tinha ao menos 20 disparos, segundo o delegado Sebastião Alves de Oliveira.
Em audiência de custódia, o juiz Lucas Pereira Moraes Garcia, da Vara de Plantão de Bragança Paulista, decretou a prisão preventiva (sem prazo determinado) dos quatro, em 9 de agosto, por entender que eles traziam risco à ordem pública e que o crime de tentativa de homicídio é grave.
Na denúncia, a 5ª Promotoria de Justiça de Atibaia sustenta que os dois Felipes agiram por vingança e que Claudemir e Ricardo tentaram “dar ares de legitimidade a suas ações” ao relatarem sobre o mandado de prisão contra Eneas. “Entretanto, tal ordem deve ser cumprida por autoridade competente, Claudemir e Ricardo estavam à paisana e bastaria aos denunciados ter acionado a polícia de Atibaia, com a informação sobre a localização de Eneas, para tanto”, argumentou a promotora Fabiana Kondic Alves Lima Gomes.
Pirâmide financeira
Em outubro de 2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu a denúncia e o pedido de prisão preventiva da 5ª Promotoria de Barueri contra Eneas e outros três homens acusados de crimes contra a economia popular, induzir o consumidor ou usuário a erro e organização criminosa. Ao menos 10 pessoas, incluindo Felipe Torresi, denunciaram à delegacia da cidade que Eneas e outro empresário se apresentavam, em fevereiro de 2019, como sócios de uma empresa denominada Arbcrypto, que seria especializada em investimentos e captação de recursos de operações com criptomoedas a qual geraria, por meio do site, uma conta bancária em dólar para o investidor em um “escritório virtual”. A promessa, segundo eles, seria de uma rentabilidade de até 2,5% e os recursos deveriam ser depositados em contas bancárias da empresa Rickinvest.
Além disso, denunciam que eram ofertados prêmios, como carros, que nunca eram entregues, caso os clientes convidassem novas pessoas para participar. Um dos empresários acusados seria responsável pela transação. Desde agosto daquele ano, as vítimas afirmam que não receberam os valores prometidos e que tinham indícios de ser um esquema de pirâmide financeira, um esquema fraudulento em que a pessoa paga uma taxa e tem que convidar novas pessoas para participar a fim de obter ganhos.
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À Polícia Civil, um desenvolvedor da plataforma do site da empresa disse que foram cadastradas 50 mil pessoas, com faturamento superior a 10 milhões de dólares. A Justiça também determinou o bloqueio de bens e quebra de sigilo bancário dos acusados. O processo segue em segredo de justiça.
Eneas e outro empresário também respondem a processo por situação parecida na Comarca de Ribeirão Preto.
O que dizem as defesas
A reportagem tentou contato com os advogados Heraclito Antonio Mossin, Paulo Martins Cason e Julio Cesar de Oliveira Guimarães Mossin, que aparecem como representantes de Eneas em pedidos de habeas corpus, por telefone disponível no cadastro da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e e-mail do escritório de advocacia que atuam, mas não teve resposta.
Procuramos os advogados Renato Soares e Mauro Ribas, que representam os PMs Claudemir e Ricardo. À Ponte, Renato disse que Claudemir é amigo de Felipe Torresi e que ele pediu para acompanhá-lo porque teria medo de Eneas, tendo o soldado ido junto. “Eles não foram cumprir nenhum mandado de prisão. Apenas disseram aos funcionários que ali estava uma pessoa que tinha um mandado de prisão”, disse.
Sobre os disparos contra o veículo de Eneas, sustentou que os policiais agiram em legítima defesa porque ele teria jogado a BMW contra a dupla.
Já o advogado Arthur Migliari Junior, que faz a defesa de Felipe Torresi e Felipe Alves de Jesus, sustenta que as prisões dos seus clientes são “absurdas” e que não estão sendo tratados como as vítimas que são por causa do golpe de Eneas. Questionado, disse não saber que tipo de relação os dois têm com os policiais militares. Também alegou que os acusados estavam auxiliando as forças de segurança em prender um foragido da Justiça. Perguntado sobre os PMs estarem à paisana e os dois Felipes não serem policiais para cumprir mandado e que a descaracterização causou estranheza aos funcionários do hotel, respondeu: “mas isso não justifica nem os policiais rodoviários prenderem os policiais que estavam CUMPRINDO COM SUAS OBRIGAÇÕES LEGAIS e muuito (sic) menos os meninos, Felipes! Então se você sabe que o Lula tem um mandado de prisão e você o vê no hotel, você não pode prender”.
