Jovem de 19 anos foi detido junto de amigo acusado de roubar celular. Família diz que ele é inocente, única prova para sua prisão é o reconhecimento feito por vítima, que não seguiu procedimento previsto em lei
Um reconhecimento feito em meio à multidão na praia durante a noite de ano novo levou Alysson Barbosa de Araújo, de 19 anos, para prisão na Praia do Boqueirão, na Praia Grande, no litoral sul de São Paulo.
Acompanhado de alguns amigos, Alysson e Saulo Gabriel de França, de 18 anos, foram à praia para as festas tradicionais de réveillon por volta das 23h do dia 31 de dezembro. Minutos depois da meia-noite, a dupla foi surpreendida pelos policiais enquanto procurava banheiro em um estacionamento ainda perto da praia, quase em frente a um posto policial.
“Assim que o funcionário disse que não poderíamos usar [o banheiro], colocamos a cara para fora do estacionamento, andando normal, e fomos abordados. Apareceu um homem correndo de carro, freou bruscamente, falando que nós estávamos armados, gritando que a gente tinha roubado uma mulher e apontado uma arma para ela”, diz Saulo, conhecido como MC Neguinho da STM.
MC Neguinho conta que no meio da correria tentou filmar a abordagem policial, mas levou um tapa, e foi conduzido para o calçadão da praia ao lado de Alysson. De acordo com o boletim de ocorrência, Alysson teria sido reconhecido ainda no calçadão, contrariando o artigo 226 do Código de Processo Penal. Nenhuma das vítimas da denúncia inicial permaneceu na delegacia para reconhecer o rapaz.
Posteriormente, ainda de acordo com o documento, uma mulher, que teria ligado para a delegacia para denunciar que teve o celular roubado, descreveu o assaltante e foi informada que ele estaria detido na delegacia, o que também contraria o artigo 226, que prevê que o suspeito seja apresentado ao lado de pessoas com características semelhantes para garantir a idoneidade do procedimento. Ela reconheceu Alysson “sem sombra de dúvidas” por ele estar vestindo “camisa de time vermelho e branca”. Nenhum aparelho celular e nem a suposta arma foram localizados pela polícia.
“Um jovem negro, perfil de moleque de 19 anos, na aglomeração do Ano Novo, à noite, é tudo parecido. Não é um caso isolado. Em uma rua vazia, é uma coisa, mas não foi isso. Ela reconheceu ele e alegou que ele estava armado”, afirma Moisés Ventura de Araújo, pai de Allyson.
Ele também acredita que os horários dos roubos fazem com que a história apresentada na denúncia não faça sentido. “O percurso que eles fizeram é muito pequeno, e é um espaço de tempo curto. Se conseguirmos as imagens das câmeras, vai ser fácil de descobrir”, diz.
“Se ele saiu da casa da mãe às 11h, ele deve ter chegado lá [na praia] às 11h40, o fato ocorreu 00h20, a ocorrência foi registrada 00h35. O Saulo fala que eles foram abordados por volta das 00h20. Precisa ver o horário e onde essa segunda vítima foi roubada”, questiona.
Alysson e Saulo permaneceram presos durante toda a madrugada do dia 1º. Às 6h, Saulo foi liberado e descobriu que o amigo permanecia detido. Ao contrário do que diz o boletim de ocorrência, os pais do jovem, que também está começando uma carreira musical como MC, ainda não haviam sido sequer comunicados.
Para conseguir localizar o paradeiro do filho, Moisés foi até a delegacia sede da Praia Grande duas vezes, onde foi orientado a ir até Santos, e depois a São Vicente. Depois de rodar por quase todo o litoral, ele foi informado de que Allyson estava no primeiro endereço.
“Disseram que ele não estava lá [na Praia Grande]. A verdade é que ocultaram o caso do meu filho. E colocaram no BO que os direitos foram garantidos. Não deixaram nem ele ligar para casa. E mesmo que ninguém atendesse! Eu fui lá. E tenho como provar que corri atrás, liguei para todos os lugares, ocultaram informações de mim”, denuncia.
