Wesley Matos Moreira é sobrinho de coronel e foi segurança em empresa dos Maggi; informante e testemunhas o apontaram como cooptador de emboscada que resultou na morte de três homens em 2017. Operação na semana passada prendeu 63 PMs
O vigilante Wesley Matos Moreira, 34, disse em depoimento à Polícia Civil, ainda em 2018, que fazia “escolta VIP” do fazendeiro Eraí Maggi, primo do ex-governador Blairo Maggi, uma das famílias mais poderosas do Mato Grosso, e também trabalhava na Agroseg Segurança Patrimonial Ltda. uma das empresas do Grupo Bom Futuro, que pertence aos Maggi. Lá também trabalhou como vigilante o informante que quatro anos depois o delatou como um dos cooptadores que ajudou a emboscar três homens que foram mortos por policiais militares da Ronda Ostensiva Tática Móvel (Rotam) em uma suposta tentativa de assalto forjado em 2017. Na semana passada, uma operação da Polícia Civil e do Ministério Público Estadual prendeu 63 PMs investigados, além de Wesley, de executarem 24 pessoas, entre 2017 e 2020, para “promover” os batalhões que atuavam. Ao menos 30 foram soltos no sábado (2/4).
Em 3 de outubro de 2017, entre as Rodovias Emanuel Pinheiro e Elder Cândia, na capital Cuiabá, foram mortos a tiros Mayson Ricardo de Moraes Dihl, 20, Fabrício Soares Ferreira, 21, e Deberson Pereira Oliveira, 22. O número de vítimas poderia ter sido maior se outras pessoas não tivessem desistido da oferta de um suposto assalto a uma fazenda que era o plano daquela noite, segundo depoimentos. Uma semana após o crime, o Centro Integrado de Segurança Pública, ligado à pasta da Segurança, recebeu duas denúncias anônimas que apontavam que apenas Guaxeba, o apelido de Fabrício, estava armado, sendo que as demais armas apreendidas tinham sido “plantadas”, e que um segurança do Mercado Teixeira teria sido quem “passou a fita” sobre o assalto em que cada um ganharia R$ 37 mil, mas se tratava de uma “armadilha”. Também indicou que a companheira de um deles tinha conhecimento do plano e tinha tentando registrar um boletim de ocorrência contra o sogro, que a estava culpando pela morte, mas teria sido “orientada” por policiais da base do bairro Jardim Vitória para deixar a cidade porque “saberia demais”.
Ela prestou depoimento à Polícia Civil em 2018, apontando que desistiu da proposta por medo, sendo que Mayson, Fabricio, Deberson e outros quatro se reuniriam para a ação (nenhum deles é o informante que delatou o caso). Um é o segurança do Mercado Teixeira, apelidado de “Gordinho” ou “Ruim”, que ela reconheceu fotograficamente como Wesley. Segundo ela, o segurança iria num veículo na frente e o restante iria em outro atrás, já que ele seria vigia da fazenda e o assalto aconteceria no turno dele. Deberson acabou aceitando participar para levá-los em seu carro, um Gol prata, e ela conta que viu os três saindo. O segurança teria combinado de encontrá-los por volta das 17h30 na Fundação Bradesco, na Avenida José Estêvão Torquato da Silva. Ela afirma que uma mulher lhe contou que, ao passar pela estrada, teria visto os três ajoelhados com mãos na cabeça e que acredita em retaliação por conta de Fabricio já ter feito outros assaltos na região.
Outro homem que iria participar do assalto também relatou na ocasião que a ideia inicial era roubar uma residência no bairro CPA IV, mas não deu certo porque, segundo ele, haviam muitas viaturas nas proximidades e ele desistiu. Porém, o segurança conseguiu “outro corre”, que seria na fazenda, e os três foram. Depois das mortes, o homem disse que não viu mais o segurança e passou a desconfiar que teria sido “armação”. Um familiar de uma das vítimas que acabou sabendo do roubo também reconheceu Wesley por foto. Outras duas testemunhas igualmente afirmaram que viram o momento em que o trio saiu.
