Operação que matou 56 na Baixada Santista não deve ser última de Tarcísio, diz especialista

Em meio a denúncias de violação, governador disse “não to nem ai”; mãe que perdeu dois filhos em ações da PM na região acredita em manutenção da violência: “isso não vai terminar aqui”

Manifestante em protesto em frente à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) contra a Operação Verão ocorrida em 18 de março de 2023 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O fim da Operação Verão não aliviou a dor de Maria Josefa da Silva, 42 anos. A técnica em enfermagem perdeu o filho Matheus Ramon Silva de Santana, 22 anos, morto com tiros de fuzil disparados por policiais militares em Guarujá, no litoral paulista. A morte é uma das 56 registradas durante a ação na Baixada Santista. Oito meses antes, Maria já tinha enterrado outro filho. O adolescente Luiz Gustavo Costa Campos, 15, foi morto na Operação Escudo. Para ela, o anúncio feito pelo secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, não representa o fim da violência policial na região. “Sabemos muito bem que isso não vai terminar aqui. Nem hoje, nem amanhã”, diz.

O pessimismo de Maria é compartilhado pelo coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, Rafael Rocha. “Infelizmente, acho que essa não foi a última vez. Veremos outras operações nos próximos anos”, diz. O pesquisador acredita que terminar com a operação faz parte de uma estratégia. Se dá um respiro, as coisas se acalmam, a água esfria. Depois, repete. “Quando houver outra ocorrência desse tipo, acredito que teremos outras operações, porque, para eles, tem tido ganhos políticos”, afirma Rocha. 

A política de segurança adotada por Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem sido responder a morte de policiais com ações organizadas aparentemente de vingança. No ano passado, após a morte do soldado das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) Patrick Bastos Reis, 30, foi iniciada a Operação Escudo. Em 40 dias de ação, 28 pessoas foram mortas pela Polícia Militar. Denúncias de execuções, torturas e ameaças promovidas pelas tropas foram levadas à Organização das Nações Unidas (ONU) e também à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Isso não foi o suficiente para evitar que o governo paulista repetisse a dose. 

Em janeiro, quando foram registrados ao menos quatro casos de violência contra policiais, novas operações Escudo foram anunciadas. Uma para cada regiões onde os PMs foram vítimas. A Baixada entrou na rota com a morte do soldado Marcelo Augusto da Silva, 28, que aconteceu na Rodovia dos Imigrantes, em Cubatão, no fim de janeiro. “Não vai ficar impune”, disse Derrite à época. 

Mas foi a partir da morte do soldado da Rota Samuel Wesley Cosmo, 35, que a violência se intensificou na região. Cosmo foi morto com um tiro que atingiu um de seus olhos durante patrulhamento em Santos, no dia 2 de fevereiro. A resposta de Derrite e Tarcísio foi implementar uma terceira fase para a Operação Verão — um reforço tradicional no policiamento da Baixada Santista que ocorre nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, mas que não seguia até então os moldes da Escudo.

Houve confusão nas nomenclaturas, o que atrapalhou até mesmo o trabalho de quem tem a função de fiscalizar as policiais. Em entrevista à Ponte, um dos promotores que integra o grupo criado pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) para investigar as mortes, destacou ser difícil delimitar a abrangência de cada uma das operações que estavam em andamento. Apesar disso, Derrite chegou a dizer em entrevista coletiva que, apesar da confusão na nomenclatura, ambas as ações tinham o mesmo modus operandi.

Durante 13 dias, Derrite transferiu o gabinete da pasta para Santos. A decisão aconteceu em 7 de fevereiro, quando do assassinato do cabo José Silveira Santos, do 2° Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), durante o serviço.

Política de morte 

Nas redes sociais, Derrite compartilhou mensagem sobre o fim das ações. “A operação cumpriu os seus objetivos”, disse em vídeo compartilhado na segunda-feira (1º/4). Um dia depois, ao ser questionado pela imprensa sobre os mortos, o secretário disse desconhecer o total de vítimas

“Olha, eu nem sabia que eram 56, eu não faço essa conta. Infelizmente são 56. Pra mim, o ideal é que não fosse nenhuma, mas no mundo real em que a gente vive, a negligência do combate ao crime organizado no Brasil e no estado de São Paulo chegou num ponto que qualquer viatura policial vai sofrer disparo de arma de fogo”, afirmou. 

