Victor salvou um amigo de infância, mas acabou morto pela PM

    Ajudante de pedreiro se revoltou ao ver ao ver dois PMs ameaçarem seu amigo, que sofre de transtornos mentais, e avançou sobre um deles. O amigo conseguiu escapar, mas Victor morreu com um tiro no peito

    Victor tinha uma filha de três anos, era casado e muito querido no bairro | Foto: Arquivo Pessoal

    Quando viu dois policias militares algemarem Davi(*), um jovem negro de 19 anos, às 22h de 13 de março, a Favela do Lamartine entrou em pânico. A comunidade temia que mais um de seus filhos desaparecesse nas mãos do Estado. Um medo que tinha razão de ser. Localizada no Jardim Santo André, na cidade de Santo André (Grande SP), a comunidade é alvo constante da violência policial.

    “Vou levar ele para a represa”, teria dito um dos policiais, segundo testemunhas, enquanto apontava uma arma para a cabeça do jovem, mantido ajoelhado. Todos os que ouviram entenderam a referência, pois dizia respeito a uma violência que havia abalado a região. Em 13 de novembro de 2019, no bairro vizinho da Favela do Amor, um outro menino negro, Lucas Eduardo Martins dos Santos, 14 anos, desapareceu após uma suposta abordagem policial e seu corpo foi encontrado, dois dias depois, em um dos braços da represa Billings. Os assassinos até hoje não foram identificados pela polícia.

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    Tentando evitar que Davi fosse levado para o mesmo destino de Lucas, um grupo de moradores se aproximou e questionou a abordagem policial, implorando para não agredissem nem matassem o jovem. Muitas pessoas estavam nas ruas e vielas, porque é insuportável permanecer dentro dos barracos nas noites de calor.

    Um dos moradores, o ajudante de pedreiro Victor dos Santos Lima, 22 anos, segurou o soldado Bruno Palagano pelo pescoço. Victor, conta a favela, conhecia Davi desde criança e escolheu arriscar a vida pelo amigo. Os policiais tentaram dispersar o grupo com spray de pimenta, mas os moradores continuaram ali e um deles jogou uma pedra, que atingiu o soldado Felipe Matheus, mas sem feri-lo.

    Nesse momento, o PM Bruno Palagano soltou Davi, que saiu correndo, e disparou pelo menos dois tiros. Um dos disparos atingiu Victor no peito. A ambulância do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) teria levado 50 minutos para chegar. Enquanto isso, uma moradora, que é enfermeira, tentou estancar o sangue de Victor, mas teria sido obrigada pelos PMs a se afastar dele, segundo testemunhas.

    Rua em que Victor foi assassinado | Foto: Beatriz Drague Ramos/Ponte Jornalismo

    Por ajudar um amigo de infância, Victor tombou no chão da comunidade onde havia vivido toda a vida. Socorrido, morreu no pronto-socorro da Santa Casa de Santo André.

    Os PMs, lotados na 5ª Companhia do 10º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano, afirmam que deram um único tiro, segundo o boletim de ocorrência registrado no 6º DP de Santo André. A versão policial é desmentida por um vídeo gravado na favela, que mostra que houve pelo menos dois disparos — segundo a comunidade, foram três. No documento, a dupla de policiais afirma que estavam patrulhando a favela quando viram Davi em uma escadaria e resolveram abordá-lo. Eles dizem que o jovem levava drogas numa pochete, mas não apresentaram provas.

    Filho, pai, vizinho e amigo

    Victor era adorado pelos vizinhos da Lamartine, que o conheciam por Bola. Apesar da personalidade um pouco fechada, era conhecido por praticamente todos os moradores do local. Tinha uma filha de 3 anos e era casado. Trabalhava como ajudante de pedreiro e nas horas vagas gostava de estar junto da família, assistir a jogos de futebol, jogar videogame com os seis irmãos mais próximos e ir a um pequeno bar do lado de sua casa, onde havia uma mesa de sinuca. Seguiu toda essa programação no dia em que terminou assassinado.

    O desencontro ocorrido na noite daquele sábado ficará marcado para sempre na vida de Ana Cristina dos Santos, 45 anos, faxineira de um hospital, mãe de Victor. Ela recebeu a Ponte em sua casa na última sexta-feira (19). Já era noite, por volta de 19h, quando dona Ana voltou de uma conversa com a advogada que pretende ajudá-la a buscar justiça. Seu olhar retrata a exaustão de uma mãe que há dias não se alimenta direito e não dorme. “Estou à base de calmantes, ontem fui para a casa de um amigo e consegui comer um pouquinho. Todo momento acho que ele vai chegar chamando. ‘Ô véia’, era como ele me chamava.”

