Para o pesquisador Rafael Godoi, que participou da análise da realidade brasileira, “América Latina encarcera demais e desencarcerou pouco durante a pandemia”
Distanciamento social, água e sabão. Essas são as regras básicas para impedir o contágio do coronavírus. Mas, dentro das prisões latino-americanas, esses itens são raros. É o que aponta o estudo “Os efeitos do coronavírus nas prisões da América Latina“, desenvolvido pela SOCLA (Sociedade de Criminologia Latino-americana).
Segundo a pesquisa, três em cada quatro sistemas prisionais na América Latina estão superlotados. Foram analisados 27 estruturas carcerárias de 18 países, que, juntas, possuem quase 2 milhões de presos. Mais da metade deles (54,5%) possuem mais de 5% de sua população definida como “de risco” (pessoas com problemas respiratórios, hepatite, diabetes, mais de 65 anos, etc). Nas últimas semanas de maio, os casos de coronavírus nas prisões analisadas quase dobraram.
No geral, as primeiras medidas adotadas para conter a pandemia, em todos os países analisados, foi a suspensão das visitas e o fechamento de algumas atividades que dependem de funcionários internos: 96,3% dos presídios suspenderam as visitas de familiares, 48% dos presídios aumentaram os contatos telefônicos/videoconferência, 90,5% suspenderam as atividades educacionais e 52,2% suspenderam as atividades de trabalho.
O relatório também constatou que apenas 30% dos presídios estudados possuem capacidade adequada para testar casos suspeitos. Segundo os dados oficiais analisados pelo estudo, 80% afirmam possuir setor exclusivo para presos infectados.
A ideia do estudo era sistematizar informações e entender o impacto da pandemia dentro das penitenciárias da América Latina. Entre os países analisados estão: Argentina, Belize, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
No Brasil, os pesquisadores Karina Biondi, Rafael Godoi e Ítalo Siqueira analisaram a realidade de seis locais: Maranhão, Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal e Roraima.
Leia também: Em lista de 47 países, Brasil é 4º com mais mortes de presos pela Covid-19
“As prisões latino-americanas são superlotadas e com deterioração física muito acentuada. São lugares difíceis para você manter duas coisas básicas para retardar o contágio: distanciamento social e condições de higiene. O acesso à água e ao sabão são muito precários”, aponta o pesquisador Rafael Godoi, doutor em sociologia pela USP e autor do livro “Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos”.
Para Godoi, a principal característica, que percorre toda a América Latina, é a baixa aderência dos tribunais judiciários da política de desencarceramento. “Essa é a principal orientação para diminuir os danos da pandemia no interior da prisão e criar condições para uma política mínima de cuidado dentro do cárcere”, aponta. “A América Latina é um continente que encarcera demais e que desencarcerou pouco durante a pandemia”.
Outro ponto, avalia o pesquisadora é a insuficiência das medidas de proteção. “As medidas tomadas foram trancar todo mundo e deixar sem visita, mas sem uma política proativa de identificação e contenção do contágio”, explica Godoi.
O pesquisador lembra a importância dos itens enviados pelos familiares às pessoas privadas de liberdade: “A gente sabe que, não é só no Brasil, muita coisa chega pelos familiares nas visitas, como remédios, comida, roupas, cobertores e artigos de higiene pessoal. Essas coisas pararam de chegar ou chegaram com redução e maior custo para os familiares”.
Leia também: ‘Sistema prisional é barril de pólvora. Coronavírus foi só a gota d’água’
“Com a deterioração das condições de vida dentro da prisão, o resultado são as rebeliões. Na Colômbia foram 13 rebeliões, na Venezuela teve uma muito mortífera. Aqui no Brasil tivemos em São Paulo, logo no começo quando fecharam as saidinhas do semi-aberto, no socioeducativo no Rio de Janeiro, e diversos protestos de familiares no DF e no Ceará atrás de informações”, aponta.
No Brasil, racismo e punitivismo
Segundo monitoramento do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), feito a partir de dados enviados pelos governos dos estados, são 62 mortes no Brasil até agora, 4739 casos confirmados, 1.086 suspeitos, 2.859 recuperados e mais de 16 mil testes realizados.
O Maranhão tem 112 casos confirmados de coronavírus, 56 suspeitos, 55 recuperados e um óbito. O Ceará possui 489 casos confirmados, 0 suspeitos, 335 recuperados e 3 óbitos.
No Rio de Janeiro são 11 mortos, 32 casos confirmados, 55 suspeitos, 21 recuperados. São Paulo concentra o maior número de óbitos, 15 casos, além de 225 detentos com a doença, 70 suspeitos e 63 recuperados.
Os dados de SP têm apresentado problemas de confiabilidade, como demonstrou reportagem da Ponte desta quarta-feira: 800 casos de confirmações da doença sumiram em 24 horas.
Leia também: Sem itens de higiene fornecidos pelas visitas, presos veem risco de coronavírus aumentar
O Distrito Federal concentra a maior parte das confirmações, 1.037 casos, além de 863 recuperados e 3 óbitos. Roraima tem 60 presos com Covid-19, 41 recuperados e 6 mortes. Os dois estados informam que não têm casos suspeitos.
Para analisar os presídios brasileiros, os pesquisadores usaram dados oficiais do Governo Federal, disponibilizados pelo portal do Depen, subordinado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, material de imprensa e, no caso específico do Rio de Janeiro, relatórios semanais do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.
O caminho ideal é para impedir o aumento dos casos nos presídios latino-americanos, resume Rafael Godoi, é o desencarceramento massivo. “É preciso liberar as pessoas de grupos de risco e pessoas presas por crimes não violentos. Também temos que olhar paras as gestantes, mães de crianças pequenas. Mas vemos nossas autoridades judiciárias destilando todo seu racismo, seu preconceito de classe e de gênero nas decisões sobre esses vários pedidos negados sistematicamente”, critica.
“Além da questão do desencarceramento, que olha quem já está dentro, é importante ter uma política, que não se verifica no Brasil, de um maior controle da entrada, de um uso mais generoso de outras medidas cautelares que estão previstas nas legislações”, finaliza.