PMs da Rota defendidos por Derrite são acusados de executar jovem negro

Luiz Fernando Alves de Jesus, de 20 anos, foi morto em fevereiro de 2023. Na época, o secretário da Segurança Pública paulista disse em rede social que não afastaria os policiais da Rota “até que se prove o contrário”

Luiz Fernando tinha 20 anos | Foto: arquivo pessoal

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) acusou neste sábado (12/10) policiais militares da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da PM paulista, pela morte de Luiz Fernando Alves de Jesus, de 20 anos, ocorrida em fevereiro de 2023.

O caso ficou conhecido após um vídeo mostrar o jovem sendo baleado pelos PMs caído no chão, quando houve uma tentativa de roubo no cruzamento de um semáforo na Avenida Cecília Lottenberg, zona sul da capital paulista. Uma mulher que passava próximo ao local foi ferida de raspão. Na época, o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, declarou, em postagem no X (antigo Twitter) que nenhum policial seria afastado “até que se prove o contrário” — antes de qualquer investigação ocorrer.

A promotora Luiza Favaro Batista entendeu que o sargento Richard Wellyngton Vetere e o soldado Filipi Rufino de Andrade executaram Luiz sem que ele tivesse chance de defesa. “O crime de homicídio foi praticado com emprego de recurso que impossibilitou a defesa da vítima Luiz Fernando, o qual estava correndo no sentido contrário da da viatura policial, sem que pudesse oferecer qualquer risco aos milicianos, quando foi alvejado pelos policiais militares”, escreveu na denúncia.

Richard e o cabo Leonardo da Silva Carvalho foram acusados de fraude processual porque, segundo a investigação, apresentaram depois na delegacia uma pistola calibre .40, sendo que a perícia encontrou apenas uma arma de brinquedo junto ao corpo da vítima.

O sargento ainda foi denunciado por omissão de socorro por ter impedido uma paramédica de atender o jovem ao dizer: “Isso aqui é um bandido. A vítima é uma pessoa lá que estava passando.”

Quanto à mulher ferida de raspão, a promotora pediu o arquivamento do caso ao argumentar que não foi possível descobrir quem atirou nela, pois não foi apreendido o projétil para fazer a perícia e comparar com as armas dos policiais.

Agora, cabe ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidir se torna ou não os policiais réus pelos crimes.

Leia também: PMs da Rota executaram jovem negro e plantaram arma, aponta Polícia Civil

No ano passado, a Ouvidoria das Polícias pediu o afastamento das ruas dos policiais envolvidos para a apuração do caso, o que foi criticado pelo secretário Derrite três dias depois da morte de Luiz Fernando. “Nenhum policial que sai de casa para defender a sociedade será injustiçado. Confrontos sempre serão apurados, mas ninguém será afastado no caso da abordagem da ROTA que evitou um assalto no semáforo. Até que se prove o contrário, a ação ocorreu dentro da lei”, postou na rede social.

Reprodução do tweet feito pelo secretário Guilherme Derrite, em 12/2/2023

Em entrevista à Ponte no ano passado, a mãe de Luiz Fernando, Sandra de Jesus, 40, cobrou um posicionamento do secretário. “O Estado nunca me procurou. A minha esperança é que o secretário de Segurança tome um posicionamento. Ele em nota no Twitter disse que tomaria providências depois que tivesse provas. Agora os policiais já estão cientes de que são acusados por homicídio, então quero saber qual é a providência que ele vai tomar”, disse, inconformada.

Sandra está sendo acompanhada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) por meio do projeto Rede Apoia — que começou para vítimas de violência letal e, após críticas, acabou dando ênfase a atendimento jurídico e psicossocial a vítimas e familiares de vítimas de violência estatal. Antes mesmo de a Polícia Civil solicitar imagens das câmeras das fardas, a defensora Andrea Castilho Nami Haddad Barreto fez uma série de solicitações de diligências para a apuração, como a busca por câmeras de segurança na região onde Luiz foi morto e o chamado feito ao Copom pelos PMs.

‘Roubo não permite execução’

A conclusão do MP-SP foi semelhante à da delegada Aline Martins Gonçalves, como a Ponte revelou há um ano. De acordo com a investigação obtida pela reportagem, as imagens das câmeras corporais usadas pelos PMs mostraram uma dinâmica distinta daquela narrada no boletim de ocorrência.

Luiz e um adolescente de 16 anos tinham roubado um casal em uma moto por volta das 18h40 de 10 de fevereiro de 2023, na avenida. Os policiais disseram ter sido avisados por motoristas sobre um roubo de motocicleta que estaria acontecendo no semáforo adiante da via e viram a dupla, sendo o garupa armado, e duas vítimas rendidas. Luiz e o outro jovem tentaram correr em direções opostas.