A fala absurda, diz Rafael Rocha, tenta colocar Derrite como mero espectador. Como secretário, ele encabeçou e comandou essas ações, argumenta. “Ele até fala que fosse zero seria o ideal, como se fosse algo para além da capacidade e fora do controle dele, sendo o secretário da Segurança Pública de São Paulo”, diz. 

Para o Ouvidor das Polícias, Claudio Aparecido da Silva, a secretaria tem estabelecido como prioridades mortes e encarceramentos. O desejado, explica Claudio, seria a promoção de segurança que respeitasse os direitos humanos. “A política de morte não é uma política exemplar”, afirma.

Ao longo da Operação Verão, a Ouvidoria promoveu, com outras entidades, duas visitas a cidades da Baixada Santista. Foram colhidos relatos de familiares de vítimas que denunciaram o horror que estavam vivendo. Falaram em execuções e abordagens violentas que não pouparam nem mesmo idosos e crianças. O resultado são dois relatórios produzidos e entregues ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e à Defensoria

Entre os casos estão histórias contadas pela Ponte. Hildebrando Simão Neto, de 24 anos e cego, e Davi Gonçalves Júnior, 20, que tiveram a casa invadida por PMs quando esperavam o café; José Marques Nunes da Silva, 45, que foi abordado quando voltava para casa após um dia de trabalho como catador de latinhas; Leonel Santos, 36, e Jefferson Miranda, 37, que eram amigos de infância sendo baleados após se encontraram na rua depois que Leonel foi a uma pizzaria; o pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30, que foi morto em casa, que teria sido lavada diante de PMs antes de a perícia chegar.

As denúncias também foram encaminhadas ao governo por meio da Ouvidoria, mas Tarcísio e Derrite disseram desconhecer qualquer violação. Claudio diz que o governo não esteve aberto ao diálogo.

“O governador nunca me recebeu, e o secretário de Segurança Pública, desde a deflagração da Operação Escudo, não me recebeu mais e nem falou comigo. Nem por telefone, nem de forma nenhuma”, afirma o ouvidor. 

Baixada puxa mortes em SP

Em fevereiro, a Baixada Santista puxou as mortes em São Paulo. Das 88 registradas, 71,5% ocorreram em municípios da região — composta por Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe, Praia Grande, Santos e São Vicente. 

A região também registrou mais mortes cometidas pelas polícias do que vítimas de homicídios dolosos. Foram 43 contra 11 no mesmo período. É como se, a cada 10 mortes, quase oito tenham policiais como autores. O mesmo aconteceu em janeiro. Foram 20 mortes cometidas por policiais contra 11 homicídios dolosos.

A Operação Verão contou com 18 batalhões deslocados ao litoral. Destes, sete ainda não usavam câmeras corporais, segundo ofício assinado em 25 de março pelo chefe de gabinete da SSP, Paulo Mauricio Maculevicius Ferreira, à Procuradoria Geral do Estado (PGE), obtido pela Ponte.

Irmãos mortos pela PM

A técnica em enfermagem Maria Josefa da Silva perdeu o rumo. “Eu não tenho mais destino. Não tenho mais um direcionamento para saber para onde seguir”, fala. A morte dos dois filhos, diz, fez a vida perder o brilho.“Mal me curei de um, mal estava amenizado e já me levaram o outro.”

Por 22 anos, ela foi mãe de Matheus. O jovem cresceu querendo ser jogador profissinal de futebol. Chegou a passar por uma peneira na pré-adolescência, mas uma fratura na costela o impediu de seguir no esporte. “Eles [do time] falaram que, se não fosse isso, ele entrava”, conta Maria.

Matheus era o companheiro, braço direito, era quem fazia a mãe dar risada. O jovem queria se mudar com a família da comunidade da Barreirinha, no Guarujá. Ele tinha medo. Temia pelo que aconteceu com Luis Gustavo, o Peu. 

Por dois anos, Maria foi mãe de Peu. O adolescente deixou a casa da família biológica e passou a viver em abrigos, até parar na rua. Matheus, ao ver o amigo de infância passando por necessidade, arrecadou de casa alguns itens de higiene. Ao saber das condições precárias que Luiz passava, Maria pediu que ele viesse morar com eles. 

Os irmãos Peu (dir.) e Matheus (esq.) | Foto: Arquivo pessoal

Ajeitaram um beliche e a dupla de amigos passou a dividir o quarto. Eram irmãos, diz Maria, mãe de outros dois filhos que nutrem por Peu o mesmo sentimento familiar. 

