Moradores de Sapopemba, em São Paulo, fecharam avenida em protesto. Polícia Civil ignorou testemunhas, não ouviu PMs que mataram o jovem e aceitou como prova arma entregue na delegacia, longe da cena do crime
“Eu sou evangélica e acredito que todos nós vamos ser levados daqui um dia, mas eu não esperava que meu filho fosse levado de mim desse jeito.” O desabafo é de Gislaine Sabino dos Santos, 34 anos, sobre a morte do filho Wenny Sabino Costa Martin, 18, ocorrida na quarta-feira (25/11). A morte do jovem, nas mãos da PM do governo João Doria (PSDB), gerou revolta entre os moradores de Sapopemba, na zona leste da capital paulista, que foram às ruas protestar fechando a principal avenida do bairro.
As chamadas de TV e de alguns portais de notícias, na última sexta-feira (27/11), reproduziram a versão dada pela polícia de que manifestantes fecharam com pneus a Avenida Sapopemba, próximo ao número 17.000, por causa da morte de “um homem da comunidade após troca de tiros com a polícia”, o que gerou ainda mais revolta dos que seguravam faixas de “favela pede paz” e da mãe de Wenny. “Meu filho sempre foi um menino bom, ia começar a trabalhar com o pai em manutenção de elevadores, ia fazer um curso técnico de radiologia”, lamenta Gislaine. “Eu vou correr atrás de justiça por ele e por essas crianças que estão sofrendo até agora”, prossegue.
Ela se refere aos dois adolescentes de 13 anos e duas crianças de 5 e 3 anos de uma família que teve a casa invadida por policiais militares. Eles viram Wenny ser morto e agora estão traumatizados. “Eu não consegui entrar direito nesse banheiro para tomar banho e ir para a igreja, é muita dor ver que isso aconteceu na minha casa e poderia ter sido um dos meus filhos”, declara, chorando, a dona da residência. “A gente não quer mais ficar aqui nessa casa, mas para onde a gente vai?”, questiona.
Um dos adolescentes relatou à reportagem que estava limpando a casa enquanto os sobrinhos pequenos viam televisão. Por volta de 11h40, Wenny teria batido na porta pedindo ajuda. “Ele entrou aqui e ficou assistindo TV com os meninos, logo depois vieram dois policiais. Um deles apontou a arma na minha cara, mandando eu sair, eu fiquei sem reação”, conta uma das testemunhas.
Em seguida, segundo as testemunhas, um dos policiais, branco e de olhos claros, puxou Wenny e o empurrou até o banheiro, gritando “perdeu, perdeu”. “O Wenny falou ‘perdi, perdi’ de mão para cima e o policial atirou nele e o Wenny falou ‘ai'”, relata. As testemunhas ouviram três disparos. Outro PM “moreno e com bigode”, segundo os adolescentes, subiu para o cômodo de cima e trancou o outro adolescente da casa, que conta que foi ameaçado com uma arma na cabeça. “Quando eu ouvi os tiros, eu pulei da janela de desespero”, disse o menino, que teria descido pelo telhado da casa vizinha.
Eles ainda denunciam que os policiais puxaram Wenny, já baleado, para fora do banheiro e o deixaram de bruços na cozinha. Ninguém viu arma com ele. “Eu tinha saído para ir ao posto de saúde, a gente ouviu os tiros e voltou correndo para ver o que era”, explica uma das irmãs maiores dos adolescentes. “A gente ficou desesperado quando soube, tentando saber das crianças. Eu só consegui ver os pés do Wenny no chão. Eu perguntei para o policial ‘vocês não vão ajudar o menino?’. O policial disse: ‘ajudar como se ele já tá morto?'”, declara.
Quando moradores foram até a viela para ver o que tinha acontecido, os policiais jogaram spray de pimenta neles. Uma das irmãs das testemunhas levou um chute na perna. “Se o Wenny fez alguma coisa de errado, o certo era prender, não matar. Eles entram aqui assim porque é favela e não é a primeira vez e nem a última que isso acontece”, lamenta.
“Meu filho só disse que ia sair para fumar e não voltou mais. A gente não tem pena de morte no Brasil, por que os policiais mataram e não prenderam meu filho?”, questiona Gislaine.
A versão policial
O boletim de ocorrência, registrado no DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, baseou-se no depoimento de um PM, o sargento Bruno Honorato Antonio, que não participou da ação, já que os policiais civis preferiram não ouvir os PMs que mataram Wenny. Nenhuma testemunha foi ouvida, além dos próprios policiais militares.
O sargento informou que, por volta das 11h da quarta-feira, recebeu um chamado via rádio de uma ocorrência de roubo a um carro Jeep Renegade que teria acontecido pouco tempo antes na Rua Atabasca, em Santo André (Grande SP). Segundo o boletim, os policiais militares sargento Robert Ferreira Silva, cabo Cristiano Cardoso de Albuquerque e soldado Gustavo Marques Caetano, do 38º Batalhão da Polícia Militar Metropolitano, relataram que avistaram o veículo mencionado na Rua Adelia Chohfi e ligaram a sirene da viatura para fazê-lo parar, mas o suspeito não obedeceu e o trio decidiu persegui-lo.
Ao chegarem na Rua Leonice Alves Rodrigues, no bairro Parque São Rafael, na zona leste da capital paulista, os policiais afirmam que o único suspeito que estava no carro abandonou o veículo no local e fugiu a pé, “desceu por uma escadaria de concreto e correu para a direita, em uma viela, e depois à esquerda”. Em seguida, o sargento Robert e o soldado Gustavo afirmam que o suspeito invadiu uma casa de alvenaria.