    A casa, construída com tapumes de madeira, não tem divisórias entre os cômodos: uma sala, com um sofá e uma beliche, e uma cozinha, com uma mesa de jantar. Por toda a parte, brinquedos espalhados no chão junto com fios elétricos. No lar de Ana, dois de seus 11 filhos assiste televisão — o mais velho, de 24, e uma menina de 13. 

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    Cansada, ela conta como recebeu a notícia da morte de seu filho. “Naquele dia eu cheguei de casa à noite, meus filhos até falaram ‘se você tivesse chegado há dez minutos tinha encontrado o Bola’. Aí eu cheguei, eu estava colocando o neném [um de seus filhos] para dormir, quando o meu mais velho entrou e falou: ‘Mãe, está cheio de polícia lá perto da casa do Bola, ele foi baleado’. Nessa hora eu sai correndo desesperada, eu subi acreditando que era mentira. Falava para mim mesma que não era o Bola. Quando eu cheguei, já estava interditado. Os policiais não deixaram eu subir para ver ele. Eu pedi pelo amor de Deus e eles me xingaram, disseram: ‘Sai daqui, sua vagabunda’.”

    Ana Cristina dos Santos, mãe de Victor pede justiça ao caso de seu filho.|Foto: Beatriz Drague Ramos/Ponte Jornalismo

    Na sequência ela foi à Santa Casa de Santo André, onde recebeu a notícia. “Eu sei que a dor não vai passar. O meu filho morreu defendendo uma pessoa, um amigo”, diz.

    O primeiro filho de Ana veio aos 14 anos. Na época, conta, a criança foi tomada pela Justiça devido à sua situação de extrema pobreza. Há quatro meses, ela sofreu com a perda do ex-marido e pai de seis dos seus filhos.

    Victor era como um pai para os irmãos, lembra Ana: “Ele estava sendo o paizão dos irmãos, conversava muito com eles, até puxava a orelha deles para me darem mais atenção. O que eu quero é justiça pelo meu filho”. 

    As boas recordações do filho foram contadas com os olhos cheios de lágrimas. “Quando ele nasceu, ele era o mais gordinho do quarto e a enfermeira começou a chamar ele de Bolinha e ficou Bola quando ele cresceu”, explica. “Como é difícil acordar e saber que meu filho não vai me pedir benção… Eu saio lá fora e dá a impressão que eu vou encontrar ele, com a menininha e a mulher dele”, acrescenta, após uma longa parada para respirar. 

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    A mãe de Davi, o jovem salvo por Victor, conta que o filho sofre de esquizofrenia e que tentou explicar isso aos policiais que ameaçaram matá-lo. “Eu vi o policial com a arma na testa do meu filho, falando que ia levar para represa, para matar, ele chegou a falar. Foi quando eu ainda falei para o policial que ele é esquizofrênico, que ele tinha problemas psicológicos. Toda essa confusão aconteceu porque os vizinhos também viram e não aceitaram”, conta. 

    No dia seguinte à morte de Victor, fotografias de seu corpo baleado começaram a circular nas redes sociais. A família acredita que os próprios policiais podem ter tirado as fotos. “O que está me marcando muito são as fotos dele no IML, pode ter sido um dos policiais. Isso me dói muito.”

    Contradições  

    A advogada Jaqueline Aparecida Silva Alves Corrêa, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que está dando assistência à família, aponta que o delegado Luiz José Polastre deveria ter autuado os dois PMs que mataram Victor por homicídio qualificado. “O que se identifica é homicídio, inclusive com diversas qualificadoras, entre elas o meio cruel, já que impediram uma enfermeira da comunidade de ajudá-lo, a impossibilidade de defesa da vítima e a tentativa de encobrir um crime anterior, a tortura ao outro jovem”, afirma Para ela, não como falar em legítima defesa, como afirma o delegado no boletim de ocorrência. “A vítima estava sem camisa, desarmada, e tinha tinha sido imobilizada por um dos policiais, que estava armado”, aponta.

    Jaqueline também chama a atenção para o fato de os policiais não terem apresentado as drogas que disseram ter encontrado com Davi. 

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    Entre a violência policial e a pobreza

    A morte de Victor foi a gota d ‘água para os moradores da comunidade se revoltarem, uma vez que vivem sob a sombra de violências e ameaças cotidianas pela polícia e pela negligência dos entes estatais. Desde então, fizeram duas manifestações, uma no último domingo (14) e outra na segunda-feira (15). Uma terceira está agendada para este domingo (21). 