O próprio Wesley, conhecido como “Checo”, prestou depoimento à Polícia Civil, em maio de 2018, quando relatou fazer escolta de Eraí Maggi e trabalhar na Agroseg, além de negar conhecer as vítimas. Também informou que fazia “bicos” de segurança no Mercado Teixeira, cujo contrato seria por meio de uma empresa que pertenceria a seu pai, Roberto de Souza Moreira, e José Aparecido, que seria policial. Ele também conheceria policiais militares por ser sobrinho do coronel Esnaldo de Souza Moreira, na época comandante do batalhão de Trânsito e hoje comandante do 1º Comando Regional de Polícia Militar de Cuiabá. A Ponte ligou para o supermercado cujo atendente disse não lembrar do nome de Wesley e que a segurança ficava a cargo da empresa do policial Aparecido, mas não contratava mais os serviços “há muito tempo”. Disse não saber nome completo dele nem o da empresa. Roberto disse, em depoimento, que trabalhava de vigilante para família Maggi e confirmou à polícia que o filho fazia “bicos”.
As delações do informante, que é cunhado de Wesley, aconteceram em agosto e em outubro de 2021. Na primeira, segundo a ata que a reportagem acessou, sobre esse caso ele descreve como se ele mesmo tivesse feito o contato com as vítimas, já que também trabalharia como vigilante no mercado, e não menciona Wesley. “(…) em certo dia, determinado vagabundo com tornozeleira entrou no Supermercado Teixeira, que então puxou ‘papo’ com o ‘guri’ da tornozeleira e começaram a combinar um ‘serviço’ (roubo); que neste momento começava a passar informação para o batalhão Rotam”, diz o documento. Mayson era quem usava a tornozeleira na época do crime.
Depois, em outubro, ratificou a delação, mas acrescentou a participação do cunhado, que, de acordo com a ata, era o “responsável por selecionar as vítimas” que teriam praticado furtos no supermercado onde fazia segurança privada. O informante relata que estava em outro veículo dirigido por sua ex-esposa onde passava informações para os PMs. No primeiro interrogatório, o informante disse que “não tinha ideia” que os policiais iam “trincar” (matar) as vítimas, depois voltou atrás dizendo que tinha completa ciência do objetivo da ação. De acordo com o informante, como “vantagem”, o sogro teria ganhado uma viagem para o Rio de Janeiro e a ex-esposa uma Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Ele ainda disse que Wesley seria integrante do Comando Vermelho, porém, nos autos do processo não há nenhuma indicação além do depoimento que o relacione à facção criminosa.
À Ponte, a assessoria do Grupo Bom Futuro confirmou que Wesley trabalhou na Agroseg de 19 de abril de 2016 a 18 de março de 2019, mas “nunca foi segurança pessoal do acionista Eraí Maggi Scheffer”. O grupo negou que o pai dele, Roberto, tenha trabalhado para a empresa. Já sobre o informante, confirmou que ele atuou de 16 de junho 2017 a 20 de dezembro de 2018 junto ao grupo e foi afastado pelo INSS de 22 de julho a 18 de dezembro de 2018. “A Bom Futuro desconhece qualquer suposta relação ilícita dos citados”, disse em nota.
Falso socorro, escrivão subordinado e tiro encostado
Paralelamente à apuração da Delegacia Especializada de Homicídios e Proteção a Pessoa (DHPP), acontecia uma apuração no âmbito da Polícia Militar. Um relatório feito pela corregedora-geral coronel Rivalda Reis de Souza, de fevereiro de 2018, obtido pela Ponte, aponta indícios de que o comando da Rotam tentou acobertar as ações dos policiais militares envolvidos nesse caso de outubro de 2017. Ela pediu a prisão dos 12 PMs por isso e que o caso fosse remetido à Justiça Comum para ser investigado. O Tribunal de Justiça Militar acatou a transferência do inquérito, mas negou as prisões.
Os policiais envolvidos diretamente nas mortes de Mayson, Deberson e Fabrício são 12: tenentes Tulio Aquino Monteiro da Costa e Abner James Lopes de Campos, sargentos André Luiz dos Santos Souza e Luciano Baldoino dos Santos, cabo Geraldo Vieira da Silva, soldados Arlei Luiz Covatti, Jackson Pereira Barbosa, João José Fontes Pinheiro Neto, Jonatas Bueno Trindade, José Roberto Rodrigues da Silva, Tiago de Jesus Batista Borges e Vinicius Santos de Oliveira.
