Estatuto do Desarmamento prevê porte para policiais em todo o país, mas delega às corporações como regular armas de sua propriedade; especialistas explicam e questionam lacunas nas regras
Após a morte do campeão mundial e lutador de jiu-jitsu Leandro Lo, no domingo (7/8), tanto nas redes sociais como no protesto de lutadores e amigos em frente à delegacia, voltou à discussão a possibilidade de policiais fora de serviço entrarem armados em eventos privados. Na ocasião, o tenente Henrique Velozo foi identificado por foto como o homem que atirou em Lo após uma discussão por causa de uma garrafa de bebida durante um show do grupo de pagode Pixote. Ele foi indiciado por homicídio qualificado por motivo fútil e está preso temporariamente (30 dias prorrogáveis) após ter se apresentado na Corregedoria da PM. A investigação está em sigilo.
A Ponte já reportou outros casos de policiais de folga armados que se envolveram em crimes em estabelecimentos privados. Em fevereiro, durante uma briga em um bar, um soldado da PM disparou e outro chutou contra a cabeça de um homem em São Sebastião, no litoral paulista. Em agosto de 2021, um cabo matou um jovem negro de 20 anos após discutir com ele em um bar por ter achado que tinha furtado seu celular, mas estava no carro, na capital. Em outubro do ano passado, um soldado foi condenado a 13 anos de prisão após ter matado um estudante de 23 anos após uma discussão por conta de uma taxa de R$ 5 em uma tabacaria na zona leste da cidade de São Paulo.
No caso do lutador, o coordenador de segurança contratado para o evento, Moisés Amorim, disse ao UOL que havia pelo menos mais seis policiais armados, entre civis, militares e federais, e que os 40 vigilantes que atuavam no clube estavam desarmados. Não foi divulgado se Velozo tinha ou não ingerido álcool no local. A orientação passada, segundo ele, foi anotar o nome da pessoa e a identificação da arma e que, numa eventual briga, seria difícil a equipe atuar contra uma pessoa armada. “A gente toma duas cervejas e não pode pegar carro. Por que os caras podem beber uma garrafa de uísque com a arma na cintura? Sendo policial ou não, isso está errado”, criticou Amorim.
Diante dessa questão, a Ponte consultou o que dizem a lei e especialistas sobre o assunto.
Policial pode entrar armado em balada, casas noturnas, shows e eventos fechados?
Depende. O Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) estabelece em seu artigo 6º que todos os integrantes de forças de segurança pública (Forças Armadas, polícias, guardas municipais, etc) podem ter o porte de arma em todo o território nacional, ou seja, podem transitar em qualquer espaço. No entanto, ficou estabelecido que essas corporações estabelecerão “em normas próprias, os procedimentos relativos às condições para a utilização das armas de fogo de sua propriedade, ainda que fora do serviço”. Essa previsão está no artigo 26 do decreto 9.847/2019, que manteve essa disposição que existia desde 2004.
Com isso, há diferenças entre os estados. Em São Paulo, as polícias Civil e Militar são autorizadas a portar armas, seja particular ou de propriedade do governo, durante a folga em locais privados e com aglomeração de pessoas desde que não exponham essa arma de forma ostensiva (visível) e informem seus dados funcionais (demonstrar que é policial de fato) e registro da arma.
A justificativa é de que o policial está “permanentemente em serviço” e que pode ser acionado a qualquer momento, explica a desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Ivana David. “O policial é policial 24 horas, ainda que esteja no seu horário de folga, porque o entendimento é que ele tem que servir à sociedade, servir ao cidadão”, afirma.
“Por isso, no caso da Polícia Civil, por expressa disposição da Lei Orgânica, o policial civil deve sempre portar sua funcional e distintivo, e, por consequência, sua arma de fogo (para desempenhar sua atividade em caso de necessidade, usa-la para sua defesa ou de terceiros)”, complementa Dario Nassif, delegado e secretário-geral da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP).
Os dois também apontam que, mesmo se o estabelecimento tiver chapelaria ou guarda-volumes, o policial não é obrigado a deixar a arma nesses espaços e não pode ser proibido de ingressar no local. “É comum o controle em armários próprios dos estabelecimentos, o que pode não ser seguro ao policial e ao estabelecimento, por conta da possibilidade de furto do objeto, por exemplo”, diz Nassif. “Manda a prudência e os regramentos que o policial seja discreto e não mostre a arma ostensivamente”.
Na Bahia, por exemplo, há diferença entre as duas corporações: enquanto a Polícia Civil permite o porte nos mesmos moldes de São Paulo, a PM proíbe, desde 2005, que praças (a categoria mais baixa da corporação, como soldados, cabos e sargentos) portem armas “em locais onde haja aglomeração de pessoas, em virtude de evento de qualquer natureza, salvo autorização expressa do Comandante-Geral”.
E há ainda os que limitam totalmente. Em Goiás, desde 2014, uma portaria proibiu o uso de armas de fogo de propriedade do Estado por policiais fora de serviço dentro de casas noturnas, shows e boates. A medida se deu por pressão da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em Goiás (Abrasel Goiás) e após casos de brigas envolvendo policiais militares de folga que dispararam suas armas em eventos.
