O que a morte de um menino com Down revela sobre violência policial e raça na África do Sul

    Assassinato de Nathaniel Julies guarda semelhanças com ações violentas das forças de segurança brasileiras

    Nathaniel tinha 16 anos e uma forma severa de Síndrome de Down | Foto: Reprodução

    Encontros entre policiais e jovens negros fazem parte de uma rotina mortal no Brasil,. Mas ao olhar para o outro lado do Atlântico, o panorama na África do Sul não é muito diferente. Nas últimas semanas, o tema voltou a esquentar a cidade de Joanesburgo, onde a tensão racial tem uma complexidade histórica adicional. Como por aqui, mortes em ações policiais são comuns no país.  De acordo com o The New York Times, todos os dias pelo menos uma pessoa morre durante alguma operação na África do Sul.

    Aos 16 anos, Nathaniel Julies morreu baleado no final de agosto passado. Sua mãe, Bridget Harris, ao ver o corpo do filho, não conseguiu contar quantos ferimentos de bala existiam. “Eram muitos”, afirmou chocada. Há, no entanto, um agravante nesse caso, que despertou a ira popular: Nathaniel tinha síndrome de Down. Segundos parentes e vizinhos, ele mal conseguia formar frases completas.

    A princípio, as autoridades sul africanas disseram que o adolescente morreu durante uma troca de tiros entre policiais e membros de uma gangue, não muito diferente das desculpas dadas aqui no Brasil. Dias depois, a Justiça acusou três policiais envolvidos. Segundo a família, os policiais teriam questionado o adolescente sobre algo e, ao não receberem uma resposta clara, balearam Nathaniel.

    A população sul-africana vem denunciando a brutalidade policial por muito tempo, mas agora, em tempos de pandemia, a sensação é de que alguns policiais estão agindo impunimente. E a narrativa fica mais complexa, pois se trata de uma força policial majoritariamente negra sendo abusiva contra uma população majoritariamente negra.

    Uma das explicações pode ser o apartheid. Entre 1948 e 1994, a minoria branca, apoiada pelo Reino Unido, governou a África do Sul de forma impiedosa. De maneira simplista, o apartheid foi um regime oficial de segregação racial. Enquanto os brancos gozavam de todas as benesses, os negros eram proibidos usar espaços demarcados como “somente para brancos” ou de cursar ensino superior. À época, os departamentos de polícia eram os tentáculos do regime levando a cabo suas regras, assassinando líderes políticos e encorajando a violência como forma de desestabilizar as cidades.

    O New York Times traz uma frase muito contundente sobre a visão da maioria da população em relação às forças de segurança. “Para a população não branca de sul-africanos, a polícia é fonte de terror e não de proteção. E policiais negros são vistos como traidores”. Segundo a IPID (Independent Police Investigative Directorate), agência que investiga reclamações sobre a polícia sul-africana, mais de 42 mil denúncias foram feitas entre 2012 e 2019, incluindo estupros, assassinatos e tortura.  No biênio de 2011/2012, 720 mortes de pessoas sob custódia ou durante ações policiais foram investigadas pelo órgão.

    Parte das estatísticas, o caso Nathaniel Julies suscitou protestos na África do Sul e o governo de Cyril Ramaphosa afirmou que a Justiça será feita independente de quem cometeu o crime. Os vizinhos de Nathaniel estão divididos. Alguns acreditam na justiça. Outros como Leonie Nero, mãe de duas crianças e vizinha da família, estão céticos. “Era para sermos protegidos por eles, mas estão nos matando”

    O caso de Nathaniel não é diferente de nossas crianças, adolescentes e jovens negros, mortos por balas “errantes”, quase sempre certeiras, da polícia. Ainda esta semana, completou um ano da morte da menina Ágatha Félix, 8 anos, assassinada por um fuzil da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Na semana anterior, foi a vez de Lucas Martins dos Santos, 14 anos, completar dez meses desde que foi arrancado de sua família em Santo André (SP). Há quatro meses, a mesma PM do Rio matou João Pedro Mattos Pinto, 14 anos dentro de casa. Há uma semana, a Rota deteve ilegalmente Érik Santos Souza, 23 anos, dentro do comércio de sua família. Esta é a única história que não terminou com uma morte, o que não apaga as outras tantas que a Ponte noticia todos os dias.

    “A meta [de mortes realizadas por policiais] tem que ser zero, se tiver dez mortes pela polícia esse ano e essas mortes forem suspeitas é muito. Não temos que aplaudir, temos que criticar. A nossa tolerância tem que ser zero. Eu prefiro viver em um mundo de fantasia porque eu só vou ser feliz quando a meta for zero”, enfatizou o tenente-coronel da reserva da PM paulista Adilson Paes de Souza em entrevista recente à Ponte. Que essa meta passe a valer aqui, na África, em todo lugar.

    ATUALIZAÇÃO: Esta reportagem foi modificada em 25/09/2020 para refletir mais acuradamente a condição de quem tem Síndrome de Down

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