Ao se aproximarem, afirmaram os PMs, “o garupa virou em direção aos policiais com a arma em punho, na iminência de utilizá-la, quando então Richard realizou quatro disparos de fuzil calibre 7.62 e Filipi dois disparos de pistola calibre .40”.

O sargento e o soldado foram atrás de Luiz, que estava caído no chão e, segundo os policiais, “tentou acessar a arma de fogo por baixo do corpo para usá-la contra os policiais quando então Richard disparou o fuzil mais uma vez em direção ao indivíduo, que faleceu no local”.

Leia também: Mesmo com câmeras corporais, letalidade policial tem nono aumento consecutivo sob Tarcísio

O adolescente, desarmado, acabou detido pelos cabos Leonardo da Silva Carvalho e Renaud Fernando Dias Campos.

Os PMs disseram que recolheram uma pistola .40 que estaria com Luiz, que foi apresentada por eles depois na delegacia — o que, para a delegada, mostra que houve manipulação da cena do crime. Com Luiz, no momento da perícia, foi encontrada uma arma de brinquedo nas roupas.

As vítimas do assalto disseram que os rapazes mostraram “uma arma de cor preta” e que logo uma viatura da Rota chegou, que puderam ouvir um disparo antes mesmo de os policiais saírem da viatura e depois mais dois tiros quando Luiz correu para a praça “com uma arma na mão”. Já o adolescente disse que Luiz estava com uma arma de brinquedo.

Posteriormente, uma das vítimas reconheceu a arma de brinquedo, disse que os policiais “já chegaram atirando” e que se jogou no chão com medo de ser atingida por eles. Também afirmou que Luiz correu em sentido à praça e não se virou em direção aos policiais, sendo que não o viu apontar arma nem disparar contra os PMs.

Nas imagens das câmeras das fardas dos policiais, segundo o relatório, “não é possível ver Luiz Fernando apontando nenhuma arma ou simulacro de arma de fogo em direção aos policiais militares. É possível ver Luiz Fernando de costas para os policiais, correndo em direção à praça enquanto tiros são disparados”.

Os círculos pretos indicam os locais por onde os tiros entraram: um na coxa, perto do glúteo, um nas costas e outro no abdômen de Luiz; círculos com um “x” são onde tiros saíram. | Foto: reprodução/Polícia Técnico-Científica

Pelas filmagens, a delegada destaca que Richard e Filipi, ainda dentro da viatura, atiram em Luiz Fernando quando ele ainda estava com as mãos no guidão da motocicleta e, “com o susto”, saiu correndo em direção à praça. “Em momento algum Luiz Fernando saca qualquer arma de fogo ou simulacro ou direciona qualquer objeto contra os policiais militares”, afirma Aline Gonçalves.

Os disparos efetuados quando os PMs ainda estavam dentro da viatura, diz ela, foram uma conduta “ilegal dentro do ordenamento jurídico e contrária ao Regulamento da Polícia Militar”, porque eles não fizeram nenhum comando de ordem de parada ou verbalizaram “parado, polícia” — como previsto no procedimento da PM.

“As imagens são claras quanto ao momento em que Luiz Fernando estava com as mãos para cima, completamente livres de objetos, o corpo estirado ensanguentado no chão, totalmente impossibilitado de reagir, quando Richard, acobertado por Filipi, dispara um tiro de fuzil 7.62 em Luiz Fernando”, escreve a delegada.

O relatório indica que Richard dá ordem para Filipi “passar” a fim de que ele fique com sua câmera corporal direcionada para outro lado, ficando de costas para Luiz Fernando. Pelo equipamento de Filipi, “não há qualquer arma ou simulacro” com Luiz Fernando, já que Richard “procura a arma nos dois lados de seu corpo, não acha e, então, esconde parte da câmera com o fuzil que porta. Virando um pouco de lado, grita aos demais que estaria desarmando Luiz Fernando”. A descrição é semelhante às reveladas pela Ponte em outra abordagem da Rota no mesmo ano, que acabou com dois mortos e um ferido.

Leia também: Câmera de rua flagra ação suspeita de PM ignorada por câmeras corporais

A delegada entendeu que os PMs praticaram fraude processual pois, na abordagem registrada pelas câmeras das fardas, o simulacro não foi encontrado por eles e sim pela perícia e que a pistola foi plantada por ter sido apresentada depois. “Ademais, em momento algum essa suposta arma de fogo encontrada por Richard com Luiz Fernando é mostrada nas imagens das câmeras corporais, nem em qualquer outro lugar. Em determinado momento, ouve-se — na câmera de Richard — um som de zíper abrindo e fechando e um som que parece ser do manuseio de uma arma”, argumenta.

