Em cinco anos, 77% dos meninos de até 14 anos mortos por intervenção policial no estado de São Paulo eram negros, mostra relatório produzido pela Unicef, Assembleia Legislativa de São Paulo e Governo de SP
No período de 2015 a 2020, a polícia da capital paulista matou quase duas vezes mais crianças e jovens até 19 anos de idade do que a soma dos crimes de homicídio e latrocínio. A letalidade da polícia do governo de João Doria (PSDB) provocou a morte de 46,3% destes jovens, enquanto 26,5% das mortes foram decorrentes de homicídios, latrocínios (roubos seguidos de morte) e lesões corporais.
Jovens das cidades de Guarulhos, Osasco, Santo André, Carapicuíba, Diadema e São Bernardo do Campo também foram mais mortos pela polícia do que os outros crimes.
Além das localidades, a cor da pele também aumenta o risco de morte pela polícia. No estado de São Paulo, nos últimos cinco anos, 57% das meninas mortas por forças policiais entre 15 e 19 anos eram negras; entre os garotos o número ainda é maior: 68%. Até os 14 anos, 77% das vítimas eram negros.
Os índices são de um relatório produzido pelo Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Governo de SP, divulgado nesta terça-feira (23).
Em relação às mortes decorrentes de intervenção policial, as crianças e adolescentes mortas na capital paulista representam 50% das vítimas do estado de São Paulo.
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Somente em 2020, 4 a cada 10 jovens nas idades de 15 a 19 anos foram mortos pela polícia, quando separados por 100 mil habitantes. Foram 5.123 mortes por intervenção policial, 33% delas aconteceram na faixa etária de 20 a 29 anos.
Em menos de uma semana, a Ponte revelou três histórias de jovens mortos pela polícia no estado de São Paulo na primeira quinzena de março de 2021. Os casos de Richard, 16, Caíque Gabriel, 22 e Victor dos Santos, 22 mostram que 2021 já começou marcado pela violência na Grande SP.
Estatísticas como essas refletem a noção de que a vida de pessoas negras e pobres não tem valor no Brasil, diz Marisa Fefferman, articuladora de Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio e pesquisadora do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso). “Esses dados demonstram que existe pena de morte no Brasil e que existe um autor que determina quem deve morrer e quem deve viver. Isso tem a ver com o racismo estrutural, é a lógica onde existe um sujeito suspeito. O sujeito matável”.
Apesar dos altos números, há uma tendência de queda na taxa de crianças e adolescentes mortas pela polícia no estado de SP. Em 2015 foram 253 mortes, já cinco anos depois, em 2020, foram 130. Ainda assim, o relatório aponta que “no período entre janeiro e abril de 2020 há um aumento no número de mortes, que se reverte no segundo semestre”.
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Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembra que as mortes pela polícia continuam ocorrendo, pois muitas delas não são entendidas ou processadas enquanto crimes. “A letalidade policial se ancora na estigmatização e na criminalização da juventude negra periférica, da sua cultura, seus símbolos e dos seus territórios. O policial mata baseado nesses estigmas, usa deles pra se justificar, o delegado acata a narrativa, o promotor do Ministério Público neutraliza judicialmente a narrativa e arquiva o processo. Esse é o caminho percorrido pela maioria dos casos, infelizmente”.
Marisa ainda lembra que os dados não mostram outros tipos de violência. “Esses dados mostram a morte concreta, não mostram a quantidade de tortura e de violações. Isso está ligado com uma violência de Estado referendada por todo o sistema. São vários elementos que vão traduzir uma situação que é insuportável. Jovens, adolescentes sendo mortos e executados pela Polícia Militar”.
Ações pouco efetivas
Em 2020, uma determinação interna da Polícia Militar proibiu o uso da “chave de braço” ou “mata-leão” (golpe de enforcamento) como técnica de imobilização em abordagens, medida que veio depois de sucessivos casos de abuso por parte da polícia. A resolução, entretanto, também foi vista como pouco assertiva por ativistas da área, uma vez que não discute o racismo na corporação.
Já a determinação do governador João Doria (PSDB), divulgada em julho de 2020 de inserir câmeras nas fardas de 3 mil policiais militares não alcança o universo dos 85 mil policiais, conforme mostrado em reportagem da Ponte. O objetivo seria dar transparência às ações policiais e, assim, evitar casos de abuso e violência. Apesar disso, especialistas indicam que existe o risco de as pessoas serem mais criminalizadas do que protegidas.
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Na visão de Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM paulista, mestre em direitos humanos e doutor em psicologia pela Universidade de São Paulo, as medidas tomadas pelo estado de São Paulo não são efetivas para sanar estes casos. “Não há medida efetiva e concreta de controle da letalidade levado a efeito por qualquer ente da federação. O que existem são medidas pontuais e insuficientes. Eu creio que é mais uma oportunidade de marketing, de dar uma ‘desculpa’ para a sociedade, do que uma política efetiva”.
No início de 2021, a Ouvidoria das Polícias de São Paulo lançou um comitê para discutir o racismo nas polícias de São Paulo. A Câmara Técnica, coordenada pelo ouvidor Elizeu Soares Lopes, tem membros da Polícia Civil, da Polícia Militar e acadêmicos.
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Conforme noticiado pela Ponte, desde julho de 2020 pesquisadores, movimentos sociais e familiares de vítimas de SP tentam fazer parte do comitê, e a iniciativa é criticada por não acolher movimentos sociais e antirracistas da periferia, como o Movimento Independente Mães de Maio e a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.
