Podcast ‘Justiça em Preto e Branco’ mostra como impunidade estimula o racismo policial

Produção do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV fala das omissões recorrentes da polícia, do MP e do sistema de justiça na responsabilização de oito casos emblemáticos e mostra importância da visibilidade às vítimas

Podcast “Justiça em Preto e Branco” é apresentado pelo ator Christian Malheiros e pela criadora de conteúdo Andreza Delgado. | Foto: Reprodução/Instagram

Há quase três anos, uma série de vídeos que mostravam uma operação policial durante um baile funk dentro de uma comunidade da zona sul da capital paulista viralizava nas redes sociais denunciando a agressividade e as mortes provocadas pelos PMs. Até hoje, as famílias dos nove jovens mortos no Massacre de Paraisópolis ainda aguardam a responsabilização dos envolvidos.

O sentimento de injustiça é o mesmo entre os familiares das vítimas de outro massacre: o que ocorreu dentro do Casa de Detenção do Carandiru em 1992 e deixou 111 vítimas. Na época, foi possível acompanhar os desdobramentos do caso nos telejornais. Mas, mesmo após 30 anos, nenhum agente de segurança pública cumpriu pena.

Essas duas chacinas e outros seis casos emblemáticos e de grande repercussão nacional são temas do novo podcast “Justiça em Preto e Branco”, lançado pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito (NJRD) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e apresentado pelo ator Christian Malheiros e pela criadora de conteúdo Andreza Delgado.

A produção é fruto da pesquisa “Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros: Contextos Sociais e Narrativas Legais no Brasil (1992-2020)” que deverá ser lançada em breve pela organização. Para fazer o recorte racial, o projeto se baseou em dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que apontam que 78,9% das vítimas de letalidade policial em 2020 eram negras, e destrinchou o modus operandi racista das intuições que acarreta na falta de punição e responsabilização.

Além dos Massacres de Paraisópolis e do Carandiru, o podcast traz as vozes dos personagens envolvidos no caso da Favela Naval, de 1997, quando uma operação policial culminou em abusos e tortura, incluindo a morte do mecânico negro Mário José Josino, em Diadema (ABC Paulista); na Chacina do Borel, na qual os jovens negros Carlos Magno Nascimento, Tiago Correia, Carlos Alberto Pereira e Leandro Reis foram assassinados pela PM do Rio de Janeiro em 2003; o caso Amarildo, homem negro vitima de desaparecimento forçado e tortura da polícia também no Rio em 2013; a Chacina do Cabula, de 2015, com doze jovens negros mortos em Salvador (BA); o caso Luana Barbosa dos Reis, mulher preta, periférica e lésbica que foi espancada até a morte por policiais militares no interior de São Paulo em 2016; e o mais recente caso de João Alberto Freitas, que foi espancado e asfixiado por seguranças do supermercado Carrefour em Porto Alegre (RS) há dois anos.

Ao todo, foram 140 vítimas em casos que ocorreram num intervalo de três décadas. Todos eles trouxeram indignação social e uma cobertura relevante da imprensa, que muitas vezes ajudou a pressionar para que houvesse investigação da polícia e ação do Ministério Público. O podcast destaca o que aconteceu com esses crimes dentro do sistema de justiça.

“O que a gente encontrou foram alternativas e estratégias para não responsabilizar os responsáveis pelos crimes e também para impedir o andamento dos próprios processos judiciais”, afirma Juliana Farias, pesquisadora do NJRD e uma das coordenadoras da pesquisa. Apesar de uma amostra pequena de casos, os pesquisadores identificaram fatores recorrentes que dificultaram a punição, como a anulação da condenação do júri por outras instâncias do sistema de justiça e a culpabilização das vítimas. 

No caso do Massacre do Carandiru, as condenações de 74 PMs proferidas pelo júri chegaram a ser anuladas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 2016 e só foram restabelecidas após uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Já no caso Luana Barbosa, a versão dada pelos policiais na época do crime era de que a vítima havia se auto-lesionado dentro da viatura após a abordagem.

Outro fator que é apontado nos episódios do podcast é a omissão e a “inércia” do Ministério Público que impede o andamento do processo ou questionamentos em torno de absolvições, incluindo casos em que policiais retornam às suas corporações após cumprirem pena, como no caso Amarildo. Para Juliana Farias, o MP é um dos agentes mais importantes nesse processo, mas não o único. 

“A questão é que para chegar em outras instâncias o Ministério Público [é quem] decide, né? Se o caso vai a frente ou não. Ou vai ser arquivado. Então, tem uma tradição que já não é novidade, outras pesquisas provam, que o Ministério Público arquiva a maior parte dos casos de pessoas negras assassinadas durante atuações de agentes de Estado armados em serviço”, explica.

O sociólogo e pesquisador do Afro-Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial), Paulo César Ramos, que também coordena o estudo que embasa a produção do podcast, diz que boa parte dos homicídios ainda sofrem com a falta de apuração para saber suas circunstâncias e que a palavra dos policiais é tomada como única verdade possível. 

Segundo ele, o racismo estrutural do sistema permite que esses métodos se repitam. “Existe uma mentalidade no sistema de justiça brasileiro que ainda não conseguiu se atualizar em termos democráticos, em termos modernos. Existe uma mentalidade que ainda entende que determinados grupos da sociedade são criminosos, intrinsecamente perigosos, e que eles devem sim passar por processos de controle repressivo”, analisa.

O papel da imprensa e dos movimentos sociais

Além de elencar as omissões das instituições, o podcast do Núcleo de Justiça Racial e Direito ouve familiares das vítimas da violência de Estado que enfrentaram ou ainda enfrentam uma longa batalha na Justiça. A mensagem passada pelo programa reforça uma recomendação feita pelos próprios pesquisadores: a necessidade de visibilidade às testemunhas e aos familiares e a responsabilidade da imprensa. 

Juliana Farias explica que muitas vezes a versão policial é noticiada na imprensa hegemônica com destaque e como “oficial”, perpetuando uma “visão de criminalização dos territórios de favela, dos territórios negros, da população negra brasileira como um todo”. 

“As famílias dessas vítimas não estão trazendo apenas um uma posição de sofrimento ou uma denúncia que vem apenas pela dor. Essas pessoas, infelizmente, lidam de forma muito cotidiana com essa violência do Estado. Elas fazem análises políticas dessas situações. São essas pessoas que trazem a versão prioritária dessas situações”, pontua.

Em relação aos movimentos sociais e a memória dos casos, o sociólogo Paulo César Ramos avalia que há um desafio de construir uma agenda a longo prazo e trazer a compreensão de que o problema do racismo é central. “Existia uma campanha em curso nos anos 2010, depois de 2007, contra o genocídio da população negra que estava tomando as ruas. Estavam todas as organizações negras de São Paulo envolvidas nisso, Movimento Mães de Maio, outros movimentos de direitos humanos. Era uma campanha que procurava combater a violência policial de modo estrutural”, recorda.

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“Quando ocorrem aquelas manifestações de rua de junho de 2013 e depois o caso Amarildo, a campanha contra o genocídio da juventude negra é ‘engolida’ pela luta contra a desmilitarização, que acaba assumindo uma coloração branca do ponto de vista de quem defende e de quem olha essa agenda. A agenda hegemônica dos direitos humanos ainda não compreendeu que o racismo é o principal problema e somente vê as mortes como uma herança do regime militar”, conclui.

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