Além disso, Richard disse ao seu superior hierárquico que houve troca de tiros, embora isso não tenha acontecido, e a pistola aparece a todo o momento nas mãos dos policiais que ainda tiveram o cuidado de dizer nas filmagens para evitar “molhar” a arma, ou seja, não deixar vestígio próprio na pistola — o que, para ela, foi algo ensaiado para parecer acidente de procedimento na preservação correta da cena do crime. O cabo Leonardo ainda tira munições da arma com a alegação de “deixá-la mais segura”.

Os policiais também omitiram socorro, segundo a delegada, porque Richard diz ao seu superior que a moça que fora atingida de raspão “estava bem” e, quando o resgate chega para atender Luiz Fernando, o sargento impede a paramédica de se aproximar do jovem. Diz: “Isso aqui é bandido, a vítima é uma pessoa lá que estava passando.” Isso acontece às 19h05: só vinte minutos depois os policiais permitem que os paramédicos socorram Luiz, afirma o documento.

‘Execução covarde’

Aline Gonçalves argumentou no relatório que a vítima estar praticando um roubo “não autoriza os policiais militares a executá-la covardemente” e que os policiais não tentaram defender a si mesmos nem as vítimas do assalto.

Em abril deste ano, a paramédica foi ouvida e confirmou que o policial a impediu de fazer o socorro e lhe disse que Luiz “já estava morto”. Por isso, foi em direção à mulher que foi baleada de raspão.

A delegada também ouviu, a pedido do MP-SP, o tenente Rodrigo Monteiro Martins, que aparece nas imagens quando o sargento impede a paramédica de prestar socorro. Ele negou ter feito a declaração “isso aqui é bandido” e disse não saber quem poderia ter dito isso porque a servidora não relatou pessoalmente sobre o fato.

Na ocasião, os PMs não prestaram depoimento. Isso porque a Lei do Pacote Anticrime, de 2019, incluiu no Código de Processo Penal que todo agente de segurança pública que estiver envolvido em crimes ou tentativas de crimes dolosos (quando há intenção) contra a vida não é obrigado a dar depoimento antes de constituir um advogado ou defensor público em até 48 horas e ser citado, ou seja, ser formalmente informado da investigação.

Contudo, mesmo citados, eles não depuseram no inquérito da Polícia Civil e se mantiveram em silêncio. A advogada Elizete Mara Custódio Alves, que representa Richard Vetere, chegou a contestar a imparcialidade da delegada, ainda em outubro do ano passado, pedindo que houvesse troca na condução da investigação, o que não foi atendido. Mesmo o MP pedindo e a Justiça concedendo mais prazo para diligências complementares, inclusive para ouvir os policiais, os PMs nunca se apresentaram.

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Na outra investigação paralela, no âmbito administrativo, o tenente-coronel Rogerio Nery Machado, então comandante da Rota, entendeu que os PMs agiram em legítima defesa pois, segundo ele, “as provas não permitem divergir das versões apontadas pelos policiais militares e provas testemunhais”. O inquérito foi encerrado em três meses.

A análise das câmeras corporais nesse inquérito, feita por um policial encarregado, se restringiu ao início da abordagem até o momento em que Luiz é baleado uma última vez caído ao chão. O crime de omissão de socorro sequer foi apurado, a paramédica também não foi ouvida e ainda não foram contestados os procedimentos de atirar antes de se verbalizar para a abordagem. Essa apuração foi enviada à Justiça Militar que, por sua vez, por entender se tratar de crime doloso contra a vida, encaminhou à Justiça Comum.

O que dizem as autoridades

A Ponte pediu entrevista com os policiais militares acusados e com o secretário Guilherme Derrite à Secretaria da Segurança Pública. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu sobre as entrevistas e enviou nota dizendo que o IPM estava em andamento. A reportagem contatou novamente a assessoria apontando que o inquérito da corporação já tinha sido arquivado. Após reconhecer o equívoco, a pasta respondeu:

A Polícia Militar esclarece que o Inquérito Policial Militar – IPM foi encaminhado à Justiça comum com solicitação de mais prazo para continuidade das investigações a fim de esclarecer todas as circunstâncias do caso. A corporação aguarda o retorno do Poder Judiciário para concluir as apurações e tomar as medidas cabíveis.

Buscamos pelo advogado Wanderley Alves dos Santos, que defende Filipi Rufino, mas não houve retorno.

Não conseguimos localizar os contatos da advogada Elizete Mara Custódio Alves, que representa Richard Vetere, nem defesa de Leonardo Carvalho. O espaço segue aberto caso queiram se manifestar.

Reportagem atualizada às 19h50, de 14/10/2024, para incluir resposta corrigida da SSP.

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