Não aparecem nesse relatório os PMs Cleber de Souza Ferreira, Jonathan Carvalho de Santana e Heron Teixeira Pena Vieira, que apenas na Operação Simulacrum são indicados pela DHPP como os responsáveis por organizar todas as seis ocorrências que totalizam as 24 mortes ocorridas entre 2017 e 2020.
Na época, o comandante do batalhão tenente-coronel Cleverson Leite de Almeida entendeu que houve legítima defesa nesse caso de 2017 ao argumentar que, mesmo se tratando de três homicídios, a análise ficou prejudicada pela ausência de laudos de eficiência das armas e de confronto balístico para apontar a autoria dos disparos, e que caberia ao Ministério Público juntar esses materiais e ver a possibilidade de uma reconstituição.
A corregedora, porém, enumerou uma série de falhas na investigação, sendo que o tenente-coronel, enquanto “autoridade militar responsável pela tropa especializada”, “sequer foi ao local” dos fatos e não “se ateve aos detalhes”. Um dos primeiros pontos é que o comandante demorou 35 dias para iniciar os trabalhos de investigação. Depois, o encarregado do inquérito-policial militar, major Wittenberg Souza Maia, nomeou como escrivão o subtenente Manoel Walmor Corrêa, que era subordinado aos investigados e foi responsável por documentar depoimentos, o que mostra, segundo a coronel Rivalda Reis de Souza, “falta de seriedade nas investigações”. Para ela, também “causou estranheza” o major nomear um subordinado como escrivão, já que o Código de Processo Penal Militar, em seu artigo 11, prevê a designação de um outro oficial que não seja indiciado nem subordinado.
Outro ponto é que não foram apreendidas todas as armas dos 12 PMs envolvidos, tendo sido remetidas para perícia apenas seis: duas carabinas MD97, um fuzil MD2 e três submetralhadoras SMT .40. Sete policiais afirmaram em depoimento que atiraram, mas nenhum soube precisar quantos tiros deu, e, destes, três não disseram que arma utilizaram. Armas curtas, como pistolas e revólveres que os policiais poderiam estar utilizando, também não foram enviadas. A apreensão das armas dos policiais não consta no boletim de ocorrência da PM, apenas em ofícios à parte.
No boletim de ocorrência da Polícia Civil, foram apreendidas apenas as armas atribuídas às vítimas: uma pistola 380 da Imbel e dois revólveres calibre 38 da Taurus, todos com numeração raspada. Foram recolhidos um carregador de pistola, sete munições calibre 38, um estojo e seis munições calibre 380. Segundo o relatório da DHPP, a arma que foi usada no tiro encostado na cabeça de Deberson não foi entregue à perícia. No pedido de prisão temporária da operação, o delegado Marcel Gomes aponta que a arma foi posteriormente localizada no sistema prisional da cidade de Jaciara (MT). “Uma vez localizada foi encaminhada para confronto balístico, onde positivou para arma CTT .40, numeração INO8272, a qual estava acautelada pelo Ten. Campos”, escreveu.
Além disso, o encarregado do Inquérito Policial Miliar (IPM), o major Wittenberg, pediu em ofício a realização de eficiência balística e não de confronto balístico, sendo que as armas foram encaminhadas sem os projéteis (balas) para o confronto balístico, o que fez com que a Polícia Científica pedisse, dois meses depois do crime, o reencaminhamento da requisição de forma mais precisa e menos genérica – e com as balas – o que foi feito só em janeiro de 2018.
Na cena do crime, a perícia localizou apenas duas cápsulas de calibre .40, uma delas debaixo do Gol, o que, para a corregedora-geral, seriam “indicativos fortes de que ocorreu alterações no local do crime, antes da chegada dos peritos”.
Os peritos também identificaram que o local do crime não foi devidamente preservado, pois policiais passavam pela área de interesse, além de que o Gol prata estava todo aberto e mexido. O veículo não tinha manchas de sangue nem sinais de disparos. No BOPM, os policiais afirmam que os indivíduos do Gol desobedeceram as ordens de parada verbalizadas e de sinais luminosos com giroflex e “investiram” contra as equipes com armas de fogo, ultrapassando o bloqueio das viaturas em alta velocidade, e que houve revide. Depois, os três homens teriam desembarcado e “levaram as armas de fogo em direção às equipes”, que teriam dito para largá-las, mas não foram obedecidos e os PMs atiraram.
