Para Robson Rodrigues, discurso de combate adotado pelo governador é um dos fatores, não o único, para a maior letalidade da história da polícia
Robson Rodrigues comandou o Estado-Maior da PMERJ (Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro). Tem a experiência de quem tentou controlar a tropa para que ela reduzisse as mortes cometidas no estado. Com esta bagagem, o coronel aposentado analisa o primeiro ano do governo de Wilson Witzel (PSC), que registrou números de mortalidade nunca antes vistos, com a polícia fluminense sendo responsável por 50% os homicídios em partes do estado.
“O que Witzel faz é abrir a porteira de uma forma oportunista para surfar nessa onda, isso é perigoso porque esgoela as polícias. As polícias estão nas pesquisas, vivem um paradoxo de ser a que mais mata e também ser a polícia que mais morre”, analisa. Para ele, o problema da letalidade é anterior ao ex-juiz, mas potencializado pelo discurso bélico implementado na base da lógica “bandido bom é bandido morto”.
Segundo Rodrigues, a principal questão não está só em Witzel, mas em quem legitima sua ação. “O problema é quando a população está disposta a pagar por isso e é uma parcela, sempre a mais pobre, mais vulnerável, que vai sofrer os chamados efeitos colaterais”, define.
Ponte – De uma forma geral, como foi o primeiro ano de Wilson Witzel comandando a segurança pública do Rio de Janeiro?
Robson Rodrigues – Dentro dessas circunstâncias, tecnicamente pode-se dizer que foi ruim para os resultados para a segurança pública. Ainda temos falhas estruturais, que também temos de convir que não foram criadas por ele. Logicamente, ele incrementa alguns desses problemas, principalmente com um discurso muito contundente, de abate, política muito baseada nessa lógica e que não foi ele que criou. É uma inércia da segurança pública, ele só pegou carona nisso e acabou intensificando.
Ponte – Há algum ponto positivo?
Robson Rodrigues – Se pegarmos alguns indicadores, podemos perceber que houve algum progresso em relação ao ano passado, mesmo porque foi um ano muito ruim que já vinha de crise que não foi bem contornada. Entramos 2018 com intervenção que não conseguiu arrumar as coias, mas, de certa forma, alguns indicadores começaram a mostrar sinais de redução. Alguns de roubos, de um recomeço de retomada por parte das polícias de ter um policiamento melhor. Estado estava em frangalhos, a polícia militar conseguiu recursos de outras fontes em meio à crise orçamentária do governo, que deixou polícias sem o mínimo para as atividades operacionais. Falo de frota, equipamentos básicos e isso impactou no policiamento ostensivo. E também na investigação, que têm problemas há bastante tempo. Sobretudo PM, conseguiu convênios com entidades federais para atuar.
Ponte – Isso se deu dentro do próprio governo Witzel?
Robson Rodrigues – Desde ano passado, alguma coisa começou a ser arrumada não pela Intervenção porque recursos não chegaram, vieram só no fim do ano para serem executados em 2019. Tivemos um momento bom dentro de toda a calamidade do Rio de Janeiro. O governo Witzel acaba aproveitando essas ondas mais amenas e vem sendo eficiente nesse sentido: conseguiu os recursos federais, uma PM mais ajeitada. Onde erra? Nessa contundência, insistência por ter um objetivo e jogada política, o que ficou claro nas primeiras semanas do ano, que seria candidato ao planalto. Ali se tem um problema dele com os digamos padrinhos [políticos], mas antes conseguiu encaminhamento na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) a ponto de implementar várias ações que queria na segurança. Esse ano ele apresenta o PPA (Programa Pluri-Anual) de segurança que não tem nenhum investimento em estrutura das polícias, é mais do mesmo, e capturou vários fundos de outras áreas para a segurança.
Ponte – Com relação às políticas públicas, qual sua análise?
