Em audiência na Justiça Militar, testemunha protegida detalha segundos antes da morte do jovem: “mandaram ele correr e ele disse: ‘não, o senhor vai atirar em mim'”
Nesta sexta-feira (3/7), duas testemunhas colocaram os policiais militares em dois momentos distintos na cena do assassinato de David Nascimento dos Santos, 23 anos, ocorrido na noite de 24 de abril de 2020. O vendedor ambulante apareceu morto após ser levado da rua paralela à de sua casa quando esperava um lanche pelo iFood.
No dia 19 de junho, a Justiça Militar aceitou a denúncia do Ministério Público que indica o seguinte: no dia 24 de abril, às 19h48, na esquina da rua Andries Both com a Marginal do Pinheiros, na Favela do Areião, no Jaguaré, zona oeste de SP, os policiais do 5º Baep (Batalhão de Operações Esppeciais) 1º sargento Carlos Antonio Rodrigues do Carmo, 2º sargento Carlos Alberto dos Santos Lins, cabo Lucas dos Santos Espíndola, cabo Cristiano Gonçalves Machado, soldado Vagner da Silva Borges, soldado Antonio Carlos Rodrigues de Brito e soldado Cleber Firmino de Almeida sequestraram David Nascimento dos Santos e, na sequência, o mataram.
A primeira testemunha ouvida nesta primeira audiência afirmou que “as roupas de David estavam todas furadas e cheias de sangue”.
“Tudo tinha furos de tiros. O traje que colocaram nele não tinha nenhuma perfuração de bala”, declarou a jovem moradora da Favela do Areião, periferia da zona oeste da cidade de SP, onde David morava e foi levado pelos policiais militares, como mostram as imagens de uma câmera de segurança divulgadas pela Ponte.
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Por volta das 18h30, ela conta ter visto David saindo da viela onde morava. Ela afirma que ele estava esperando o lanche e usando o Wi-Fi de um comércio na avenida ao lado. A testemunha narrou o momento em que David foi revistado e colocado dentro da viatura, no banco traseiro. Durante o depoimento, a jovem afirma que David trajava bermuda florida, chinelo verde e uma blusa tipo corta-vento azul escura.
A testemunha também afirma que, pouco tempo depois, por volta das 20h30, um tio de David chegou na favela procurando pela mãe do jovem, dona Cilene Geraldina dos Santos, 38, mas não a encontrou porque ela estava procurando pelo filho: “Agora que mataram o filho dela, ela sumiu”.
Dias depois, quando foi ouvida pela Corregedoria da PM, a jovem viu, por imagem, a roupa que David usava no dia que foi levado pelos policiais. Ela contou que só ficou sabendo da mudança dos trajes depois da perícia.
Segundo a denúncia do Ministério Público, os PMs trocaram a bermuda de David por uma calça preta com o símbolo do Corinthians e o chinelo por um tênis.
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A segunda testemunha ouvida na audiência afirmou que viu o momento que os policiais chegaram na Favela dos Porcos, comunidade vizinha à Favela do Areião, onde o jovem, segundo a investigação, foi executado.
Por volta das 20h, três viaturas chegaram no local. Um dos PMs, afirmou a testemunha protegida, saiu com uma arma e mandou todos que estavam ali correrem. Ela contou que viu um jovem negro de bermuda e chinelo descer da viatura, mas que, em um primeiro momento, não reconheceu como David. As vestimentas batem exatamente com o relato da jovem que viu a vítima ainda no Areião.
A testemunha afirmou que os moradores ouviram o momento em que os policiais mandaram David correr e ele se negou. “O pessoal ouviu que mandaram ele correr e ele disse ‘não, senhor, não vou correr se não o senhor vai atirar em mim'”, declarou. Pouco depois que os moradores foram retirados dali, ela ouviu vários disparos.