Em 2020, duas casas de show de Fortaleza tentaram pedir ao Tribunal de Justiça do Ceará a proibição do ingresso de policiais civis e militares armados nas dependências durante a folga. Contudo, o juiz Joaquim Vieira Cavalcante Neto negou o pedido com base no artigo 6º do Estatuto do Desarmamento. No ano passado, o tribunal também condenou uma boate a indenizar um delegado por proibí-lo de entrar armado no local e depois fazer uma campanha,com referência ao episódio, dizendo que álcool e arma não combinam. No Ceará também é permitido que policiais portem arma durante a folga em todos os espaços, sendo que a lei estadual que trata do Estatuto da Polícia Civil tem claramente a menção a “casas de diversões”.
Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar de São Paulo e membro do Fórum Brasileiro de Segurança (FBSP), Alan Fernandes, entende, porém, que se o Estatuto do Desarmamento determina, no artigo 34, que promotores de eventos em locais fechados, com aglomeração superior a 1000 pessoas, impeçam o ingresso de pessoas armadas que não sejam agentes da segurança pública, a medida deveria valer para todos, independentemente da categoria profissional.
“A arma potencializa demais os conflitos, sobretudo em locais de diversão pública em que você tem bebida, as emoções afloradas, um ambiente que pode ser costumeiro de ter desentendimento e até uma briga”, pontua. “Quando você tem uma arma na jogada, o resultado fatal é muito provável e tem uma capacidade de ferir muitas pessoas, uma capacidade lesiva muito alta, porque são muitas pessoas reunidas, então ninguém pode estar armado no local.”
O gerente de projetos do Instituto Sou da Paz e autor de Arma de Fogo no Brasil: Gatilho da Violência, Bruno Langeani, concorda. “Analisando o regulamento de São Paulo, a gente percebe que existem muito mais privilégios para o comportamento do policial com arma, para o abuso do policial com arma, do que para o civil [no Estatuto do Desarmamento], o que deveria ser ou igual ou até mais rigoroso porque o policial tem uma série de poderes que têm que ser controlados”, critica.
Alan Fernandes pondera que de fato os policiais, especialmente os que atuam nas ruas, correm riscos e, por isso, devem ter o porte durante folga, além de também poderem ser punidos se não reagirem quando presenciarem um crime acontecendo. No entanto, aponta que, a depender da situação, há outras maneiras de atuar. “Existe um leque de ações: se você está presenciando uma vítima de um roubo e não foi com a arma socorrer a pessoa, pode ligar para a polícia, ou seja, está dentro de um rol de ações que pode adotar”, exemplifica. “Existe essa cultura de que o policial tem que ir para cima, com arma.”
Se o policial estiver bebendo álcool, ainda assim pode estar armado?
O Estatuto do Desarmamento não faz referência sobre esse ponto quando se trata de agentes de forças da segurança pública. A perda da autorização do porte, prevista no parágrafo 2 do artigo 10, é entendida como de pessoas que estão fora dessa categoria, ou seja, civis que forem abordados ou detidos “em estado de embriaguez ou sob efeito de substâncias químicas ou alucinógenas”.
Para Alan Fernandes, do FBSP, essa é uma das lacunas do estatuto, que também gera a insegurança desses estabelecimentos. “Você não pode exigir de um cara que tomou álcool ter a capacidade de fazer a segurança de alguém, por menor que seja a dosagem. Se o local tem seguranças contratados para aquilo, ele vai estar identificado, não pode beber, e se não estiver armado, não vai ter como rivalizar com quem está”.
Dario Nassif, da ADPESP, aponta que mesmo que a combinação de álcool e uso/porte de arma não seja recomendada, esse tipo de situação pode ser configurada como contravenção penal, que são crimes de menor potencial ofensivo e cuja lei, em seu artigo 62, prevê prisão de 15 dias a três meses e pagamento de multa em caso da pessoa se “apresentar publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia” ou agravar a punição referente a algum crime que tenha cometido nessa circunstância.
“É importante ressaltar que a ausência de proibição legal específica não permite ao policial embriagar-se e portar arma, mesmo porque há regramento específico quanto a irregularidade e ilegalidade em se apresentar embriagado em público”, explica. “O policial estará sujeito à atividade da Corregedoria, podendo ser privado do porte e também submetido a julgamento em caso de conduta ilegal.”
A desembargadora Ivana David pondera que os policiais, justamente por serem uma categoria diferente que atua como garantidora da lei, devem atuar de forma exemplar. “Tudo depende de situações específicas e as instituições devem trabalhar isso, desenvolver expertise, treinamento para cada vez mais melhorar ou tentar alinhar o comportamento, que depende do comportamento psicológico de quem integra a corporação, mas cabe aos chefes dessas corporações cada vez mais preparar os policiais”, sugere.
O caminho, para Bruno Langeani, é que as lacunas sejam preenchidas com legislação e fiscalização. “Na omissão das instituições, eu vejo duas possibilidades: congressistas colocando a mesma restrição que tem para civil para policiais, então abrangendo essa restrição em aglomeração para todo mundo com porte, independente do porte ser funcional ou de defesa pessoal, e colocando a perda do porte nos casos de mau uso ou embriaguez, que nos parece essencial”, elenca.
“Uma terceira alternativa, no caso de uma omissão completa dessas instituições, seria ter uma atuação das associações de bares e restaurantes, de casas noturnas, para, em conjunto, fazer uma pressão ao poder público e disputar isso via judicial. Porque imaginar que um gerente de casa noturna, um segurança sozinho, vai conseguir peitar e fazer cumprir regras da casa de show é quase impossível conhecendo o cenário: os policiais vão dar carteirada, ameaçam de processo, ameaçam de desacato, é muito injusto e desleal que isso fique a cargo só dos administradores das casas, que sabem que isso é problemático”, finaliza Langeani