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Indagado sobre os advogados dos PMs terem negado que Claudemir e Ricardo foram cumprir mandado, Migliari rebateu: “E você acredita em Papai Noel??? Coelhinho da Páscoa??? Mula Sem Cabeça??? Já viu Saci Pererê??? Boto cor-de-rosa que engravida mulheres??? Eu nunca vi, mas ‘disseram'”.
Na petição que encaminhou à reportagem, Migliari argumentou que Eneas, além de foragido, estaria em estado permanente de flagrância pelos seus crimes e que isso daria aval para qualquer cidadão prender, já que em casos flagranciais, qualquer pessoa pode realizar uma prisão.
Quem pode cumprir um mandado de prisão?
O artigo 288 do Código de Processo Penal (CPP) prevê que nenhuma pessoa será levada à prisão sem a exibição de um mandado judicial. Essa premissa apenas não vale em casos de crimes em flagrante, quando a Polícia Militar pode efetuar a prisão sem um mandado judicial. Em uma situação de flagrância, qualquer cidadão também tem o chamado “poder de polícia” para imobilizar alguém que esteja cometendo crime e acionar a PM. A pessoa deve ser levada a uma delegacia de polícia onde o(a) delegado(a) vai analisar se de fato foi cometido um crime e se foi em flagrante.
O pedido de prisão pode ser feito pela Polícia Civil ou Ministério Público. Quem autoriza é o Tribunal de Justiça. O artigo 289 do CPP prevê que “qualquer agente policial poderá efetuar a prisão determinada no mandado de prisão registrado no Conselho Nacional de Justiça, ainda que fora da competência territorial do juiz que o expediu” e que deve comunicar ao juiz sobre a prisão.
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Especialistas consultados pela Ponte disseram que, via de regra, quem cumpre esses mandados é a Polícia Civil. “O que pode acontecer é a Polícia Civil solicitar algum apoio da Polícia Militar para efetuar uma prisão ou o Ministério Público pedir a atuação em uma operação”, disse à reportagem um especialista da PM que pediu para não se identificar. Ele aponta que se um PM em serviço tem alguma informação de um foragido, ele deve comunicar seu superior para averiguar o caso e receber autorização para tomar qualquer decisão. “Um PM fora de serviço não pode cumprir um mandado de prisão”, enfatiza.
Ele também aponta que o caso em questão não parece configurar flagrante porque as partes indicam que tinham conhecimento do mandado de prisão e não visualizaram um crime estar acontecendo.
O advogado criminalista e mestre em Direito pela UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) Theuan Carvalho Gomes explica que cidadão comum não tem poder de polícia para recapturar alguém. “O civil só pode prender alguém em flagrante delito. Não pode ‘prender’ foragido. No máximo, vai poder informar as autoridades onde o tal foragido está”.
A presidente do Sindpesp (Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo) e diretora da Adepol do Brasil (Associação dos Delegados de Polícia do Brasil) Raquel Kobashi Gallinati acrescenta que a PM pode cumprir mandado de prisão em crimes que envolvam policiais militares. “[A corporação] Não possui atribuição constitucional para investigar crime comum, sendo ilegal a atuação da Polícia Militar em diligência de polícia judiciária, por exemplo cumprimento de mandado”, explica.
Além disso, ela afirma que um policial militar não tem a prerrogativa constitucional de polícia judiciária, colocando em risco toda a legalidade do processo. “A prisão não pode ser feita ao arrepio do Estado Democrático de Direito, por isso temos as instituições democráticas para que cada um exerça de forma delimitada a sua atribuição constitucional”, analisa. “Esse tipo de atuação só serve para acirrar a destruição dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana porque se ela fica sujeita a arbitrariedades e ilegalidades de agentes que não são dotados de poderes constitucionais para a sua atuação, a gente fica em uma situação que está sendo paralela, marginalizada ao cumprimento da lei, principalmente quando lidamos com valores tão caros que são a vida e a liberdade.”