‘Na segurança pública, governadores estão igual boneco de posto de gasolina, movendo o braço conforme o vento’

Para pesquisadores, ataque da PM a manifestação em PE e a prisão de professor por adesivo contra Bolsonaro em GO representam risco à democracia e expõem fragilidade do sistema de segurança pública; ‘falta controle político da polícia’, aponta Orlando Zaconne, dos Policiais Antifascistas

Daniel Campelo da Silva perdeu o olho após ser atingido por balas de borracha disparadas pelo Batalhão de Choque de Pernambuco em 29 de maio | Foto: Hugo Muniz

A conduta do Batalhão de Choque da Polícia Militar durante a manifestação contra Jair Bolsonaro (sem partido) neste sábado (29/5) no Recife (PE) cegou dois homens, atingidos por balas de borracha disparadas por policiais na direção da cabeça. Os projéteis acertaram os olhos de Daniel Campelo da Silva, de 51 anos, e Jonas Correia de França, de 29 anos, ambos perderam parte da visão. O Governo de Pernambuco disse que a operação não foi autorizada.

A operação truculenta dos policiais fez com que o governador Paulo Câmara (PSB) afastasse o comandante da operação no protesto da PM, Vanildo Maranhão, que posteriormente pediu exoneração do cargo nesta terça-feira (1/6). Outros quatro policiais militares envolvidos na agressão contra a vereadora do Recife Liana Cirne (PT) foram afastados, ela foi atingida com spray de pimenta no rosto por policiais. 

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O secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, segue no cargo. Até o momento o governo não explicou quem deu a ordem para o ataque, o que está sendo investigado por meio de um inquérito policial de lesão corporal gravíssima e um inquérito policial militar para investigar a atuação da polícia.

O descontrole da conduta da Polícia Militar continuou pouco tempo depois, mas em outro estado. Em Goiás, um professor que se recusou a retirar um adesivo escrito ‘Bolsonaro genocida’ do carro foi preso pela PM do governo de Ronaldo Caiado (DEM), nesta segunda-feira (31/5). 

Arquidones Bites foi preso por policiais militares com base na Lei de Segurança Nacional | Foto: Arquivo pessoal

O professor Arquidones Bites, que é secretário de movimentos populares do PT, foi levado para a Polícia Federal em Goiânia. Os policiais apresentaram como motivo da prisão a LSN (Lei de Segurança Nacional), editada em 1983, no final da ditadura militar (1964-1985). O professor foi liberado no mesmo dia pela PF e o policial envolvido na detenção foi afastado das atividades nas ruas.

Os atos recentes ocorridos com respostas das polícias militares acenderam um alerta a autoridade ou a falta dela dos governadores dos respectivos estados e mostram falhas históricas dos governos de centro esquerda na atribuição de papel dada à PM, hoje usada pelo bolsonarismo como massa de manobra, dizem pesquisadores ouvidos pela Ponte

Para entender os últimos acontecimentos, é preciso olhar a situação de exceção na qual a polícia trabalha para além do bolsonarismo, aforma Orlando Zaccone, fundador e atual coordenador do movimento Policiais Antifascismo, que também é doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense e membro da Leap (Law Enforcement Against Prohibition), organização internacional que reúne policiais, promotores e juízes na busca de alternativas à guerra às drogas. “Essas ocorrências tanto em Pernambuco como em Goiás demonstram que as polícias estão sem controle político dos governadores.”

Para ele, “se o governador, imediatamente após os fatos em Pernambuco, afastou o comandante geral da PM e se o policial que apreendeu o professor também foi afastado em Goiás, significa que essas condutas não são politicamente desejadas. Mas se a polícia atua na contramão do desejo político do governador significa que esses governos estão sem controle político das polícias”.

O descontrole se dá a fatores históricos e a um discurso despolitizado dos governos de centro e centro esquerda, segundo Zaccone. “A direita nunca disse que a polícia não tinha que ter controle político, pelo contrário a direita sempre trabalhou em ter o controle político das polícias. Quem veio com esse discurso de que a polícia é um órgão técnico e que a política não deve se intrometer foi a esquerda. Infelizmente o discurso é equivocado”. 