    Uma das vielas da Favela do Lamartine, no bairro Jardim Santo André|Foto: Beatriz Drague Ramos/Ponte Jornalismo

    As duas primeiras manifestações foram alvo da violência policial, na forma de bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta nos moradores.

    A irmã “de consideração” de Victor, Caroline de Souza Alcântara, profissional autônoma de 28 anos, contou à Ponte que a violência foi desproporcional: “Eu falei não vamos xingar, não vamos reagir, vamos deixar eles sozinhos, mas eles vieram para cima da gente e jogaram muitas bombas”. 

    Ela explica que as violações são recorrentes na comunidade. “Não é uma revolta que aconteceu ali naquele momento. É uma revolta que estamos engolindo há muito tempo. Eles ameaçam. Para a PM é fácil tirar a vida de mais um, nós não somos ninguém para eles. Podemos ser preto, pobre, favelado, mas temos honestidade, querendo ou não temos família. Precisamos um do outro. Esses policiais estão acabando com a população, já falaram que vão matar mais.” 

    Caroline de Souza Alcântara, irmã de Victor, mostra a foto dele |Foto: Beatriz Drague Ramos/Ponte Jornalismo

    Sentados em banquinhos de plástico na viela onde está o barraco da mãe de Victor, os irmãos contaram como o tratamento da polícia é feito na região, que não conta com tratamento de esgoto e água encanada e nem acesso à rede de energia elétrica na maioria dos barracos. “Se fosse aglomeração no Morumbi ou em um bairro mais chique, eles iam entrar com o fiscal bonitinho, bem ajeitadinho, porque eles tem medo. Eu mesmo vou me mudar daqui, não aguento mais”, lamentou Cleiton Santos Lima, de 24 anos, irmão mais velho de Victor.

    Na favela do Lamartine, um dos desafios é permanecer dentro de casa, como recomenda a ciência para enfrentar a pandemia de Covid-19. As casas são em sua maioria muito pequenas e construídas de tapumes frágeis de madeira ou de tijolos, sem nenhum tipo de revestimento. O mau cheiro, por conta do esgoto a céu aberto que corre entre as vielas, é outra dificuldade para as famílias.

    Praça do Jd Santo André com alguns brinquedos para crianças e pista de skate|Foto: Beatriz Drague Ramos/Ponte Jornalismo

    A diversão para os adultos fica por conta dos pequenos botecos que abrem discretamente à noite. Na praça os jovens também se reúnem para beber e conversar. 

    Moradores da favela, que preferiram não se identificar por medo de represálias, também relataram o terror das abordagens da PM: “Tenho medo de sair e ser abordado por um policial com um tapa na cara, com um chute. Aqui desde quando tem a ocupação sempre foi assim. Pega nosso dinheiro, pega a bolsa, montam na moto ou na viatura e vão embora”.

    Matheus dos Santos, 21 anos, irmão de Victor, também teme. “Na verdade, todos os dias eles nos ameaçam, é recorrente. Depois do que aconteceu eu só saio acompanhado, tenho medo”.

    Há poucos espaços de lazer na comunidade do Lamartine|Foto: Beatriz Drague Ramos/Ponte Jornalismo

    Outra vizinha de Victor afirmou que os policiais xingam frequentemente os moradores. “Não podemos estar na rua que eles vêm e perguntam: ‘Está fazendo o que aí fora, sua vagabunda? Vai para dentro’. Já temos muito medo, principalmente pelo histórico do menino Lucas, que apareceu morto na represa”.

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    À Ponte, o ouvidor das Polícias, Elizeu Soares Lopes, apontou que pediu os afastamento dos policiais envolvidos. “É sempre de se lamentar quando uma ocorrência policial termina em morte. A função da polícia é proteger a sociedade e a vida do cidadão. Requisitei que o caso seja investigado pela Corregedoria da Polícia Militar, não pelo batalhão local. Também requeri o afastamento dos policiais envolvidos até o desfecho das investigações. Há contradições entre os depoimentos dos policiais e dos familiares, conforme notícias da imprensa sobre o caso. Me coloquei à disposição de familiares para ouvi-los. Vou cobrar que a investigação seja feita com extremo rigor”, afirmou.

    Outro lado

    Procura pela Ponte, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) do governo João Doria (PSDB) afirmou em nota que o crime é alvo de inquérito policial instaurado pelo Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) de Santo André. “Diligências estão em andamento visando à elucidação da ocorrência. A Polícia Militar também apura os fatos por meio de IPM [inquérito policial-militar]”.

    (*) Davi é um nome fictício. Sua família teme represálias, por isso a reportagem omitiu seu nome verdadeiro

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