Robson Rodrigues – Vemos que se está incorrendo nos mesmo erros que incorremos no passado muito recente, que foi deixar de investir na polícia, em sua reforma, nas estruturas, para investir em uma expansão perigosa das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) e tinha um apelo político ao criar uma bolha de segurança por interesses criminosos, ficamos ressabiados, desconfiados. Ainda mais que em vez de UPP pode ser o Segurança Presente, que é uma alternativa muito importante nesse momento de crise. Outros países já fizeram isso, é interessante abrir uma porta para que os recursos possam chegar, mas com toda transparência. Investir onde estão os problemas estruturais sérios. A PM não se recuperou do impacto que foram as UPPs, ainda cambaleante com o peso que foi suportar uma política pública sozinha. Aumentou demais o efetivo sem aumentar as estruturas de apoio, médico, logística… Esgoelou uma instituição, a Polícia Civil não ficou muito atrás, pelas políticas que oscilam de acordo com interesses eleitoreiros. Ficamos preocupados com intenções de concorrer em 2022, mas ele não tem a base e elas são as prefeituras. Sabemos que em momento de mais tensão, medo, as pessoas querem mais policiais. De onde ele vai tirar? É o mesmo com UPP: governo pagava em hora extra e pagava caro. Em vez de investir em estrutura, se investiu em hora extra. Podemos estar vendo o mesmo filme passar.
Ponte – Nesse primeiro ano sob Witzel, os indicadores apontam que as polícias são responsáveis por 50% de todos os homicídios no estado. Nunca a polícia matou tanto. Como explicar esse dado, que é inédito?
Robson Rodrigues – Isso não é dele. Se não tiver controle, a polícia continuará fazendo. Primeiro, você tem problema sério que é a situação do Rio de Janeiro, que é complexa. É preciso profissionalismo para lidar com isso. Outra coisa: uma ausência histórica do governo federal em suas atribuições. Quando houve intervenção, se falou que a segurança pública é moralmente credora do governo federal. Uma atividade originalmente de responsabilidade da União, que investe pouco. Aqui a situação é diferente de São Paulo, que aponta o PCC (Primeiro Comando da Capital) como organizador do mercado a ponto de evitar ações mais violentas, o que impacta diretamente na redução de homicídios, aqui, não. Não tem isso. Aqui tem um território altamente fragmentado onde um estado, quando não atua de forma criminosa, é mais um dos atores que está guerreando. É uma situação altamente complexa. Esse resultado acuso grande parte da polícia, mas não é só isso. Tem outras histórias, situações, estruturas que não foram mexidas há muito tempo, não só na parte criminosa, mas também nas estruturas do próprio estado que possibilitam o crime. Por uma incompetência ou outros interesses mais prioritários, gera uma situação que chamo de insegurança providencial.
Ponte – Sobre esse índice, o quanto está na conta do Witzel e sua gestão?
Robson Rodrigues – Ele incrementa, mas a situação já está colocada e as estruturas nunca foram tocadas. Não vamos colocar só na conta dele. O que aconteceu é que quando estávamos à frente e tentávamos controlar, mas a secretaria teve peito de colocar isso como indicador estratégico, mostrando que queria claramente controlar esse tipo de coisa. Foi um fator fundamental. O que Witzel faz é abrir a porteira de uma forma oportunista para surfar nessa onda, isso é perigoso porque esgoela as polícias. As polícias estão nas pesquisas, vivem um paradoxo de ser a que mais mata e também ser a polícia que mais morre. Mostra a falta de controle e fragilidade institucional de uma polícia que está sendo estimulada para a guerra por uma série de fatores, sejam eles políticos, todos. É uma covardia. E aí que vem a maior perversidade: vejo um governo que estimula a guerra, que empurra esses caras para a guerra e depois quer tirar parte do fundo da saúde dos policiais que sofrem, que morrem, ficam paraplégicos… Policiais que ficam nessa guerra e acreditam nisso e não têm nem suporte. O mesmo governo que estimula, que joga uma bucha, quer cortar o fundo de reserva da corporação para gerir a saúde. Isso tudo mostra onde o governo quer investir. Essa parte a gente tem que cobrar dele, mas a outra, não. Ele como gestor poderia controlar melhor e, mesmo controlando os indicadores por parte da violência policial, teria indicadores com redução de letalidade, como em 2012.