Para Débora Silva, fundadora das Mães de Maio, há um descontrole por parte do governo sobre as forças policiais. “Temos visto o crescimento alarmante das mortes causadas pelos policiais. O governo perdeu o controle sobre a tropa totalmente, quanto mais se denuncia mais morte acontece, quanto mais se cria mecanismo de denúncia contra o tratamento padrão, o efeito é a morte. Nós não somos inimigos da polícia e sim do projeto de extermínio declarado no Brasil”.
Ela ainda lembra que é preciso diálogo com os movimentos sociais. “Exigimos respeito por parte das organizações, queremos estar nas comissões, dentro das instituições para mudar esse projeto de matar e diminuir a fome e a pobreza. Estamos aí sem eira nem beira jogadas as traças, porque eles não matam só os nossos filhos, eles nos matam também. Tanto a Ouvidoria, como o Conselho Nacional dos Direitos Humanos tem a responsabilidade de preservar a vida, que está sendo banalizada”.
Nesse sentido, Dennis, aponta que para mudar essa realidade é necessário investir em controle da atividade policial. “Com atuação menos conivente do Ministério Público e da Polícia Civil. A Ouvidoria também tem um papel importante, de monitoramento que faz diferença quando bem desempenhado. Mais que isso, a disseminação da ideia de que vidas negras, pobres e faveladas importam é fundamental. Enquanto formos entendidos como descartáveis, esse quadro não muda”.
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Marisa lembra que ações como a desmilitarização da Polícia Militar, a organização dos grupos vulneráveis a partir da informação de seus direitos e o afastamento do policial que mata são imprescindíveis para mudar a realidade. “Na Rede partimos do princípio que quando se executa alguém e parece que isso não precisa ser ressignificado, se banaliza essa situação. É justamente nessa perspectiva que consideramos que o afastamento é determinante”.
De acordo com o relatório, entre 2015 e 2020, morreram 21.335 vítimas de homicídio, latrocínio e lesão corporal, 55% dessas pessoas tinham 30 anos ou mais. De 0 a 14 anos, negros são 52% das vítimas de homicídio, latrocínio e lesão corporal. Já dos 15 aos 19 anos passam a ser 88%. Nos cinco anos pesquisados, 504 jovens de até 19 anos foram vítimas de homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte.
Dados da Secretaria da Segurança Pública mostram que as vítimas de homicídios dolosos (com intenção de matar) no estado aumentaram. Foram 3.038 mortos em 2020, contra 2.906 no ano anterior, uma alta de 4,5%. Isso significa que uma pessoa é assassinada em São Paulo a cada três horas. Houve um crescimento de 4,1% nos homicídios, passando de 2.778 para 2.893 ocorrências.
Para o pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre as razões destes crimes estão a Covid-19, que impactou o acesso a renda e, portanto, o fluxo de dinheiro, tanto na economia legal quanto na ilegal. “Isso reverberou mudanças nos modelos de negócios criminais, que tendem a se refletir nesses aumentos de roubos a instituições financeiras e homicídios”, diz Dennis.
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Ele lembra que a taxa de resolução de homicídios pela Polícia Civil ainda é baixa. “Como o modelo de policiamento está focado nas abordagens, nos flagrantes e na repressão ao tráfico de drogas, ainda temos baixa elucidação de homicídios. Ainda que esteja entre os estados com maior taxa de elucidação, São Paulo deu conta de esclarecer, conforme dado mais recente do Instituto Sou da Paz, pouco mais da metade de seus homicídios”.
Por fim, a articuladora da Rede afirma que a discussão sobre segurança pública deve passar por outras pastas. “Essa discussão sobre a morte dos jovens executados pela PM tem que ser pensada com a saúde, com a educação. As pessoas têm que entender e perceber o quanto essa rede de proteção que a sociedade organizada minimiza ou impossibilita que essas coisas se tornem normais. É impossível colocar a cabeça no travesseiro com esses dados que extrapolam qualquer realidade. O Estado matando crianças e adolescentes”, ressalta Marisa.
Outro lado
Procurada pela Ponte, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou em nota que “o compromisso das forças policiais de São Paulo é com a proteção da vida e a segurança da população”.
A pasta afirmou que as ocorrências de morte por intervenção policial envolvendo crianças e adolescentes caíram quase pela metade entre 2015 e 2020 no Estado de São Paulo. “A redução foi de 49%. Paralelamente, o Estado também reduziu taxas de mortalidade para grupo de 100 mil habitantes para os grupos de crianças de 0 a 14 anos e 15 a 19 anos, 0,02 e 4,28, respectivamente. Ambas são menores do que a atual taxa estadual de homicídios dolosos por 100 mil habitantes, que é de 6,49/100 mil habitantes”.
Segundo a secretaria, o confronto não é opção dos policiais, que, ao chegarem às ocorrências, seriam confrontados por criminosos armados e que investem contra eles. “A polícia paulista trabalha para prender e levar à Justiça aqueles que infringem a Lei. Todas as circunstâncias relacionadas às mortes decorrentes de intervenção policial são rigorosamente investigadas pelo Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, pela Polícia Militar, por meio de IPM, com acompanhamento das Corregedorias e do Ministério Público, e relatadas ao Poder Judiciário”.
A nota ainda diz que “quando comprovada qualquer irregularidade, as punições são determinadas de acordo com as leis nacionais e os respectivos códigos disciplinares das instituições. Somente em 2020, 197 policiais civis, militares e técnico-científicos foram demitidos ou expulsos”.
A SSP não respondeu quais medidas concretas estão sendo tomadas exatamente para reduzir a letalidade policial, também não informou se no caso da capital há alguma medida diferenciada devido aos altos índices de mortes provocadas pela polícia.
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