‘Um ano que eu não tenho contato com o meu filho, que eu não posso dar um beijo nele’, lamenta pai de Cadu

    Carlos Eduardo dos Santos Nascimento, o Cadu, desapareceu em 27 de dezembro de 2019 após ser abordado por uma viatura da PM em Jundiaí (SP); um ano depois, a investigação avançou pouco e família segue sem saber o paradeiro do jovem

    Carlos Eduardo desapareceu em 27 de dezembro de 2019 após ser abordado pela PM | Foto: Arquivo pessoal

    O Natal desse ano não foi um dia de festa para a família de Carlos Eduardo dos Santos Nascimento, o Cadu, 20 anos, desaparecido desde 27 de dezembro de 2019, na periferia de Jundiaí, interior de São Paulo. Seus pais já não têm o que comemorar um ano após seu único filho ter sido levado por uma viatura da Polícia Militar e nunca mais aparecer.

    “Se eu falar para você hoje se eu tenho esperança de encontrar o meu filho vivo, eu vou estar mentindo. Eu não tenho mais esperança de encontrar o meu filho vivo, mas pelo menos que me entregue o corpo dele para a gente enterrar. Pelo menos enterrar as ossadas dele. É só isso que a gente quer, mas ninguém fala nada, ninguém toma atitude nenhuma”, lamenta o segurança Eduardo Aparecido do Nascimento, 53 anos, pai de Cadu.

    Em entrevista à Ponte, Eduardo desabou pela primeira vez desde janeiro de 2020, quando a reportagem começou a acompanhar o caso. As palavras saíram com dificuldade em meio às lágrimas e à revolta de um pai que passaria o primeiro Natal sem seu filho.

    “Um ano que eu não tenho contato com o meu filho, que eu não posso dar um beijo no meu filho. Como a gente fica? Se a gente soubesse que ele tá morto, pelo menos saberíamos algo. Mas nem isso a gente sabe. Dói demais, dói muito. Enquanto isso os policiais estão sentados nas casas deles, curtindo com a família deles”, lamenta.

    “Todo mês quando chega o dia 27 seguimos sem reposta. Estamos vivendo por fora, porque por dentro estamos mortos. Eles conseguiram matar a gente por dentro. Conseguiram matar eu, a mãe dele, a madrasta dele. Conseguiram matar todo mundo da família. Somos pretos, somos pobres e ficamos de mãos atadas. Se a gente tivesse dinheiro já teríamos uma resposta. É muito difícil”, completa Eduardo.

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    Os policiais citados pelo pai de Cadu são o sargento PM Anderson Torres e os soldados PM Júlio César de Lima e PM Denilson Lucas Diniz, ambos do policiais do 49º BPM/I (Batalhão da Polícia Militar do Interior), que patrulhavam a viatura que testemunhas afirmam ter sido vista na rua Benedito Basílio Souza Filho, no bairro Jardim São Camilo, na tarde de 27 de dezembro de 2019.

    Testemunhas ouvidas pela Polícia Civil apontam que Cadu estava com mais quatro amigos quando foi abordado pela PM. Todos foram revistados, mas apenas Cadu, único negro do grupo, teve o celular apreendido e foi levado pelos policiais.

    O caso começou a ser investigado pela DIG (Delegacia de Investigações Gerais) de Jundiaí em 2 de janeiro. Em 14 de agosto, o delegado Josias Guimarães, responsável pela investigação, encerrou os trabalhos e encaminhou o processo para a Justiça. Questionada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública se restringiu a responder apenas isso. A Polícia Militar também foi questionada e não retornou a solicitação.

    Apesar dessa ausência de respostas, Eduardo tenta manter as esperanças. “Temos que ter confiança na Justiça, se a gente perder as esperanças fica complicado. A gente achou que demoraria três meses para ter uma resposta, com todas as provas que tínhamos. Mas é um ano de enrolação, sem a gente saber de nada”.

    O pai de Cadu contou à Ponte que, em uma conversa na Corregedoria, ouviu dos responsáveis pela investigação que “‘sem corpo não tem crime, sem crime vai ser considerado como um caso de sequestro’. Antes estava como desaparecimento. Mas quem sequestrou? Onde sequestrou?”, questiona.

    Eduardo lamenta o abandono que a família tem enfrentado. “A família tá jogada, abandonada. Não temos ninguém para lutar pela nossa classe de pobres e negros. Enquanto no Brasil tiver essa palhaçada de polícia investigar polícia isso vai continuar”.

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    “Pobres, negros, favelados vão continuar desparecendo. A polícia hoje em dia, no Brasil, é um grupo de extermínio. É o que tinha na década de 1970 que matava todo mundo e ficava por isso mesmo. Estamos vivendo tudo de novo. A ditadura não acabou, continua a mesma coisa, só está mascarada”, desabafa.