Ponte – Apesar desse discurso, de ser a polícia que mais mata e que mais morre, temos sentido que parte da população se sente mais segura. Como entender isso? Que corpos negros e da periferia são matáveis?
Robson Rodrigues – Você tem um rio de janeiro com áreas totalmente distintas e as expectativas por segurança também são. Um estado desigual, de áreas na região metropolitana completamente estratificadas e esses conflitos são em áreas ricas e pobres ao mesmo tempo, uma síntese do Brasil nessas regiões. Enquanto há áreas de que a população não quer a polícia, pois tratá mais problemas, o outro quer muita polícia para tirar os seus problemas, quase de forma higienista ao pobre, morador de rua… É aí que o olhar profissional do gestor deveria aparecer para fazer equilíbrio, começando pelo déficit social que gera o medo. Você investir em melhorar as condições das duas polícias, qualificar policiais, a perícia, as investigações, o entendimento de como a PM entrega o policiamento ostensivo, isso não conta em uma agenda com outros interesses políticos. Então, jogar com o medo é interessante e a população acha que isso vai resolver e quer a polícia perto. O que o Witzel está fazendo é justamente intensificar as operações que trazem mais traumas para a população mais vulnerável, não investe num resgate de dívida social, então essas dívidas vão continuar, mas, por outro lado, atende toda expectativa de pessoas em que o senso comum as leva a creditar piamente que esse discurso mais forte vai anular os medos. Se a política consegue de alguma maneira estancar o meu medo, isso está valendo. E, aí, há muita a provação de que há a sensação de que, ao menos momentaneamente, se está contendo e eliminando os fatores de medo, mesmo que por outro lado seja muito traumático para outra parte da população.
Ponte – Dá pra falar que quem mora na favela e votou no Witzel está arrependido?
Robson Rodrigues – Não sei se sim, porque você também pode ter muitas pessoas que moram lá e, por medo de criminosos, aprova. Este estado não foi criado pelo Witzel, é uma situação dramática que essas pessoas vivem: com medo da polícia e também da criminalidade. Caladamente, eles podem também estar achando que está resolvendo problemas ali próximos. Naquelas comunidades que são mais invadidas pela polícia, como Maré e outras áreas que governo tem priorizado, acredito que essas pessoas nem tenham votado no Witzel. Aquelas que votaram e estão sofrendo, elas estejam arrependidas. E tem a parcela calada que aprova, o que é lamentável se ter dentro das próprias comunidades ter gente que aprova essas soluções simplistas. Muitas vezes, além da população mais abastada, quem não aguenta mais viver com o tráfico dá essa legitimação.
Ponte – Existe o acréscimo de mortes pela polícia e a maior parte é na periferia e gera essa sensação de maior segurança. Podemos considerar que corpos negros e periféricos são um parâmetro de sucesso eleitoral?
Robson Rodrigues – Eu acredito que não, não é, nem aqui e nem em lugar nenhum do mundo. tentou-se correlacionar as mortes ocasionadas por policiais com a queda de criminalidade e não tem relação. Se faz o contrário, diminui mortes por policiais, se tem a queda dos outros indicadores, fizemos isso em 2012. Witzel teria uma chance muito maior de pegar esses investimentos federais e reduzir as mortes por policiais e os homicídios, não há correlação de aumento das mortes e diminuição dos homicídios e mortes violentas. E segurança não é só isso: tem dimensão subjetiva e objetiva. O que traz relativo conforto em uma situação calamitosa como essa é investir em algo que possa trazer em certo conforto, o que tem retorno. Para nós, que analisamos de forma racional, ótimo, para o senso comum, esse discurso pode colar, emplacar, com a visão de combater e se ter todos os dias pessoas morrendo e o discurso oficial vai fazer alguma relação dela com a criminalidade, discurso perigoso de se falar que as mortes são efeito colateral para poder se contornar a crise. O problema é quando a população está disposta a pagar por isso e é uma parcela, sempre a mais pobre, mais vulnerável, que vai sofrer os chamados efeitos colaterais. É a perversidade ter a população apoiando. Witzel está se lançando como uma alternativa ao Bolsonaro, pegando uma parte que aceita esse discurso de combate, de ser mais contundente, liberar a polícia para matar sem preocupação com a excludente de ilicitude, avalizado por ter sido um juiz. E nesse quesito tem algumas coisas que população, um segmento muito representativo, considera de autoridade, de juiz que vai resolver… Diria que ele está sendo eficiente por um outro lado, não o republicano de segurança, e precisamos ficar atentos a essa agenda oculta.
