Mulher trans e negra, ela foi espancada e despida numa carceragem masculina, há cinco anos, antes de ser diagnosticada como portadora de transtorno mental; hoje faz tratamento e sonha em ser enfermeira
Afetiva e carinhosa são algumas características que passam pela cabeça da publicitária e ativista trans Neon Cunha, de 50 anos, ao lembrar da amiga, Verônica Alves Francisco, a Verônica Bolina, de quem se aproximou em 2017. “Ela parece uma adolescente de 17 anos, extremamente doce”, aponta. “É muito tocante a história da Verônica, pois é um padrão de vida que se repete: uma menina negra, trans, do interior que vem para São Paulo tentar uma vida, que tem todas as dificuldades e cai na prostituição”, lamenta.
A doçura que a ativista identificou em Verônica contrasta com as violências que ela provocou e de que foi vítima após um surto psicótico, há exatos cinco anos. Naquele ano, Verônica foi presa por agredir uma vizinha e levada a uma carceragem masculina no centro da cidade de São Paulo. Ali, após arrancar parte da orelha de um carcereiro com uma mordida, foi brutalmente agredida por policiais. Seu cabelo foi raspado e o rosto ficou desfigurado após ser espancada. Ela foi despida, colocada no chão, algemada pelos pés, e mãos e fotografada. As imagens se espalharam pelas redes sociais e se tornaram um símbolo da violência do Estado contra as mulheres trans.
Verônica atualmente cumpre medida de segurança no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, de Taubaté, a 130 km da capital paulista, onde está internada desde janeiro de 2018, após ser detida novamente, acusada de tentativa de homicídio contra uma mulher. Ela está, simultaneamente, cumprindo a medida de segurança de internação pelo primeiro processo e internada provisoriamente pelo segundo processo.
Ela carrega em seu corpo muitas lutas. Mulher transexual, negra, interiorana, foi diagnosticada com psicose esquizoafetiva (que mescla sintomas de esquizofrenia e transtorno bipolar), mas, desde o início, sua história foi tratada como caso de polícia, e não de saúde mental.
A primeira prisão
Nascida em São Bernardo do Campo (Grande SP), Verônica passou a infância em Mococa, a 266 km da capital. Quando se mudou para a cidade de São Paulo, atuou como modelo, garota de programa e atriz pornô. Hoje, após trabalhar no auxílio a outros detentos em Taubaté, sonha em ser enfermeira.
A primeira prisão de Verônica foi em 12 de abril de 2015, quando agrediu uma vizinha idosa. Foi encaminhada ao 2º DP (Bom Retiro), no centro da cidade de São Paulo. Ali, foi vítima da agressão que a tornou tristemente conhecida.
Um mês depois, o Ministério Público de São Paulo instaurou o incidente de insanidade mental (procedimento para verificar se o réu, por questões de problemas mentais, pode ou não responder por seus crimes como um preso comum). O laudo saiu em setembro do mesmo ano.
Em 2017, a Justiça declarou que Bolina era absolutamente inimputável (ou seja, não poderia cumprir pena num presídio comum) e ela passou a cumprir medida de segurança com tratamento ambulatorial. O alvará de soltura foi expedido em 18 de abril daquele ano.
Durante dois anos, nada foi feito para preservar ou cuidar da saúde mental de Verônica, que voltou ao sistema prisional em outubro de 2017, quando foi presa pela segunda vez. Na maior parte do tempo em que ficou presa, Bolina ficou no Centro de Detenção Provisória Pinheiros III, uma das unidades prisionais masculinas da capital de SP, para presos comuns.
Desde janeiro de 2018, ela cumpre medida de segurança em Taubaté. Só aí ela começou a receber o tratamento psiquiátrico que precisava, com as medicações necessárias.
É a segunda vez que a modelo passa pelo Hospital Psiquiátrico. Entre novembro de 2016 e outubro de 2017, quando foi enviada ao CDP de Pinheiros, Verônica ficou internada no em Taubaté. A perícia psiquiátrica foi realizada em março de 2016, quando detectaram sua inimputabilidade.
Entre a primeira e a segunda prisão, Verônica morou com o pai, em Mococa. Depois de alguns meses, voltou para São Paulo em busca de oportunidades de trabalho. Nesse período, Bolina teve atuação mais ativa nas militância negra e LGBT+ e procurou acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, com sensibilidade às questões de identidade de gênero, o que não havia conseguido em Mococa, mas não conseguiu a tempo. A segunda prisão aconteceu dois dias antes da primeira consulta psiquiátrica.
