“Mães em Luta” traz as memórias, a dor e a luta das mães das vítimas da violência de Estado; ‘nós somos as vozes dos nossos filhos’
A emoção tomou conta de quem acompanhava, na tarde deste sábado (19/11), o lançamento do livro Mães em Luta, fruto do movimento Mães em Luto da Zona Leste, no auditório do CEU (Centro Educacional Unificado) Sapopemba, na periferia da zona leste da capital paulista. Cada uma das sete mães autoras da obra carregava consigo não só um sentimento de realização pelo momento como também a saudade dos filhos que perderam a vida para a brutal violência do Estado, além da perseverança para não deixar a luta parar.
Gilvania Reis Gonçalves, Maria Medina Ribeiro, Mirian Damasceno da Silva, Rossana Martins de Souza, Sidneia Santos Souza, Solange de Oliveira Antonio, Tatiana Lima Silva transformaram suas dores em poesias e depoimentos para homenagearem seus filhos: Guilherme, Luan, Kaique, Douglas, Josias, Victor e Peterson. “Nos tiraram tudo, mas ainda temos fôlego para lutar” é uma das frases que estampa o livro.
O livro Mães em Luta pode ser adquirido no site da editora Fábrica de Cânones.
“Para mim é uma vitória”, definiu Maria Medina. “É não deixar a memória dos nossos filhos morrer. Nós somos as vozes dos nossos filhos. Então, eles estão vivos, eles estão presentes. O Luan para mim nunca morreu, ele vai continuar presente”, completou. Em novembro de 2017, seu filho Luan Gabriel Nogueira de Souza foi morto aos 14 anos por um policial militar quando saiu de casa para comprar bolachas em Santo André (Grande SP). Neste ano, o Tribunal do Júri decidiu que o PM atuou em legítima defesa e o absolveu.
“O livro vai mostrar para as outras mães, para as autoridades, o que nós mães estamos passando para ter justiça, para eles não chegarem matando, não chegarem fazendo o que eles fazem”, comentou Maria Medina em entrevista à Ponte. O evento de lançamento reuniu ativistas e lideranças de outros movimentos sociais, como a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, e também lembrou o legado das Mães de Acari, movimento pioneiro que lutou por justiça e reparação pela Chacina de Acari, ocorrida em 1990 no Rio de Janeiro.
Entre os depoimentos dados no palco, as mães recitaram poesias que escreveram em memória dos seus filhos. Solange de Oliveira, fundadora das Mães em Luto da Zona Leste, recordou, na poesia, o carinho que tinha com o filho Victor Antônio Brabo. O jovem tinha 20 anos quando foi abordado e morto por um policial civil em 2015. “Victor, a distância que no momento nos separa, jamais será maior que o amor que nos une”, recitou.
Em outro momento, Gilvania Gonçalves se emocionou ao lembrar dos últimos momentos que esteve ao lado do filho Guilherme Gonçalves, que foi morto em 2017 por PMs da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Era uma manhã de domingo, dia em que a família costumava se reunir no almoço e dividir as tarefas de casa, quando o jovem recebeu uma ligação e avisou a mãe que iria sair.
“O Guilherme era muito carinhoso, era diferente, especial. Ele tinha um jeito diferente de me tratar de todos os outros quatro filhos que tenho. Naquele dia, ele falou ‘mãe, vou ali e já volto’. Ele chegou no portão — e essa memória eu tenho muito forte —, olhou para trás, saiu e nunca mais voltou”, recordou.
À Ponte, Gilvania disse que o movimento Mães em Luto lhe deu forças para se reerguer do sofrimento que foi perder o filho e cobrar que as políticas de segurança pública mudem. “Hoje, estar na construção desse livro, que foi pensado durante a pandemia, fazíamos tudo por vídeochamada, e ver esse livro em mãos, é muito gratificante. E esse livro não vai ficar só entre as sete mães. Eu queria muito que fosse para as escolas, para que os jovens das periferias pudessem ler e ver o quanto o preconceito, o racismo estrutural nos atinge”, pontuou.
O evento também foi prestigiado por Maria Marques Martins dos Santos, a mãe de Lucas Eduardo Martins dos Santos, adolescente negro de 14 anos que desapareceu e foi encontrado morto após uma abordagem policial em Santo André (SP) em novembro de 2019. “É uma dando a mão uma para a outra, pois a gente tem que seguir junto nessa luta”, afirmou. “Mesmo que já tenha passado esses três anos, parece que foi ontem. A dor e o sofrimento continuam do mesmo tamanho. É uma justiça cega que infelizmente não olha para o nosso lado”, completou.
Representando as mães que lutam pelo fim da violência de Estado no Rio de Janeiro, Irone Maria Santiago Borges, que em 2016 viu o filho ficar paraplégico após ser baleado durante uma operação do Exército dentro da Favela da Maré, falou da importância de unificar os movimentos pelo país. “É uma luta que vem de longos passos, veio das Mães de Acari, da Candelária. E ver essas mães escreverem um livro é muito significativo e um exemplo para as outras mães.”
O feito das mães também é celebrado pela deputada estadual eleita Ediane Maria do Nascimento (PSOL-SP), coordenadora do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que destaca como as mulheres negras são algumas das pessoas mais atingidas por essa violência. A ativista diz que cada uma delas tem muito a ensinar para a sociedade e que pretende ecoar essas vozes dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) no ano que vem.
“A gente está criando essa consciência, a importância da gente lutar e organizar o Estado, a polícia também, para mudar esse olhar de discriminação que tem dentro da nossa sociedade. Eu sou moradora da periferia com muito orgulho. A gente não tem que provar que a gente mora ali. A gente quer dignidade, a gente quer viver com com todo o vigor. Que as leis que vão servir para garantir nossas vidas, não para nos matar”, afirmou.
A cerimônia contou com a participação dos ativistas e advogados Damazio Gomes da Silva, que escreveu o prefácio do livro ao lado de Valdênia Aparecida Paulino Lanfranchi, e André Alcântara, que representou o ex-secretário de direitos humanos do governo federal Paulo Sérgio Pinheiro e encerrou com as apresentações artísticas dos rappers Edson Luiz e Lucas. “As mães também nos trazem vários alertas sobre o nosso cotidiano, sobre nossa vida, sobre como nós lidamos com a nossa juventude, como também são um poço de experiência nessa questão de efetivação dos direitos, de pensar em políticas públicas que vão além da lógica policialesca dentro das periferias”, comentou Alcântara à Ponte.