Maria cuidou da saúde do adolescente. Fez com que ele tomasse todas as vacinas, tirasse sangue pela primeira vez e fosse medicado com doses de carinho. Sempre que podia, fazia o bolo favorito de Peu: de abacaxi caramelizado. “Ele amava”, conta. 

Peu foi morto quando ia ao dentista, segundo Maria. A PM diz que o encontrou vendendo drogas. Ao tentarem o abordar, ele teria corrido em direção a um mangue e sacado uma arma. A resposta foram tiros que o mataram. 

Depois da morte do Luiz, Matheus entrou “em surto”, diz a mãe. Ele tinha esquizofrenia e outros transtornos mentais. A doença foi confirmada em 2022, mas desde 2019, o jovem tinha sintomas. Por dois períodos, Matheus chegou a ficar internado em hospital psiquiátrico. “O surto ficou bem pior depois da morte do Luiz Gustavo”, conta a mãe. 

“Nesses delírios, ele chegava a falar com o Luiz Gustavo sozinho, dava risada. É como se o Luiz Gustavo estivesse ali, porque ele era muito apegado”, diz Maria. 

Em 28 de março, Maria foi com a filha e o neto ao mercado. Matheus ficou em casa. Foram menos de 20 minutos entre o trajeto e as compras. Com as mãos carregando sacolas, a técnica não conseguiu atender o celular que não parava de tocar. Quando finalmente chegou em casa, foi recebida com um aviso: “Mãe, o Matheus estava ali na frente e a polícia pegou ele”. 

Ela diz que nenhum vizinho viu a abordagem. “Ninguém viu. Não se sabe o que aconteceu naquele momento. Foi questão de minutos”. Um vídeo filmado poucos minutos antes da abordagem mostrou Matheus e William Sousa, 35, outra vítima da ação da PM.

Matheus estava encostado em um muro próximo à casa dele, segundo a mãe. Willian, que era pedreiro, estava no telhado de uma residência. A Ponte teve acesso ao vídeo. Na imagem, William parece estar pintando a telha.

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O vídeo mostra um clima de descontração entre os jovens. “Era 13h30 da tarde, quando o Mateus encostou onde o Willian estava trabalhando. Era na frente da minha casa. O dono da residência tinha pedido uma marmita e tinha ido buscar, e o homem que filmou eles tinha ido buscar a Coca-Cola. Só ficaram o Mateus e o William”, conta Maria.

Os corpos só foram retirados do local por volta das 19h. Maria só reconheceu o corpo do filho por volta das 11h do dia seguinte, em uma foto na tela de um computador. Matheus estava sem roupas e em um saco preto. 

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) questionando os pontos trazidos na reportagem. O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) também foi questionado sobre as apurações que envolvem a Operação Verão.

Em nota, a SSP-SP atualizou o balanço de mortes, prisões e apreensões. Também disse que as mortes são investigadas pela polícias Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário.

Veja nota na íntegra:

A SSP encerrou nesta segunda-feira (1º) a terceira fase da Operação Verão. A estratégia da Secretaria da Segurança Pública para combater o crime organizado por meio da asfixia financeira do tráfico de drogas resultou na prisão de 1.025 infratores – sendo quase a metade (438) de procurados pela Justiça -, e na apreensão de 47 menores. As Polícias Civil e Militar retiraram das ruas 2,6 toneladas de drogas e apreenderam 119 armas de fogo ilegais. Com esse trabalho foi possível a redução de 25,8% nos casos de roubos em Santos, São Vicente e Guarujá no primeiro bimestre do ano, quando comparado ao do ano anterior. Em toda a Baixada Santista, fevereiro de 2024 foi o mês com a menor taxa de roubos da série histórica, iniciada em 2001.

As 56 mortes contabilizadas no âmbito da Operação Verão a partir de 3 de fevereiro, quando houve a intensificação do policiamento por conta da morte do soldado Cosmo, decorreram da reação violenta de criminosos, que buscaram o confronto contra as autoridades policiais. Em todas as ocorrências foram apreendidas as armas utilizadas pelos criminosos, inclusive fuzis de uso restrito, e os casos são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário.

Para atuar na Operação Verão, foram mobilizados batalhões de diversas localidades do estado, além das unidades da própria região da Baixada Santista, e a disponibilidade das Câmeras Operacionais Portáteis (COPs) correspondeu a uma cobertura de 61% das unidades que integraram as atividades. Todas as imagens captadas nos eventos acompanhados pelo Ministério Público são fornecidas conforme requisição, e fazem parte do conjunto probatório apurado pela Polícia Civil na investigação de cada episódio de morte decorrente de intervenção policial.

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