A ativista Neon Cunha conta que se aproximou de Verônica em um evento na Casa 1, centro de acolhida para pessoas LGBTs, sobre o sistema penitenciário para população LGBT+ em 2017.
A última frase que Verônica disse para Neon, depois de um evento da Marcha das Mulheres Negras no Aparelha Luzia, conhecido como quilombo urbano cultural e de resistência negra e LGBT+, foi a de que, pela primeira vez, tinha sido tratada como gente.
“A Verônica é uma referência das pessoas que são vítimas de omissão de uma sociedade, de um Estado. Tem a violência da exclusão e depois as violências do sistema que não dá conta, que não se responsabiliza pelo que fez com ela”, pontua a ativista.
A segunda prisão
Bolina foi presa em 1º de outubro de 2017 acusada de tentativa de homicídio, mas Carolina Gerassi, advogada dela, aponta falhas graves no processo: a suposta vítima, até hoje, quase dois anos e meio depois, não foi identificada e nunca prestou depoimento, na fase policial ou em juízo. Verônica sequer foi apresentada na audiência de custódia, pois os policiais informaram à juíza que ela era “muito perigosa para ser tirada da carceragem dk Fórum”.
A advogada cita que o “inquérito elaborado em menos de 24 horas, sem qualquer solicitação para identificar a suposta vítima e a escutar, a realização de exame de corpo de delito direto ou indireto, com base em prontuário médico igualmente não providenciado pela Autoridade Policial”, critica Gerassi.
“O delegado em poucas horas fez o flagrante, ouviu dois policiais e a testemunha presencial que narra uma dinâmica completamente diferente do crime que Verônica é acusada, e simplesmente capitulou em tentativa de homicídio com base nos antecedentes dela. Ele não fez a investigação que deveria fazer, simplesmente se livrou do feito, sem sequer determinar perícia no local dos fatos”, continua a defensora.
“Assim como o Ministério Público que, ao invés de requerer diligências para a explicar os fatos, optou por oferecer denúncia sem mínimo de indício, apenas replicando as deduções constantes no Relatório Final”, explica.
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No processo contra Verônica, não há nenhum laudo de exame de corpo de delito para comprovar a materialidade do crime. Um prontuário médico foi adicionado constando o atendimento de uma pessoa não identificada, que aponta que deu entrada com histórico de agressão, mas estava consciente, orientada e não precisou ficar internada.
A única testemunha presencial, conta Carolina, descreve uma situação de agressão rápida entre uma travesti e uma pessoa em situação de rua. “Ela informa que a travesti teria cessado a briga voluntariamente e seguido pela via pública, tendo sido detida em outro local.”
“Ou seja, não obstante a falta comprovação da materialidade do suposto crime, o que ensejaria inicialmente a rejeição da denúncia, após a instrução ficou cabalmente demonstrado o descabimento da imputação de homicídio qualificado tentado feita pelo Ministério Público contra a Verônica”, explica a defensora.
Segundo afirma o MP, Verônica teria utilizado instrumento cortante, a vítima teria sido internada em estado grave e estava desacordada, sendo que o homicídio só não havia se consumado por intervenções de terceiros e socorro à vítima.
“A narrativa acusatória afirma fatos e detalhes completamente rechaçados pela própria prova processual. Ainda que o prontuário médico da suposta vítima e a única testemunha presencial apontem para uma dinâmica de fatos e resultados completamente diferentes”, aponta Gerassi.
Atualmente, o processo de Verônica está na fase das alegações finais, da defesa e da acusação. “O Ministério Público pleiteia a absolvição sumária imprópria com aplicação de medida de segurança de internação em instituição manicomial (Hospital de Custódia) e, subsidiariamente, a submissão de Verônica ao júri popular”, conta Carolina.
A tese da defesa, explica Gerassi, é pela ausência de comprovação de materialidade. O requerimento é pela desclassificação e remessa do fato para uma das varas criminais comuns, para apuração de crime de lesão corporal.
“Já se passaram mais de dois anos e, para burlar o flagrante excesso de prazo para conclusão do processo com Verônica presa preventivamente no CDP, foi concedida a instauração de incidente de insanidade mental da acusada, requerido exclusivamente pela acusação sob protestos da defesa, e determinada sua internação provisória no Hospital de Custódia de Taubaté”, argumenta a advogada.
A advogada detalha que esse fato aconteceu depois que a defesa solicitou habeas corpus de Verônica. “Mesmo tendo sido denegado, [o pedido] provocou o desembargador relator a determinar finalmente a expedição de guia de execução nos autos do processo anterior, em que Verônica foi absolvida sumariamente por inimputabilidade, tendo sido determinada, à época, medida de segurança de atendimento ambulatorial que jamais foi providenciada pelo Estado”.