    Para o pai de Cadu, o próximo passo é entrar com um processo contra o Estado. “Temos provas que o meu filho foi abordado por essa viatura. Existem fotos, testemunhas. Eu não queria chegar a esse ponto, porque eu não estou visando dinheiro, estou visando responsabilidade. Mas o Estado, o nosso Estado, só começa a tomar uma atitude quando você entra com um processo e isso vai adiante”.

    As investigações

    O processo do desaparecimento de Cadu está em segredo de justiça e por isso a reportagem não pode ler o documento na íntegra. O advogado Fábio Juliate, que auxilia a família do jovem, detalhou à Ponte o que foi feito nesse um ano de investigação sem repostas.

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    Para Juliate, as investigações foram conduzidas de “uma forma incomum”. “Talvez pelo envolvimento de policiais como suspeitos e existia um certo corporativismo, ainda que seja entre a Polícia Civil e a Polícia Militar. As investigações estão sendo atípicas”, define.

    O promotor designado pelo Ministério Público de São Paulo desde janeiro foi Jocimar Guimarães, mas o advogado da família de Cadu garante: “Não foram pedidas muitas diligências pelo MP durante esse período de um ano, todos os pedidos que foram feitos além daquilo que a polícia fez, de ofício, partiram da nossa parte. Muitos dos nossos pedidos não foram cumpridos pela Polícia Civil e fomos pessoalmente atrás disso para conseguir encontrar uma resposta”.

    Juliate aponta que as testemunhas ouvidas pela Polícia Civil, no começo das investigações, disseram que não se lembram de Cadu ter sido abordado pela PM. “Essas testemunhas surgiram em um contexto estranho, porque não sabemos como elas foram levadas e tiveram o acompanhamento do advogado dos policiais”, explica o advogado.

    Daí, a família de Cadu voltou ao local e encontrou novas testemunhas. “Conseguimos levar uma delas na Corregedoria. A testemunha presenciou essa abordagem e viu o Cadu ser levado pela PM. Várias outras pessoas nos falaram e falaram para os pais do Cadu sobre ele ter sido levado pela PM, mas é uma região que tem uma opressão policial constante, de policiais que frequentam de forma incisiva, e tiveram medo de depor”.

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    Além das testemunhas, Fábio Juliate conta quais foram as provas técnicas colhidas nesses dozes meses. A primeira prova é a perícia na viatura, que, como a Ponte adiantou em 24 de janeiro deste ano, foi limpa poucos dias depois do desaparecimento do jovem. Segundo o laudo da Polícia Técnico-Científica, a perícia não conseguiu identificar quando exatamente o carro teria sido lavado, mas “constatou que o veículo se apresentava, tanto externamente quando internamente, com vestígio de limpeza recente.”

    “Essa prova tinha como objetivo encontrar algum vestígio que indicasse que alguém foi levado naquela viatura. A viatura estava até com os pneus brilhando. Fizeram uma limpeza pesada e não foi encontrado nada”, critica Juliate.

    “Indicamos uma falha na cadeia de custódia, porque se sabiam qual era a viatura, se tinham a notícia do desaparecimento e de que alguém havia sido levado, a Polícia Civil devia ter feito uma diligência de imediato para, pelo menos, resguardar essa viatura, para que ela não fosse colocada na rua ou lavada. Mas não aconteceu. A perícia foi feita quase dez dias depois do desaparecimento”, completa.

    Imagem do laudo pericial mostra luminol reagindo ao fundo da viatura, indicando presença de vestígio de sangue

    Depois disso, os advogados da família de Cadu solicitaram a geolocalização das viaturas e a quebra de sigilo telefônico dos três PMs investigados no caso. “O registro que foi fornecido pelas empresas de telefonia mostra que tem um lapso sem nenhum tipo de ligação que pudesse indicar a localização das pessoas que estivessem nessa viatura. Esse lapso coincidentemente é no mesmo período em que o Cadu desapareceu”, lamenta Juliate.

    Eles também pediram imagens das câmeras da Guarda Municipal, que, como explicou Fábio Juliate: “são muito inteligentes aqui em Jundiaí, conseguem, pela placa, fazer uma busca pela cidade”. “As imagens são muito eficientes para buscar carros roubados, por exemplo. Essa foi uma ferramenta que buscamos, mas durante o período que o Cadu desapareceu também não tem registro da viatura. Isso consta nos autos, mas não foi efetivo”.

    O advogado da família de Cadu aponta também para o fato de que a viatura estava sem GPS. “Recebemos algumas informações de que todas as viaturas deveriam ter, mas essa, em específico, não tinha. Também pedimos imagens das câmeras dos ônibus que passam na região. Mas a Polícia Civil não cumpriu essa solicitação. Fomos diretamente na Prefeitura e conseguimos buscar uma resposta: pelo período, que demorou, as imagens não existiam mais”.

