Tribunal de Justiça de SP reconheceu danos morais e estéticos à Geovanna Teixeira, 21, que foi atingida com bala de borracha no portão de casa quando foi socorrer o pai que também teve a visão comprometida ao ser ferido por guardas em 2021
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo condenou a Prefeitura de Osasco a pagar R$ 70 mil em indenização por danos morais e estéticos e pensão mensal vitalícia no valor de um salário mínimo à funcionária pública Geovanna Tawanne Carvalho Teixeira, 21, que perdeu o olho após ter sido atingida por uma bala de borracha disparada por um guarda civil metropolitano, em maio de 2021. Na época, ela relatou que foi baleada no portão de casa quando tentou socorrer o pai, o gari Joab Santos Teixeira, 42, que estava sendo agredido pelos GCMs também com os elastômeros.
Na sentença, que a Ponte teve acesso, o juiz Jamil Chaim Alves reconheceu que a jovem foi atingida por acidente pelo guarda Izaías Augusto de Souza, que confirmou em depoimento à Polícia Civil ter feito três disparos em direção à Joab, e que a tese da Procuradoria de que a vítima foi atingida a 140 metros de distância não se sustentou. “Na hipótese, não há como excluir a ilicitude da conduta dos agentes em relação à requerente [Geovanna], haja vista que esta sequer foi alvo da abordagem dos guardas municipais”, escreveu.
O magistrado também considerou que a indenização procede por conta dos danos permanentes à vítima, que requerem cuidados de saúde. “O sofrimento físico impingido à autora, em decorrência da evisceração de seu olho esquerdo, é absolutamente relevante, e lhe causa, à evidência, grave perturbação do espírito, aflição, angústia e desequilíbrio de seu bem-estar, refugindo àquilo que se considera normal e aceitável”, fundamentou.
Um dos casos que o magistrado se baseou para chegar ao valor foi o de Rosimeire Santos da Silva, 34, levou um tiro na bochecha ao testemunhar uma ação da PM contra um suspeito em São Mateus, no extremo leste da cidade, em 2019, que foi denunciado pela Ponte. Ela solicitou R$ 432 mil, mas o tribunal decidiu por apenas R$ 18 mil, valor que ela vai recorrer por considerar irrisório. O sentimento é o mesmo de Geovanna, cuja defesa feita pelo escritório Ademar Gomes disse que vai à segunda instância solicitar que o montante seja maior. O dinheiro não cai automaticamente nas mãos da vítima assim que a sentença é proferida, só quando não há mais possibilidade de recurso.
“Foi bom o reconhecimento, mas o valor é muito baixo. Uma prótese perfeita é R$ 20 mil, fora que eu não consegui fazer acompanhamento psicológico”, afirma a funcionária pública. “Desde que aconteceu, eu só ando de óculos escuros porque se saio sem todo mundo olha, tem gente que pergunta, e é difícil ter que contar tudo de novo. O que eu mais quero é sair de onde eu moro porque na periferia é complicado”, lamenta. Ela aponta que está conversando com o médico que teria se disponibilizado a doar uma prótese ocular.
O pai de Geovanna também entrou com ação judicial com pedido de indenização separado que ainda não teve uma decisão. Estilhaços dos elastômeros também atingiram seu olho e comprometeram a visão. O exame de corpo de delito de Joab, feito pelo Instituto Médico Legal (IML) na época, identifica que ele foi atingido no rosto a dois metros de distância, além de lesões no braço e no tronco. Para se ter uma ideia, o manual da Polícia Militar de São Paulo determina que o disparo de bala de borracha deve ser feito a no mínimo 20 metros de distância e sempre em direção às pernas. Os GCMs em questão são da Ronda Operacional Municipal (Romu) que foi treinada pelas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a tropa mais letal da PM paulista.
O caso
Em junho do ano passado, Geovanna, Joab e um confeiteiro de 27 anos que estava no local relataram à Ponte o que aconteceu na madrugada de 1º para 2 de maio de 2021. Ele também entrou com ação judicial com pedido de indenização pelas agressões que denuncia ter sofrido pelos guardas. Na ocasião, testemunhas gravaram o homem recebendo um chute na cabeça por um dos GCMs. O inquérito ainda está em andamento no 8º DP de Osasco.
Geovanna contou que saía do prédio para socorrer o pai, que estava sendo agredido pelos guardas. “Eu vi meu pai caído no chão, só conseguia pensar ‘mataram meu pai’, quando eu saí, o guarda estava lá atrás do poste, quando eu virei para sair, ele atirou em mim”, lembra. “Vi o sangue descendo, só conseguia gritar ‘meu olho, meu olho’, e um rapaz me deu a blusa para por no rosto. Nenhum deles [GCMs] me socorreu”, prossegue.