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O pesquisador afirma que muitos governadores, principalmente do campo progressista, têm medo de “fazer a governabilidade e o controle social da polícia”. “Já vimos secretários de segurança e delegados federais que eram colocados na Secretaria de Segurança Pública vindo de outros estados, sem nenhuma realidade com o estado onde iria exercer a função, sob o argumento de que estavam tratando a segurança de uma forma profissional e técnica, afastando a política da área de segurança.” Ele cita o exemplo da governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), cujo Secretário de Segurança Pública é Coronel Araújo, alinhado ao governo federal. 

Zaccone também lembra que historicamente esse trato na segurança pública passou pelos governos populares do pós-ditadura, como no caso de Leonel Brizola (PDT), no Rio de Janeiro, Alceu Collares (PDT), no Rio Grande do Sul, Franco Montoro (PSDB), em São Paulo, além de Miguel Arraes (PSB), em Pernambuco: “foram governos que tentaram fazer modificações na área de segurança, mas fracassaram”. 

O pesquisador explica que os governos citados aconteceram no momento em que a violência urbana e os índices criminais no mundo, sobretudo nos países periféricos como o Brasil, estavam crescendo e o discurso que cresceu foi o de que a defesa dos direitos humanos era a defesa do bandido. “Essa foi a derrota do campo progressista. E a partir daí os governos de esquerda começaram a não querer assumir a implantação de políticas de segurança em seu próprio nome, começavam a tratar a segurança pública como uma questão técnica, algo que os policiais podem gerir, ou seja, chegamos nesse momento sem nenhum controle político.”

Nessa trajetória, a esquerda se afastou de assumir um discurso político sobre segurança pública, “com medo do resultado negativo daqueles governos pós-ditadura”.

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Com a eleição de Bolsonaro, Zaccone diz que, com o pensamento militar e conservador deste governo, a PM se vê muito mais a serviço do Exército do que do governador. “Abre espaço para a polícia ter autonomia, ela vai operar independente dos resultados que a sua ação possa causar ao governador”. 

Por isso, segundo ele, a desmilitarização ajudaria a devolver às polícias o comando dos governadores. “Hoje a legislação que rege as Polícias Militares, o decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983, em última instância diz que quem tem a última palavra é o Exército, não é o governador. O governador paga salário, nomeia o comandante geral da PM, mas ainda está em vigor um dispositivo na lei que diz que se o Exército não aceita o comandante geral indicado pelo governador ele não assume”.

Em última instância, a Polícia Militar serve a dois senhores, ao governador e ao Exército, complementa Zaccone. “Essa estrutura militarizada da segurança pública também permite contribuir para esse distanciamento da tropa em relação ao governo estadual”. 

Controle frágil e omissão

No mesmo sentido da análise de Zaccone, a doutora em segurança pública, antropóloga e professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz, que já foi Coordenadora de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, também avalia que os governadores vêm sendo omissos na gestão da segurança pública dos estados. “Quem dá o fim da política é o governante, ele que determina os meios logísticos de atuação, os armamentos, e os modos táticos de intervenção”.

“Quando você não dá a missão clara, você autonomiza os meios para agirem conforme cada um a sua cabeça, produzindo sentenças diferentes nas ruas. O não decidir é tão responsável quanto o decidir”, diz a pesquisadora, se referindo à conduta do governo de Pernambuco.

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O grande problema do Brasil é o controle da ação policial, para ela. “Aqui nós sofremos de autonomia demais e controle de menos, os governantes engordam onças [policiais] e põem elas no quintal e depois elas comem o braço deles. É um problema crítico no Brasil, tem que controlar a capacidade coercitiva da polícia, o potencial de autonomização e quebrar o monopólio de ação da polícia. O poder de polícia pertence à sociedade e é administrado pelo Estado”. 

De acordo com a pesquisadora, há um cheque em branco na segurança pública brasileira, que não é transparente. “O processo decisório é de baixa visibilidade social e informal, mostrando debilidade na cadeia de comando e controle das organizações de força no Brasil, isso vai da PF [Polícia Federal] ao Guarda Municipal da esquina, é um problema crônico. É um cheque em branco preenchido por lógicas particularistas, corporativistas e partidárias.”