Gerassi é contra o incidente de insanidade mental e conta que está lutando para que o processo não seja encerrado dessa forma. “Incidente de inssanidade mental serve para apurar se a pessoa, na data do fato, tinha condições de entender o que ela estava fazendo e de se controlar diante desse fato. Isso diz respeito a culpabilidade, se a pessoa pode sofrer uma pena encarceradora. É indispensável comprovar a materialidade ou autoria do crime”, explica.
Um laudo de periculosidade feito em janeiro de 2020 apontou que Verônica está bem, tem ótimo comportamento e convive bem com internos e funcionários. O documento também aponta que não houve episódios de indisciplina durante os dois anos que ela está internada no HCTP e pede a continuidade do tratamento no local.
Com a demora na expedição da guia de execução, explica a advogada, a Vara de Execuções Criminais foi informada da existência do processo atual, assim que foi iniciada a execução, o que acarretou na conversão imediata da medida de segurança de atendimento ambulatorial em internação. “A decisão foi tomada baseada apenas na notícia do processo em curso, ou seja, em flagrante afronta o princípio da presunção de inocência”.
‘Quando ela sair, teremos uma Verônica feminista preta’
Hoje, Verônica quer seguir a carreira da enfermagem, paixão que descobriu em um curso durante sua internação no HCTP de Taubaté, onde ajuda os funcionários nos cuidados básicos com os internos. Nesses anos de cárcere, nunca abandonou a leitura, outra de suas paixões.
“Verônica me mostrou que é possível sonhar, mesmo com todas as dores. Me ensinou que as mulheres incríveis nem sempre são as mulheres distantes”, aponta Neon Cunha.
A jornalista Cinthia Gomes, integrante da Marcha de Mulheres Negras de SP, que se aproximou de Verônica, ou Veve, como gosta de ser chamada pelas amigas, no mesmo período que Neon, contou à Ponte que troca cartas com Bolina.
“Ela está ‘menos pior’ do que se estivesse em uma penitenciária comum, porque ela é detida no masculino, já que o nome dela ainda não é retificado. Ela tá relativamente bem, dentro do que pode-se estar bem para uma pessoa que está privada de liberdade”, conta Cinthia.
“Na última carta que ela me mandou, agora em janeiro, ela estava bem mais animada, antes ela não estava não. Ela está empolgada e voltou a falar sobre quando ela sair de lá, ela recuperou a esperança e a vontade de ter uma vida quando sair”, comemora.
Cinthia e Verônica se conheceram em 2017, quando Gomes convidou Bolina para participar de uma reunião do Bazar das Poderosas, um bazar para pessoas trans e travesti.
“Começamos a nos falar com mais frequência e ela me contava dos sonhos dela, que ela queria muito aprender inglês, que ela queria abrir uma loja de ginástica. Mas, na vida real, o que ela estava encontrando era dificuldade para conseguir qualquer emprego, então, por causa disso, ela tinha voltado a fazer programas, mas isso não estava fazendo bem para ela”, relembra Cinthia.
Na última carta enviada à Verônica, Cinthia mandou junto o livro ‘Pensamento Feminista Negro’, da socióloga Patricia Hill Collins. “Ela amou super e disse que começou a ler, que na próxima carta poderíamos falar sobre isso uma Verônica feminista negra. Teremos uma Verônica feminista preta”, brinca.
“Ela não tinha entrado em contato com a militância até sair da primeira prisão. Com certeza, vai sair uma outra Verônica agora, uma Verônica que já não tava afim de continuar na mesma vida. Ela está em uma descoberta da questão racial, está deixando o cabelo dela natural, que antes ela alisava”, conta Gomes.
Outro lado
A reportagem procurou o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico para saber o histórico dos dois anos que Verônica está internada na unidade e saber se houve algum problema no comportamento da modelo nesse período.
Também procurou o Ministério Público de São Paulo e o Tribunal de Justiça de São Paulo para questionar os apontamentos da defesa de Verônica Bolina. O TJ-SP informou que, como o processo está em segredo de justiça, não há informações para serem passadas. O MP ainda não se manifestou.
A Secretaria da Segurança Pública também foi procurada sobre a agressão que Verônica sofreu de policiais quando foi detida em 2015. A InPress, assessoria de imprensa terceirizada da pasta, apenas disse que o caso foi apurado pela Corregedoria da Polícia Civil, mas não explicou o resultado da apuração. A SSP se limitou a informar que “a atual gestão tem intensificado as ações de combate à violência sexual e de gênero” e que “todos os distritos policiais são aptos a registrar e investigar crimes contra vítimas LGBTIs”.