SP supera marca de mil presos com Covid-19 mesmo com subnotificação

    Especialistas alertam para falha nos dados oficiais após Defensoria Pública de São Paulo identificar 700 casos em apenas um presídio

    Penitenciária 2 de Sorocaba onde aconteceu a 1º morte em 19/4; Defensoria revelou que unidade prisional da cidade tem mais de 700 casos confirmados, mas não informou qual é o presídio | Foto: Arquivo Ponte

    Oficialmente, o estado de São Paulo superou os mil presos contaminados com o coronavírus nas prisões. Os dados são do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgados nesta sexta-feira (26/6). Porém, profissionais da área alertam para subnotificação.

    Segundo os números do Depen, SP têm 1.019 pessoas infectadas e já registrou 15 mortes. Ainda há 102 casos suspeitos e outros 225 presos recuperados da doença em uma população de 231.287 pessoas.

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    O problema dos dados oficiais, considerados “alarmantes”, é a subnotificação. Uma visita técnica feita pelo Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública identificou mais de 700 casos de Covid-19 somente em uma unidade prisional de Sorocaba, interior do estado.

    A primeira morte por coronavírus em prisões em SP e a segunda do país, aconteceu justamente em um presídio da cidade. No dia 19 de abril, um detento de 67 anos da Penitenciária Dr. Antonio de Souza Netto, a Penitenciária 2 de Sorocaba, morreu depois de ficar pelo menos dez dias internado.

    O grupo deve divulgar um parecer técnico na próxima semana, mas confirma número próximo a 750 contaminados, se somar presos e funcionários. “Tem este número na unidade, porque lá se fez a testagem”, afirma uma pessoa ligada à visita, pedindo anonimato.

    A falta de informações está entre as críticas de entidades ligadas ao sistema prisional, bem como familiares, que estão sem ver seus parentes desde o início da pandemia.

    Em 20 de maio, a Ponte revelou a dor de uma viúva de preso morto em Presidente Venceslau, no oeste paulista. Ela recebeu apenas duas ligações: uma sobre a contaminação e, nove dias depois, outra, informando sobre a morte.

    “É um crime que está acontecendo. Hoje, no sistema prisional, não se tem esperança”, resume Railda Alves, integrante da Amparar, associação que presta auxílio às famílias de detentos. Ela cita que a situação histórica dos presídios, lugares “insalubres, sem higiene”, gera mais preocupação aos familiares.

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    “O governo nunca vai falar a real, vai maquiar o que de fato está ocorrendo. Muitos familiares entram em contato, fragilizados, preocupados. Vivemos o terror do terror”, resume.

    Além dos presos, há casos de funcionários contaminados. Segundo dados do Sifuspesp (Sindicado dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo), ao menos 245 pessoas foram contaminadas com a doença em todo o estado. Dessas, 20 morreram. Ainda há 78 suspeitas de contaminação.

    Segundo Raissa Maia, advogada e pesquisadora no ITTC (Instituto, Terra, Trabalho e Cidadania), a marca de mil casos gera preocupação. Ainda assim, deve ser vista com muito receio justamente por haver subnotificação. Ou seja, a situação muito pior por conta do que ela chamou de “obscurantismo dos dados”.

    “Existem todos os elementos para que seja ainda maior”, afirma, citando a falta de água, a prisão em espaços fechados e superlotados e a facilidade de alastramento do coronavírus como fatores para os mil casos não representarem a realidade.

    Maia destaca a denúncia enviada por 200 entidades à ONU (Organização das Nações Unidas) e OEA (organização dos Estados Americanos) em que cita a letalidade cinco vezes maior da doença dentro dos presídios brasileiros do que fora deles.

    “Há um colapso, um projeto genocida em curso. O que acontece não é omissão, é um projeto muito bem executado. A política de que as pessoas dentro do cárcere têm menos valor. As pessoas presas estão sentenciadas à morte, incomunicáveis”, afirma.

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    Desde o início da pandemia, o estado de São Paulo adotou medidas de isolamento como forma de evitar as contaminações. Proibiu visitas de familiares e o envio presencial do “jumbo” (sacola com itens de higiene, comida e remédio enviado pelos parentes), o que é feito somente via Correios.

    Entretanto, as críticas envolvem a falta de iniciativas para controle da doença, como distribuição de equipamentos de proteção, produtos de limpeza do ambiente e higiene pessoal.

    “São mais de 100 dias do estado de calamidade pública decretado a partir da crise da Covid-19 e não se tem medidas concretas no sistema prisional na proteção das pessoas, de saúde e acesso a seus direito”, critica Daniel Melo, perito do Mecanismo Nacional de Proteção e Combate à Tortura.

    Melo classifica as ações como “pífias” para evitar a propagação da doença. Além disso, cita que a falta de comunicação constata a prática de tortura. “É uma tortura psicológica nítida, rompe os vínculos, é a incomunicabilidade completa com o mundo exterior”, diz.

    Henrique Apolinário, advogado da Conectas, aponta que o gargalo na testagem gera subnotificação, o que bate com a confirmação dos 700 contaminados em Sorocaba.

    “Quanto ao número de mil casos, basicamente, quanto mais se testa mais se acha. Se fossem duas vezes mais testes antes, teria se chegado antes. A curva nos presídios esta subindo”, alerta.

    Para ele, as ações de São Paulo foram “contraproducentes para interromper a pandemia”. Segundo Apolinário, seria necessário, de fato, tirar as pessoas das prisões. “A saída é uma só, o desencarceramento, reduzir número de pessoas presas. Não se consegue nada sem o mínimo de afastamento”, defende.

    Tal iniciativa é proposta pela Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça, mas que não tem sido seguida por juízes pelo fato de não ser uma determinação, mas uma sugestão do que seria mais adequado.

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    “O Judiciário segue sendo um grande empecilho, um motivador da prisão. Em SP, com a pandemia e todos os pedidos de liberdade de advogados por seus clientes integrarem o grupo de risco, só deu 3% de liberdade”, exemplifica.

    A Ponte questionou a Secretaria de Administração Penitenciária sobre os números de presos contaminados, mortes, casos suspeitos e recuperados, além de ações para diminuir o contágio da doença e aguarda um posicionamento.

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