O registro informa que os tenentes Tulio Aquino Monteiro da Costa e Abner James Lopes de Campos levaram as vítimas ao pronto-socorro municipal porque estariam com sinais vitais, mas os prontuários médicos que a reportagem acessou indicam que os três chegaram já mortos.
Deberson, por exemplo, levou um tiro encostado na cabeça, cujas imagens feitas pela perícia mostram o desenho do cano da arma, contrariando a versão de confronto. Ele levou mais quatro tiros, no peito, coxa, joelho e há lesão na mão direita como se fizesse movimento de defesa, conforme aponta o laudo necroscópico. Mayson foi atingido quatro vezes: no rosto e no antebraço, indicando movimento de defesa. Fabrício foi baleado com dois tiros no tórax, próximo à axila esquerda.
A corregedora Rivalda de Souza fundamenta que essas lesões trazem indícios de homicídios dolosos (com intenção de matar), além de os depoimentos dos policiais que apresentaram contradições não terem sido instigados a dar detalhes durante os interrogatórios. Ela também aponta que as denúncias anônimas feitas no Centro Integrado não foram levadas em consideração e que “as evidências deixadas no local no crime não corroboram com as descrições do histórico da ocorrência e nem com os depoimentos dos indiciados, uma vez que as provas foram suprimidas do local do crime”. Ela aponta que o socorro poderia ter sido feito para não deixar mais evidências no local. Ela também solicitou apuração contra o major Wittenberg Souza Maia, o subtenente Manoel Walmor Corrêa e o tenente-coronel Cleverson Leite de Almeida, além de maiores detalhes sobre elementos da investigação.
Como essa representação foi de 2018, a Ponte procurou a assessoria da PM para sobre a investigação do caso, a atuação do comando bem como do encarregado do IPM e o escrivão e se os policiais envolvidos no crime continuavam presos. A corporação confirmou o recebimento do e-mail, mas não respondeu até a publicação.
Dos 30 PMs que tiveram revogação da prisão em 2 de abril, apenas um policial é deste caso: João José Fontes Pinheiro Neto. Eles têm o mesmo advogado, Augusto Bouret Orro, que alegou que as prisões eram desproporcionais por conta de se tratar de casos antigos e pelos investigados não terem atrapalhado o trabalho de apuração (embora a DHPP justifique que os PMs usavam o aparato estatal para escolher vítimas).
O pedido de habeas corpus foi concedido pelo desembargador Sebastião Barbosa Farias, plantonista da Secretaria de Plantão da Justiça, que argumentou que “os indícios não possuem o condão, a meu viso, de minimamente criminalizar os pacientes” e que as prisões não podem ser usadas de forma “desproporcional” e “decorrente de testemunhos de pessoas ‘supostamente envolvidas’ e de Laudos que podem ser contestados, com possibilidade de apontamento futuro de inexistência de caracterização criminosa”.
À reportagem, o advogado Augusto Bouret Orro disse que fez os pedidos de liberdade para todos os PMs, mas não está responsável pela defesa dos 63. Questionado sobre quais seriam e qual o posicionamento, não respondeu.
Também procuramos a defesa do informante sobre as delações, mas o advogado Wesley Amorim disse que só fará declaração quando for concedida proteção pelo Núcleo de Defesa da Vida do Ministério Público Estadual. O promotor de Justiça Vinicius Gahyva Martins disse, por meio de nota, que nesta quarta-feira (6/4) “os promotores receberam um interessado, acompanhado de seu advogado, mas até o final do expediente, nada foi protocolado”.
Pedimos entrevista com delegados da DHPP responsáveis pela operação cuja assessoria disse, em nota, que “só passará informações sobre a operação Simulacrum após a conclusão dos trabalhos investigativos”.
Não localizamos a defesa de Wesley Matos Moreira nem dos demais policiais.
*Reportagem atualizada às 13h45, de 07/04/2022, após resposta da DHPP.