Polícias mataram 138% mais pessoas em fevereiro em SP sob Tarcísio e Derrite

Em meio às operações Escudo e Verão do governo estadual, policiais foram responsáveis por quase oito em cada 10 homicídios cometidos na Baixada Santista; número foi o segundo mais letal para fevereiro em 11 anos

Manifestantes em ato contra a Operação na Baixada Santista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Manifestantes em ato contra operação na Baixada Santista, em São Paulo, em março de 2023 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

As polícias Civil e Militar mataram 88 pessoas em fevereiro deste ano, o que representou um aumento de 137,8%, quando foram contabilizadas 37 vítimas no mesmo período de 2023, de acordo com dados divulgados pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) na segunda-feira (25/3). O número é o maior desde 2020, quando o mês alcançou 98 mortes praticadas pelas polícias, e representa o segundo fevereiro mais letal nos últimos 11 anos.

Com mais força do que em janeiro, mais uma vez quem concentra e puxa a maior parte dos casos (71,5%) é a Baixada Santista, que é composta por nove municípios do litoral paulista: Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe, Praia Grande, Santos e São Vicente.

A Ponte ouviu familiares que contaram as histórias de parte dessas vítimas nessa região: Hildebrando Simão Neto, de 24 anos, e Davi Gonçalves Júnior, 20, que tiveram a casa invadida por PMs quando esperavam o café; José Marques Nunes da Silva, 45, que foi abordado quando voltava para casa após um dia de trabalho como catador de latinhas;  Leonel Santos, 36, e Jefferson Miranda, 37, que eram amigos de infância e foram baleados após se encontraram na rua depois que Leonel tinha ido a uma pizzaria; o pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30, que foi morto dentro de casa, que teria sido lavada diante de PMs antes de a perícia chegar.

A Baixada Santista vem, desde julho do ano passado, sendo alvo de operações após mortes de PMs, chamadas de Operação Escudo. A primeira foi deflagrada após a morte do soldado Patrick Bastos Reis, 30, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM, em 27 de julho do ano passado, no Guarujá, e provocou 28 mortes ao longo de 40 dias.

A segunda operação na região foi iniciada após a morte do PM Marcelo Augusto da Silva, 38, em 26 de janeiro na cidade de Cubatão, e foi inicialmente chamada de Escudo pela Polícia Militar, mas depois o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite voltou atrás e disse que as mortes pela PM eram parte da Operação Verão, que acontece sempre entre os meses de dezembro a fevereiro por conta do período de férias e alto deslocamento para as praias do litoral.

O banho de sangue piorou em fevereiro, quando o soldado Samuel Wesley Cosmo, 35, da Rota, foi assassinado durante um patrulhamento em Santos, em 2 de fevereiro. A câmera da farda que usava registrou o momento em que foi baleado e ajudou a identificar o suspeito pelo crime, que foi preso 12 dias depois em Minas Gerais.

Durante 13 dias, Derrite transferiu o gabinete da pasta para Santos. A decisão aconteceu em 7 de fevereiro, quando do assassinato do cabo José Silveira Santos, do 2° Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), durante o serviço.

As Operações Escudo são consideradas ações organizadas de vingança, criticadas por moradores de bairros pobres e por ativistas de direitos humanos pelas práticas de execuções, torturas e ameaças, que já foram denunciadas duas vezes na Organização das Nações Unidas (ONU) e também na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Uma comitiva liderada pela Ouvidoria das Polícias com 13 entidades de direitos humanos fez duas visitas, a primeira em 11 de fevereiro, em comunidades de Santos e de São Vicente, e a segunda em 3 de março, nas duas cidades e também em Cubatão. Além das denúncias reveladas pela Ponte, o grupo ouviu relatos de invasão de casas, ameaças contra crianças, abordagens violentas, agressões, desfazimento de cena de crime, além de entrevistar dois feridos e familiares de 12 pessoas que foram mortas.

Na última segunda-feira (25/3), uma audiência pública sobre a atuação da polícia na Baixada lotou o auditório da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (USP), ocasião em que o relatório da segunda visita foi entregue à Defensoria e ao Ministério Público.