Para ela, a influência de Bolsonaro nas polícias funciona como um estimulo para as condutas radicais, mas não são um fim em si mesmas. “O bolsonarismo se beneficia como um ‘estimulante muscular’ e um ‘anabolizante moral’, de levantar a auto estima de sujeitos desvalorizados que são os policiais, um anabolizante para iludi-los com o ‘canto do boto policial’, achando que eles têm mais poder do que de fato tem, isso só é possível porque estruturalmente no Brasil não se controlou e não se controla o uso da força intencionalmente. Enquanto isso, os debates de segurança seguem ‘cloroquinados’ e as pessoas morrendo, não é razoável explicar 29 mortes no Jacarezinho”.

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Por isso, na visão da pesquisadora, o bolsonarismo não funciona sozinho dentro das policias. “O sujeito se sentir à vontade na rua para quebrar os protocolos, rasgar a lei, a legalidade e a legitimidade é porque os mecanismos de controle são falhos, não se tem governo. O governador tem na mão o regulamento disciplinar, o estatuto do servidor público, o estatuto do servidor militar, a Justiça Militar, ele tem mecanismos internos de sanção e premiação de condutas extremas, toda vez que um policial tem uma conduta extrema ele está violando o seu próprio código de ética”.

Boneco de posto de gasolina

Jacqueline lembra que ações como as que ocorreram nos últimos dias não são novas e que é preciso que os governadores encarem a segurança pública com seriedade. “Assistimos governadores que querem empurrar para longe do Planalto a segurança pública, porque é portadora de má notícia, serve para o oponente perder a eleição, então não assume governabilidade, fica igual boneco de posto de gasolina, movendo o braço conforme o vento e a opinião pública. É importante uma política pública escrita de segurança pública, de polícia e de policiamento para dar previsibilidade, estabilidade”.

O bolsonarismo só cresce por conta desses motivos, esclarece a pesquisadora. “Hoje se põe tudo na conta do bolsonarismo ainda que ele esteja lá atuando, é diferente, mas ele só cresce nesse ambiente por conta desses fatores. Está na hora de pegarmos o poder de polícia que é nosso, é da sociedade, quem decide o armamento da polícia é a sociedade, a capacidade coercitiva, onde começa e termina o poder de polícia é a sociedade. Está na hora de regulamentar e atualizar o poder de polícia no Brasil que foi definido em 1966 no auge da ditadura. Está na hora de usar a tinta da caneta e governar”, alega Jacqueline.

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“Se não vamos experimentar golpes de novo. Todos ficam brincando de arrependimento em rede social, os governadores precisam parar de querer ser lacradores de redes sociais e governar. O presidente é um meme militaresco, desenhado por civis, porque sequer conhecimento militar e policial ele tem. O que nós estamos assistindo é uma farra das licitações, a indústria da insegurança e um projeto autoritário de poder”, finaliza a professora.

Ainda que permeada por diversos aspectos sociais, a presença das ideias bolsonaristas nas polícias são fortes. Em abril deste ano, uma pesquisa do instituto Atlas mostrou que 71% dos PMs declaram ter escolhido Bolsonaro no segundo turno em 2018 e 81% dizem que continuam hoje contentes com a opção que fizeram. Somente 17% afirmam ter arrependimentos.

O estudo feito a pedido da revista Época ainda revela que entre os policiais civis, 53% disseram ter votado em Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 e, desse total, 61% diz estar arrependida. Na PF, nas últimas eleições presidenciais, 61% dos agentes optaram pelo atual presidente. Hoje, 38% deles se dizem arrependidos. 

Outra pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em agosto de 2020, apontou que 41% dos praças da PM participavam de grupos bolsonaristas nas redes sociais e aplicativos de mensagens, 12% defendiam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso e 25% defendiam ideias radicais. 

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Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM paulista e autor da tese de doutorado “O policial que mata: um estudo sobre a letalidade praticada por policiais militares do Estado de São Paulo”, pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, os dados mostram que a democracia brasileira corre riscos. “Uma parcela significativa de policiais militares podem atuar em pleitos antidemocráticos se Bolsonaro não ganhar as próximas eleições. Nós temos atuações policiais militares contra a democracia”.

Assim como os demais pesquisadores, Adilson também indica que houve omissão histórica para tratar da segurança pública. “Nós temos exércitos estaduais atuando com uma lógica militar que é permeável ao discurso bolsonarista e que é reacionário, muito conservador e centrado na militarização. Os governadores dos Estados não sabem o que fazer. Eles não sabem exatamente até que ponto as polícias fecham com eles”, completa.

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