Para Moisés, o fato de Alysson ser um garoto de origem simples e pele negra contribuiu para que ele fosse preso e permanecesse detido sem provas, com base apenas em no reconhecimento, tática que vem sendo questionada cada vez mais nos últimos anos.
“Eu e a mãe dele acreditamos sim que tem preconceito. Até mesmo por negar informações e ocultar que ele tinha sido preso sem provas. O pior de tudo, é que para nós ocultaram, mas um estranho pode reconhecer para uma outra ocorrência”.
A família conseguiu um advogado, mas Moisés ainda não conseguiu visitar Allyson, que agora está no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Praia Grande. Ele espera que o filho possa, em breve, voltar a correr atrás do sonho no mundo da música.
“A gente vai levantar todas as provas que eu puder. Imagina ser pego de surpresa, acusado e levado sem direito a defesa, ficar preso, sem o pai e a mãe saber. Fico imaginando o psicológico dele. Ele está assustado, é um menino trabalhador”, desabafa.
“Eles [Ministério Público e Tribunal de Justiça] olham por alto e acreditam no que foi elaborado na delegacia. E como fica a pessoa que devia ser protegida pela lei? É lamentável. É fora do normal. É absurdo. Ele abriu mão de muita coisa para focar na música, é o sonho dele, ele quis colocar em prática tudo em 2022. Ele vai investir muito, vamos ajudar, passamos um período muito difícil e agora ele vai levar adiante e eu vou apoiar”.
A advogada Débora Roque, da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, crítica o fato de Alysson ter sido mantido preso com base em apenas uma testemunha.
“Podemos perceber que o auto de prisão em flagrante contém apenas as informações que supõem a participação do Allysson, e infelizmente, o fato de uma única testemunha tê-lo reconhecido, para o Judiciário, tem sido relevante para a decretação da prisão preventiva, isso por causa da banalização desse instrumento cautelar”, analisa.
“É preciso lembrar que a lei dispõe outros meios cautelares para que uma pessoa responda a um processo em liberdade e que a prisão preventiva é exceção. Mas sabemos que na prática não funciona desse jeito. Sem falar ainda no princípio da presunção de inocência, no qual uma pessoa só pode ser considerada culpada após a condenação e que dessa decisão não caiba mais qualquer recurso. Esse princípio também é invisibilizado e violado nesse momento pré processual”, diz ela.
Para a especialista, o judiciário precisa explorar outros tipos de medidas cautelares nesse casos, e não só apelar para a prisão preventiva.
“A crítica que podemos fazer nesse momento é que o judiciário precisa reconhecer a importância de outras medidas cautelares, além da prisão preventiva. Estamos vivendo um período onde o acusado é quem precisa provar que não sua inocência e deve fazer isso estando preso. Diante dessas circunstância se torna quase impossível uma pessoa conseguir reverter essas acusações”, afirma.
“No decorrer do processo o acusado pode e dever apresentar sua versão dos fatos para conseguir provar sua inocência. O grande problema é que para quem conhece o sistema carcerário brasileiro, um dia de prisão para uma inocente pode trazer sequelas para o resto da vida. Lembrando que no Brasil quase 40% da população carcerária é de pessoas que ainda esperam julgamento, ou seja, são presos provisórios que, de acordo com o princípio da inocência, não podem ser considerados culpados.”
Em nota enviada à Ponte, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) diz que “o caso foi registrado como roubo na CPJ da Praia Grande. O homem citado pela reportagem foi reconhecido como autor dos crimes por duas vítimas. Os demais suspeitos não foram reconhecidos, razão pela qual foram liberados. A unidade tentou, sem sucesso, contato com os familiares do indiciado. Os fatos foram encaminhamos para análise do Poder Judiciário, que ratificou a prisão”.