Entre os casos está uma chacina de cinco homens, em São Vicente, em 27 de fevereiro. Dois deles tinham 17 anos e os demais 18, 24 e 32. Segundo testemunhas, os corpos teriam sido arrastados pelos agentes até um mangue. Apesar de a versão dos familiares diferir da dos PMs — que falaram em troca de tiros — uma perícia no local foi descartada, inviabilizando a produção de uma prova técnica.

Para o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, Renato Alves, houve “uma mudança de diretriz política do governo a partir da Operação Escudo”, que acentuou o aumento da letalidade policial que já vinha ocorrendo ao longo de 2023. “Tem ali uma anuência a esse tipo de policiamento que produz mais letalidade e essa é uma sinalização de que não só é aceitável como também é estimulado”, aponta.

Rafael Rocha, coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, afirma que a atuação na Baixada também gera um reflexo no estado como um todo. “É essa noção de que a letalidade, que o uso da força letal não está mais tão controlado, não existe uma supervisão mais tão forte, pelo contrário, tem sido recompensada. pelo que a gente entende no discurso dos gestores da secretaria, da Polícia Militar e do próprio governador.”

O pesquisador se refere, entre algumas declarações, à fala do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que menosprezou as denúncias e defendeu as operações. “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, declarou.

Além disso, apesar de a pasta sustentar redução de indicadores como furto e roubo na região da Baixada, Renato Alves e Rafael Rocha apontam que entender a dinâmica do crime depende de um contexto maior, envolvendo questões econômicas, territoriais e sociais, além da própria atuação do crime organizado, e não restritamente ao reforço do policiamento. Um exemplo é uma análise do Instituto Sou da Paz sobre a operação que aconteceu entre julho e setembro de 2023, em que todos os indicadores de criminalidade violenta aumentaram mesmo com forte emprego da PM.

“Parte também dessa letalidade está atribuída a esse tipo de solução para um problema de segurança, que é um problema concreto, mas são soluções rápidas, que aparentemente atendem uma demanda popular, e não necessariamente resolvem o problema da segurança pública”, afirma Alves.

Ele aponta, por exemplo, que a gestão atual não indicou atuação voltada à redução dos homicídios dolosos que, apesar da queda de 9,2% no estado (498 para 452), aumentaram em 7,5% na capital paulista (79 para 85) no bimestre. Só em fevereiro, subiram 19,4% na capital (36 para 43).

Além disso, para se ter uma noção, a Baixada Santista registrou mais mortes cometidas pelas polícias do que crimes de homicídios dolosos. Isso porque uma das formas consideradas para medir o uso da força é comparar a proporção das mortes pelas polícias em relação aos homicídios dolosos. Na Baixada, 75% das mortes intencionais na região foram provocadas pelo próprio Estado. É como se, a cada 10 mortes, quase oito têm policiais como autores.

Já no estado, essa relação no bimestre foi de 24,5%. No mesmo período do ano passado foi 12,9%. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que o ideal é a proporção de 10% de mortes pela polícia em relação ao total de homicídios, e os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que índice maior de 7% já seria considerado abusivo.

Para os pesquisadores, outra variável que compõe esse cenário é o sucateamento do programa de câmeras nas fardas da PM. A Ponte revelou, inclusive, que os 10 batalhões mais letais da corporação fazem parte do projeto. A Rota, por exemplo, que lidera esse ranking, computou 19 mortes em apenas dois meses, o equivalente à metade de vítimas que fez em 2023 inteiro (38). Dessas 19, 17 foram na Baixada Santista.

Nas operações Escudo e Verão, o mau uso dos equipamentos ou a não alocação para os batalhões que já estavam cobertos e foram para a Baixada Santista também acendeu um alerta para ativistas, moradores, pesquisadores e entidades de direitos humanos e da sociedade civil. Dos 18 batalhões que foram para o litoral por causa da Operação Verão, sete ainda não estavam no programa de câmeras, de acordo com um ofício assinado em 25 de março pelo chefe de gabinete da SSP, Paulo Mauricio Maculevicius Ferreira, à Procuradoria Geral do Estado (PGE), obtido pela Ponte.