Joab afirma que estava com amigos em um bar na Rua Gabriel Soares de Souza, próximo ao prédio onde moram, quando os GCMs apareceram no local para pedir que o volume do som fosse abaixado, o que foi acatado também segundo o dono do estabelecimento em depoimento à Polícia Civil.
“Um dos guardas ficou olhando para mim e disse ‘tá olhando o quê? gostou?’ e eu falei ‘eu não gosto de homem’”, relatou o confeiteiro que estava com Joab no bar. Em seguida, ele conta que os guardas foram abordá-los e um deles deu um cabeçada nele. “Eu fiquei tonto, vi o meu nariz sangrando e revidei com um soco e corri”, prossegue. Vídeos gravados por moradores mostram o rapaz sendo arrastado pelos GCMs. O jovem relata ainda que ao ser detido foi levado para um local desconhecido onde foi agredido e depois foi encaminhado à delegacia. “Me ameaçaram dizendo que se eu falasse que eu tinha caído da escadaria, que iriam atrás de mim porque sabem onde eu trabalho”, denuncia.
No boletim de ocorrência, os guardas Alexandre Tavares e Alexandre Jesus Pignatari disseram que faziam patrulhamento pela Avenida Benedito Alves Turíbio, por volta das 00h30, quando munícipes teriam solicitado que eles fossem até a Rua Gabriel Soares de Souza onde estaria acontecendo um “pancadão”. Alegaram que no local haviam 100 pessoas e que pediram para que o volume do som no “Bar dos Amigos” fosse baixado e que as pessoas saíssem da via, mas que não teriam atendida. Imagens obtidas pela Ponte de uma câmera de segurança no local mostram que não havia aglomeração na rua.
Em seguida, segundo os guardas, uma das pessoas no local teria puxado a arma do GCM Izaias Augusto de Souza e roubado um carregador com 18 munições. Os guardas alegaram que usaram “de força moderada” para conter o tumulto e que fizeram três disparos em direção a Joab porque “estava muito agressivo” e teria agredido com chutes e socos o GCM Izaias. Os guardas também afirmaram que o confeiteiro havia agredido Izaias e Antonio Marcos da Silva.
Esses guardas acabaram pedindo reforço e na Rua João Guimarães Rosa, nas proximidades, outros apareceram, segundo a família. Na ocasião, a irmã de Geovanna, Nycole, 23, contou à reportagem que eles agiram com violência. “Eu encontrei meu pai e a gente estava indo em direção à casa do meu avô, que fica perto, e na hora que ele estava recebendo um sermão por estar no bar aquela hora, os guardas da Romu abordaram ele”, conta Nycole. “Um veio por trás e começou a apontar e a pegar na cintura dele com truculência e eu disse que se ele [GCM] continuasse com essa abordagem, eu ia filmar”, prossegue. Nesse momento, ela afirmou que o guarda lhe deu um soco e ela acabou caindo no chão. “Meu pai veio para me socorrer e nessa hora começaram a jogar spray de pimenta e um deles atirou para cima para o pessoal se afastar, todo mundo saiu correndo, mas meu pai ficou”, lembrou na época.
Joab conta que os GCMs dispararam balas de borracha e jogaram bombas de gás. “Nisso que elas correram, um já me deu uma cotovelada e o outro me bateu com a espingarda e já deu um tiro, que pegou no meu rosto, furou meu globo ocular, fiz cirurgia que nem a Geovanna, e eu caí e só comecei a ouvir os tiros”, lembra o gari.
Geovanna contou que foi levada a um hospital municipal, mas acabou transferida para o Hospital das Clínicas, na capital paulista, por causa da falta de especialidade em Osasco. Hoje ela faz acompanhamento médico para substituir a fim de implantar um globo ocular de vidro no local onde foi atingida e conta que sente medo quando vê uma viatura na rua. “Eles tratam a gente que nem lixo porque a gente é negro, porque em branquinho eles não atiram no rosto, eles agem assim só em favela, em comunidade”, critica. “Eu fui em um churrasco na casa da minha tia e vi uma viatura na rua e comecei a chorar, pedindo para voltar para casa”, lamentou.
O que diz a Prefeitura de Osasco
Entramos em contato com a assessoria do governo sobre a sentença e também perguntamos sobre a situação dos guardas e a apuração da Corregedoria da GCM e aguardamos retorno.
O que diz a Polícia Civil
A reportagem questionou sobre o andamento da investigação. A In Press, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, encaminhou a seguinte nota:
O caso é investigado pelo 8º Distrito Policial de Osasco. A equipe aguarda relatório médico-hospitalar para solicitação de exames complementares junto ao IML. Oitivas seguem sendo realizadas e detalhes não podem ser passados no momento para garantir autonomia ao trabalho policial.