    Outras duas solicitações feitas pelos advogados da família, que não foram cumpridas pela Polícia Civil, explica Juliate, foram o uso do Canil da PM nas regiões de Jarinu e do Caxambu, em Jundiaí, em determinados dias, e uma nova oitiva dos PMs envolvidos no caso. “Encontramos lacunas nos depoimentos e precisávamos de mais informações, como por exemplo quem define a rota da viatura no dia, para saber quem definia para onde eles iriam”.

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    O advogado também detalhou uma ligação recebida pelo Copom (Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo) logo no começo do desaparecimento de Cadu, mas que só foi anexada ao processo em novembro.

    “Nessa ligação, a pessoa, bastante desesperada, indica que haveria um corpo ali na região do Caxambu e que ele sabia que aquele corpo teria sido deixado lá por um policial. Ele fala que está na frente do corpo e que era o menino que desapareceu, indicando que seria o Cadu”, explica.

    Carlos Eduardo dos Santos Nascimento, o Cadu, está desaparecido desde o dia 27 de dezembro | Foto: arquivo pessoal

    “Foi muito estranha essa ligação. É uma pessoa que está em um lugar meio ermo, ele fala que está na região do Caxambu, perto do mercado tal e pergunta se a pessoa sabe onde é. A pessoa do Copom responde que não sabe e que precisa de um endereço. Aí o cara fala que não tem endereço. O rapaz tentava explicar na ligação, disse que ligaria pra imprensa e a pessoa do Copom disse para ligar para imprensa e desligou a ligação”, completa Juliate.

    Alguns dias depois, continua o advogado Fábio Juliate, o Copom ligou para este telefone e falou com a esposa do homem que relatou ter visto o corpo de Cadu. “Ela disse que não estava com ele, mas que ele relatou para ela e que ficou bastante transtornado. Pelo fato de ele ser usuário de drogas, a polícia deixou de lado. Várias outras ligações foram feitas apontando que o corpo do Cadu estaria naquela região e todas as vezes a polícia tratou isso como se fosse trote. Não foi irem até lá e não encontrarem, eles já colocaram como trote. Os policiais teriam ido alguns dias depois e não encontraram nada”.

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    Outra prova anexada ao processo, explica Fábio Juliate, é o áudio interno da viatura. “Ele foi gravado das 10h da manhã até as 17h do dia 27 de dezembro de 2019. Essa gravação não traz nenhuma informação segundo eles colocaram no relatório. É um período de uma hora e meia de todo esse dia de trabalho. De áudio mesmo são três minutos. A gente não sabe porque não tem o restante, se o aparelho não gravou, se ele foi desligado”.

    Apesar das provas e das lacunas entre elas, a Polícia Civil encerrou as investigações e finalizou o relatório em 14 de agosto de 2020 sem fazer algum indiciamento ou explicar o que teria acontecido com Cadu.

    “O relatório também não faz indicação de nenhuma das testemunhas que afirmam que o Cadu foi levado pela Polícia Militar. O promotor Jocimar Guimarães respondeu dizendo que enxerga que houve um crime contra a vida e que por isso iria remeter para um promotor da Vara do Júri”.

    Eduardo, pai de Cadu, mostra que conta do filho no WhatsApp foi desativada poucos dias após o desaparecimento | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    A nova promotora do caso é Kelli Giovanna Altieri Arantes, da comarca criminal do Ministério Público de Jundiaí. A reportagem questionou o MP para saber como está o processo e solicitar entrevista com a promotora, mas não teve retorno.

    Para Fábio Juliate, a percepção da defesa é que a investigação poderia ter ocorrido de forma diferente. “Poderia ter sido mais incisiva, mais ágil em relação aos nossos pedidos e na preservação das provas”. “Atuamos bastante na área criminal e vemos indiciamentos e pessoas sendo presas por situações muito simples, com reconhecimentos feitos de forma incorreta em delegacia, por uma testemunha que teria ouvido falar”, compara.

    “Nesse caso do Cadu, apesar de a gente ter testemunhas que viram o Cadu ter sido levado, de termos indícios de que isso aconteceu, tivemos um relatório policial que foi inconclusivo. É estranho não termos nenhuma indicação do que poderia ter acontecido. Inclusive ignora as testemunhas que indicam o envolvimento dos policiais militares”.

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    O próximo passo, explica o advogado, é aguardar o Inquérito Policial Militar. “A partir daí, vamos identificar o que foi apurado por eles, porque foi, de fato, uma investigação paralela. A nossa esperança é que haja alguma informação relevante e que a nova promotora consiga identificar alguma situação. Já estamos com um ano de investigação e precisamos de mais agilidade, de mais vontade para elucidar as informações”.

    Outro lado

    A reportagem solicitou entrevista com os policiais militares citados, com a promotora do MP e com o delegado da DIG e não obteve retorno até o momento de publicação.

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