Só após meia hora, contou a testemunha, os moradores puderam chegar perto do corpo. Foi quando ela reconheceu David. A mulher contou que conhecia David do seu trabalho de vendedor de balas no trem e do Areião, já que as duas comunidades são próximas, cerca de 15 minutos andando. Quando ela identificou o corpo percebeu que a roupa havia sido trocada.
A audiência foi realizada por videoconferência por causa da pandemia do coronavírus e participaram cinco juízes da Justiça Militar, entre eles o juiz responsável pelo caso, Ronaldo João Roth, o promotor Edson Corrêa Batista, os réus e os advogados de defesa, e as testemunhas.
Depoimentos se complementam
À Ponte, o advogado Raphael Blaselbauer, que representa a família da vítima, avalia que os depoimentos são muito importantes e se complementam. “Hoje, sem dúvida nenhuma, foi um dos dias mais importantes para todo o julgamento, não só porque marca o início da instrução do processo, mas porque foram ouvidas as duas testemunhas chaves desse julgamento”, avalia.
“Uma é a testemunha que viu e pode relatar a abordagem e a outra testemunha relata com precisão o momento com que esses policiais militares desembarcam o David na Favela dos Porcos, narrando a perfeita cronologia que os fatos aconteceram”, aponta.
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O advogado também informou que a defesa está preparando uma ação indenizatória contra o Governo do Estado de São Paulo “pela prática abusiva da PM e busca um reparo por todo o dano moral e sofrimento causado para a família”.
Foi homicídio em legítima defesa, diz advogado dos PMs
O advogado Mauro Ribas, que cuida da defesa dos sete PMs acusados do sequestro seguido de morte de David, tentou, no começo da audiência, deslocar o julgamento para a Justiça comum, alegando que havia conflito de interesse se o caso fosse julgado pelo Tribunal de Justiça Militar. O caso também é investigado pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa). Segundo Ribas, imputar aos policiais “sequestro seguido de morte” é dizer que houve ação com intenção, o que não é verdade.
Para a defesa, David morreu em decorrência de cinco disparos de armas de fogo e que essa autoria foi admitida pelos réus, que alegam legítima defesa. “Não existiu nenhum elemento criminal que aponte a prática de tortura e maus tratos, considerando que o laudo não aponta nenhuma outra lesão, além dos disparos”, explica.
Em resposta, o promotor de justiça Edson Corrêa Batista, do Ministério Público de São Paulo, informou que o tipo penal é específico, já que é um sequestro qualificado pelo resultado morte.
“Entendemos que esses delitos são da competência da Justiça militar e, mais do que isso, podemos atribuir os demais crimes para o Tribunal comum. Temos, então crimes militares específicos, que devem ser julgados pela Justiça Militar, ainda que tenham conexão com crimes do Tribunal comum, mas entendemos que não há crime comum a ser apreciado”, rebateu o promotor.
Em entrevista à Ponte, o advogado Mauro Ribas, que cuida da defesa dos PMs ao lado de Renato Nascimento Soares, argumenta que a ação dos policiais foi legítima. “As testemunhas ouvidas hoje estão mentindo. Sequer é competência da Justiça Militar julgar isso. A acusação em si é de homicídio, eu não consegui entender o sentido de falarem que é um sequestro seguido de morte”.
Ribas também afirma que a roupa do David não foi trocada. “No momento do embate, ele estava com aquela roupa. Vamos nos manifestar futuramente com as provas do momento em que David foi abordado e apontar que quem foi abordado no vídeo foi liberado”, frisou.
Outro lado
A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública de SP e a Polícia Militar para questionar sobre apuração interna, a avaliação do julgamento e a permanência dos sete réus na corporação.
Em nota*, a assessoria de imprensa da PM declarou que “os sete policiais militares seguem presos no Presídio Militar Romão Gomes e permanecem no quadro efetivo da PM. Todos também serão submetidos a processo administrativo”.
*Reportagem atualizada às 18h27, de 4/7/2020, para incluir nota da assessoria da PM