Ao sargento Bruno, o soldado Gustavo teria dito que viu o suspeito “com uma arma de fogo em punho, de modo que efetuou um único disparo com sua pistola contra ele, visando se defender de uma iminente agressão” e que o homem correu depois para o banheiro da residência. No entanto, na delegacia, nem Gustavo nem Robert esclareceram se o suspeito chegou a disparar contra os policiais. O sargento Robert afirma que foi atrás do suspeito e que o encontrou “segurando uma arma de fogo” e, por isso, deu dois tiros nele. O homem caiu no chão e foi desarmado, na versão do PM. Wenny foi levado ao Hospital de Sapopemba, onde morreu.
A arma que supostamente teria sido usada pela vítima dos policiais, um revólver 32, foi levada pelos próprios PMs até a delegacia, em vez de apreendida no local pela perícia da Polícia Civil, como recomendam as normas de investigação. Os policiais alegaram que retiraram a arma do local do crime “por segurança”.
A mãe Gislaine questiona a alegação dos policiais de Wenny estar armado. “Ele foi atingido no braço direito e na barriga, só que meu filho era canhoto. Se eles fossem atirar no braço para desarmá-lo, não ia ser no direito. Isso não faz sentido”.
No boletim de ocorrência, os policiais relataram que a casa onde o rapaz foi baleado “estava sem moradores”. No local, afirmam ter localizado três cartuchos deflagrados de munição calibre .40, a usada por policiais, e um projétil de arma de fogo sem identificação.
Wenny só foi identificado no hospital, mas ainda assim a mãe dele afirma que mesmo levando todos os documentos, teve dificuldades de enterrar o filho. “No IML [Instituto Médico Legal] queriam colocar meu filho como indigente. Eu fui em várias delegacias e não me deram BO nem nada, disseram que o DHPP ia me ligar”, afirma Gislaine.
Ainda de acordo com o registro, um veículo Hyundai HB20 foi abandonado na Rua Paulo Nunes Feliz, na mesma região, mas não foi confirmada relação com o roubo do jipe. A dona do automóvel roubado em Santo André compareceu ao 55º DP (Parque São Rafael) e teria identificado “informalmente” Wenny como autor do assalto “por meio de uma fotografia que lhe foi exibida pela Corregedoria da PM”. O reconhecimento “informal”, como mencionado no boletim de ocorrência, não tem qualquer valor legal.
Os policiais que mataram Wenny nem chegaram a ser ouvidos pelos investigadores do DHPP, encarregados de apurar o crime. A Polícia Civil alega que a lei Pacote Anticrime, sancionada no ano passado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), prevê que os policiais devem ser ouvidos em uma investigação apenas sob a presença de um advogado, o que, para especialistas ouvidos pela Ponte em março deste ano, pode facilitar a destruição de provas. Os policiais têm até 48 horas para constituir um advogado, mas, após um decreto assinado pelo governador João Doria (PSDB), esse prazo pode ser prorrogado em caso de policiais militares que não constituírem defesa e que precisam solicitar defensor, que atuará de graça, pela Caixa Beneficente da corporação. O UOL revelou, em julho, que esse impasse jurídico tem travado as investigações de casos de mortes cometidas por PMs.
Leia também: Ministério Público reage a norma da lei anticrime que travou apurações de violência policial em SP
A perícia também não realizou os exames residuográfico, para identificar pólvora nos envolvidos, e papiloscópico, que identifica digitais, sob a alegação de risco de contágio de Covid-19. O laudo necroscópico fica a cargo do IML (Instituo Médico Legal). Desde março, a Secretaria de Segurança Pública estabeleceu novas regras para perícia por causa da pandemia.
Para especialistas, investigação começou mal
Para o professor da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rafael Alcadipani, “não faz o menor sentido um terceiro policial que não participou da ação narrar os fatos que aconteceram”. Para ele, a lei do Pacote Anticrime pode estar sendo usada para “esquivar a responsabilização dos policiais”. “A polícia precisa analisar essas ocorrências e conduzir essas investigações com seriedade para que [o uso dessa lei] não mine a credibilidade da instituição”, analisa.
O tenente-coronel da reserva da PM paulista Adilson Paes de Souza, mestre em direitos humanos e doutor em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo), concorda. “O fato de outro PM apresentar a ocorrência foi uma maneira que encontraram para que os PMs, envolvidos diretamente no fato, não apresentassem qualquer versão”, avalia.
Para ele, também é “grave” que a perícia não fez os exames residuográfico e papiloscópico, que poderiam ter sido realizados, segundo ele, com devido equipamento de proteção individual. “Tudo leva a crer que será mais um caso cuja apuração ficará parada, premiando a impunidade”, critica Adilson.
O que diz o governo João Doria
A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública a respeito da versão de familiares e testemunhas, sobre o registro da ocorrência e o reconhecimento feito pela vítima do roubo.
A In Press, assessoria de imprensa terceirizada da pasta, não respondeu às perguntas e enviou a seguinte nota:
“O caso é investigado pelo DHPP, que instaurou inquérito policial. Todas as circunstâncias da ocorrência são apuradas. A equipe também procura por testemunhas e câmeras de segurança. A Polícia Militar também apura os fatos por meio de IPM”.
A Ponte não conseguiu localizar contatos nem possível defesa dos policiais envolvidos.
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