Assim como aconteceu com Heverton Siqueira, preso por 40 dias e libertado, Ponte contribuiu para apontar fragilidades em outras prisões
A Justiça é capaz de prender e manter encarcerada uma pessoa sem provas de que ela seja culpada de um crime. Uma série de reportagens feitas pela Ponte Jornalismo evidenciam casos dessa natureza desde a fundação do canal, em 2014. Nesse período, ao menos seis pessoas tiveram reportagens utilizadas em seu processo que contribuíram para a soltura.
Há histórias como a de João Ricardo Gouveia Bernardes, que em 2014, quando era adolescente, foi apontado como autor de um assalto a mão armada mesmo com vídeos que mostravam que ele estava em casa na hora do crime; outras como a de Chico, um idoso com deficiência física que a polícia afirmou ter corrido após roubar um posto de gasolina. Ele ficou sete meses preso por um crime com base em um reconhecimento irregular feito por testemunhas. Há ainda o caso de Rafael Braga, de grande repercussão, ex-catador de recicláveis e único condenado nas manifestações de 2013 ocorridas no Rio de Janeiro.
1 – João Ricardo Gouveia Bernardes
Na madrugada do dia 16 de março de 2014, João Ricardo Gouveia Bernardes, então com 17 anos, saiu de casa para fumar quando se tornou suspeito de ter cometido um assalto a mão armada. Policiais militares o abordaram e pediram que ele trocasse de roupa, tirasse o chinelo, samba-canção e camisa branca que usava para colocar camiseta, boné, bermuda e tênis. Assim, foi à rua e, de dentro do carro, a vítima o reconheceu como autor do crime, ainda que imagens de câmeras de segurança do prédio onde morava garantissem que ele estava no local na hora do crime. O juiz não considerou, em um primeiro momento, o vídeo e fez com que o reconhecimento irregular tivesse mais peso, determinando que João fosse para a Fundação Casa, onde ficou por um mês. Uma reportagem da Ponte denunciou o caso e, juntada ao processo, resultou na libertação do jovem.
2 – Wilson Alberto Rosa (Chandelly)
Wilson Alberto é vendedor ambulante na zona sul da cidade de São Paulo. Ele trabalhava em 19 de janeiro de 2017 quando foi abordado por um policial civil, que tirou uma foto sua e enviou para um grupo de WhatsApp onde ele foi supostamente reconhecido por um crime. A mulher do policial havia sido vítima de roubo, de seu tablet e celular, e ele queria a todo custo encontrar o responsável. Wilson foi levado à delegacia e reconhecido pela vítima. Na época, a mulher do ambulante, Leandra da Silva, considerou que o reconhecimento foi fruto de racismo por parte do agente. Nenhum dos aparelhos foi encontrado com Wilson, ainda assim, o ambulante permaneceu preso por 27 dias até que a Justiça de SP reavaliou as provas, considerou a reportagem da Ponte, incluída no processo, o depoimento de testemunhas e o inocentou das acusações.
3 – Rafael Braga
A Ponte foi o primeiro veículo a entrevistar o ex-catador de latinhas que se tornou símbolo do racismo do sistema judicial brasileiro, ao ser condenado por porte de material explosivo durante as manifestações de junho de 2013 — era um frasco de Pinho Sol. Ele é o único preso e condenado nas manifestações ocorridas em todo o Brasil naquele período. A Ponte também foi o primeiro veículo a noticiar a segunda prisão de Rafael, essa por tráfico de drogas, em 2016. A cobertura intensa da segunda prisão de Rafael, junto com outras mídias, influenciou na decisão que levou a Justiça a permitir que ele pudesse tratar de sua tuberculose em casa — uma decisão rara no contexto do sistema prisional brasileiro, onde a incidência da doença atualmente atinge 932 ocorrências a cada 100 mil detentos e quase todos permanecem confinados.
4 – Jonathan de Araújo Souza
O caso de Jonathan de Araújo Souza resultou em condenação na Justiça, mesmo após reportagem da Ponte garantir uma primeira absolvição e sua liberdade. Ele é acusado por policiais militares de ter roubado uma moto e fugido em 9 de junho de 2017, mas o jovem afirma que estava em sua moto quando foi confundido pelos PMs e baleado pelas costas. Os PMs teriam se enganado quando o real assaltante entrou em uma viela e perdeu o controle do veículo. Jonathan passava pelo local e foi baleado. Ele perdeu um rim por causa dos ferimentos. A fala dos PMs é a principal prova que o liga ao crime, ocorrido com uma moto de cor branca, enquanto a moto do jovem é vermelha e possui marcas de tiros disparados pelos policiais. Desembargadores do TJ (Tribunal de Justiça) reverteram a absolvição e o condenaram pelo crime sem haver provas além das falas dos policiais que o liguem ao roubo.
5 – Francisco Carvalho Santos
Com 60 anos, Francisco Carvalho Santos tem problemas de mobilidade e passa por um longo tratamento de um câncer. Por causa disso, tem dificuldade de correr. Mesmo assim, foi colocado como autor de dois roubos a um posto de gasolina e, na versão da polícia, teria fugido correndo. Funcionários do local o apontaram como suspeito com base em um reconhecimento feito de forma irregular pelos policiais, que apresentaram foto do senhor às vítimas. A Justiça de SP considerou o reconhecimento suficiente para a condenação de 7 anos, 9 meses e 10 dias. Chico permaneceu preso por sete meses, mesmo sem provas de que ele havia cometido o roubo, até que a denúncia da Ponte que trazia detalhes da prisão e das versões foi anexada ao processo e a Justiça de SP decidiu libertá-lo.
6 – Heverton Enrique Siqueira
No dia 10 de outubro de 2019, Heverton fumava a três ruas de sua casa quando abordado por PMs que buscavam dois suspeitos de roubarem um carro e três celulares. Ele estava com um amigo e ambos foram levados à delegacia. Lá, os policiais os apresentaram para a vítima, que não reconheceu e, depois que os policiais os forçaram a colocar toucas, o motorista disse que os dois eram os assaltantes. Porém, no dia seguinte, a própria vítima viu os reais criminosos na rua e buscou a Polícia Civil para corrigir o erro que cometera. Heverton ficou preso por 40 dias, mesmo a vítima alegando ter se confundido. Só saiu da cadeia quando o homem declarou em juízo que o reconheceu de forma errada. Ainda assim, o jovem responde o processo em liberdade porque os dois policiais militares, testemunhas de acusação, não foram à audiência.