Ponte – Como casos feito o das mortes da menina Ágatha e do músico Evaldo Rosa impactam nessa imagem do Witzel?
Robson Rodrigues – Tem também o sequestro da ponte. Isso tudo reforça o discurso, acabam sendo imagens que são elementos que constroem a ordem e reforçam o discurso. Um estado que é ao mesmo fragmentado, desigual, áreas que não se têm a mínima noção do que se passa dentro das comunidades, do sufoco que as pessoas passam, quando você vê um caveirão, a referência que as pessoas têm é a da favela mais perigosa como é vendida diariamente muitas vezes por parte da imprensa. E vêem o local como altamente perigoso, que tem sujeitos super bem armados, subjugam o estado e o coloca, junto da sociedade, ao seus pés. Quando alguém chega com todo o aparado e discurso de força, quem está do lado de cá vê que é a única forma desses caras não virem para cá e me pegar, me matar. E o discurso, com a parte visual, cola e ajuda o Witzel. Chegamos em um nível de insensibilidade, mas não vi no caso do rapaz que tentou assaltar o ônibus uma crítica contundente, ouvi “foi certo”. Não foi certo droga nenhuma! Uma ação altamente controlada temos aquele resultado, imagina uma ação na favela? Mas tiro o chapéu. Dentro da agenda oculta, se compõe todos os elementos para forçar ainda mais essa “eficiência” para os problemas que o Rio apresenta.
Ponte – Como vê o papel do Witzel no combate às milícias?
Robson Rodrigues – Uma questão precisamos ressaltar: o número de ocorrências tem aumentado. Sabemos todos os problemas das polícias, mas temos tido algumas ocorrências e importante seria monitorá-las para ver os resultados de impacto nessas áreas de domínio. Agora, não sabemos se o fato do crime ter aumentado ou as atividades da milícia aumentaram de acordo com a oportunidade que foi criada, pelo discurso mais leniente e benevolente desde o governo federal, ou se é de fato a polícia direcionada para atuar contra esse tipo de crime. Com essas ocorrências, você gera mais inteligência para combater com eficiência. Você entende melhor o mosaico e tabuleiro de conflitos, que é complexo, e quem é policial sabe a série de oportunidade com materiais, vestígios, o que chamamos de árvore para mapear as estruturas. Mas seria positivo se tivéssemos estrutura preparada para processar essas ocorrências, o que não se tem. Se é a primeira hipótese, se impacta na operação desses grupos, se for a outra, vai dar errado mesmo tendo combatido.
Ponte – Como resumiria o primeiro ano do Witzel?
Robson Rodrigues – Não vou falar que foi lamentável de tudo, se vê aspectos que qualquer um que chegaria ali teria problemas. Agora, ele foi frustrante porque os números da violência policial não deveria servir para agenda política. E frustrante não só para mim pelos discursos, que serão sustentados até o final do governo, mas até para quem apostava em coisa melhor e dentro das polícias. Essa manobra no fim do ano, de tirar recurso da saúde da polícia, isso caiu muito mal e tenha tirado um pouco da máscara que os policiais acreditavam. Não cairia no lugar comum de definir como catastrófico, lamentável, que se tem repetido sempre, para abranger o outro público, de policiais, agentes, peritos, para esse público, o primeiro ano foi frustrante.
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