Ele afirma no documento que não é possível prever todas as ações em que o efetivo precisa ser deslocado emergencialmente, como aconteceu na terceira fase da Operação Verão, deflagrada em 8 de fevereiro, e que nem todos os PMs teriam tempo hábil para testar e treinar o uso dos equipamentos. “Ademais, mesmo que isso fosse possível, a criminalidade saberia a região que restaria desguarnecida, impactando não somente a viabilidade da Operação que se queira efetivar, como também submetendo a risco parcela maciça da população paulista estabelecida nas regiões afetadas pelo remanejamento ocasional de ativos policiais”, justificou.

Como a Ponte mostrou, o governo estadual deixou de investir R$ 57 milhões no projeto e não destinou verba específica para as câmeras na Lei Orçamentária Anual para 2024. Entre idas e vindas de declarações contra o programa, tanto Tarcísio quanto Derrite sinalizaram que não iriam adquirir mais equipamentos além das 10.125 que estão em funcionamento desde 2022.

Porém, nesta terça-feira (26), o governo estadual anunciou que vai lançar um edital em maio para adquirir 3.125 câmeras que vão substituir as existentes. Segundo o comunicado, os equipamentos serão integrados ao Programa Muralha Paulista da secretaria a fim de permitir “novas funcionalidades”, como “a leitura de placas para a verificação de veículos roubados ou furtados”, por exemplo, maior conectividade, aprimorar o armazenamento das imagens e fortalecer “o compromisso de transparência das forças de segurança”.

Para Rafael Rocha, o anúncio traz desconfiança e merece atenção. “É uma notícia que nos alerta de vários sentidos desde o que está sendo proposto para as câmeras, que não está muito claro ainda, até de onde isso surge, sendo um governo que está há 15 meses tentando destruir o programa Olho Vivo, e agora aparece com esse edital para três mil câmeras”, afirma.

O que diz o governo

Questionada sobre o novo edital, a Fator F, assessoria terceirizada da SSP, enviou o mesmo release publicado no site. Já sobre os indicadores de letalidade policial, emitiu a seguinte nota:

A Secretaria da Segurança Pública esclarece que a comparação proposta pela reportagem, entre homicídios dolosos e mortes decorrentes de intervenção policial (MDIPs) não é correta, pois tratam-se de naturezas criminais distintas. As forças de segurança atuam para prender e levar à Justiça os infratores da Lei. Os casos de confronto são consequência direta da reação violenta de criminosos à ação da polícia no combate ao crime organizado. Somente nos dois primeiros meses do ano, 33.160 criminosos foram presos, um aumento de 8,5% em relação ao primeiro bimestre de 2023. No mesmo período, a apreensão de armas cresceu 33,4% e mais de 26  toneladas de entorpecentes foram retirados das ruas, uma média de 400 quilos por dia. Como resultado do empenho das forças de segurança paulistas, o Estado de São Paulo fechou fevereiro com os menores índices de casos e vítimas de homicídios dolosos em 24 anos, o que se estendeu para crimes patrimoniais, como roubos de veículos e a banco, que também foram os menores desde 2001.

Todos os casos de morte decorrente de intervenção policial são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Medidas para a reduzir a letalidade são permanentemente avaliadas e adotadas. As instituições também investem no treinamento do efetivo, na aquisição de equipamentos não letais e em outras iniciativas voltadas ao aperfeiçoamento dos agentes de segurança.

Atualmente, 10.125 câmeras corporais portáteis (COPs) estão em operação, abrangendo 52% dos policiais militares do Estado.  Somado a isso, está em andamento uma licitação para a contratação de mais três mil dispositivos para serem acoplados às viaturas e foi anunciado o lançamento de um novo edital que irá substituir parte dos equipamentos existentes por outros, mais modernos e com novas tecnologias.

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