Levantamento aponta que 1.091 presas em nove estados não deixaram as grades entre 2018 e 2019, apesar de lei prever condição a mães de crianças até 12 anos, gestantes ou responsáveis por pessoas com deficiência
Cerca de 2.493 mulheres que cumprem pena em prisões brasileiras têm direito à prisão domiciliar por serem mães de crianças até 12 anos, gestantes ou responsáveis por pessoas com deficiência, mas 43,8% permaneceram presas em regime fechado, de acordo com levantamento realizado pelo ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania). Os dados são referentes ao período de dezembro de 2018 a dezembro de 2019 e foram obtidos de nove estados que responderam pedidos de Lei de Acesso à Informação enviados às secretarias estaduais de Administração Penitenciária.
Dos 26 estados e o Distrito Federal, foram recebidas respostas de Amapá, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe. Apenas os estados de Amapá (76) e Amazonas (26) tiveram 100% do cumprimento do direito à prisão domiciliar para essas mulheres. Paraná (70) e Sergipe (6) não beneficiaram nenhuma em suas unidades prisionais.
Já as mulheres que foram presas preventivamente (sem prazo definido) e que não foram condenadas representam 30% das que continuaram atrás das grades mesmo tendo esse direito. Isso representa 1.904 das 6.341 presas que têm os requisitos para a prisão domiciliar em 13 unidades federativas que responderam as solicitações do instituto. No período mencionado, 13.142 mulheres estavam em prisão preventiva.
Nessa questão, o instituto recebeu respostas de Amapá, Amazonas, Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe. Proporcionalmente ao número de mulheres que têm direito à prisão domiciliar, os estados que mais mantiveram presas foram Sergipe (69,7%), Pernambuco (53,6%), Minas Gerais (35%), São Paulo (28,9%) e Amapá (28,4%).
A Lei 13.769/2018 estabelece condições para que mulheres que são mães, gestantes ou responsáveis por pessoas com deficiência e que sejam sentenciadas ou presas preventivamente possam ter o regime de prisão convertido do fechado para o domiciliar. São elas: não ter cometido crime com violência ou grave ameaça à pessoa; não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente; ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior; ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento; não ter integrado organização criminosa.
Para Sofia Fromer Manzalli, pesquisadora do Programa Justiça Sem Muros do ITTC, os resultados demonstram uma dupla penalização às mulheres. “Temos outras pesquisas que falam sobre isso de como os juízes valoram esses processos e o que eles enxergam como maternidade é muito diverso, parte da perspectiva deles, de juízes e juízas brancos, promotores e promotoras brancos, e que muitas presas, por serem mães, algo que deveria protegê-las, é usado contra elas, principalmente em crimes de tráfico de drogas”, explica. “Então, é usado no sentido de ‘ah, essa mulher não tem condições de estar com o filho’, ‘é melhor que ela não esteja porque ela estava traficando’ ou que ela é usuária de drogas e a culpa é dela e argumentos que, na verdade, não têm nada de jurídicos. Mas essa situação excepcionalíssima, que é prevista no HC coletivo do STF e depois virou a lei, que levantam muitas vezes não tem uma previsão exata do que é e os juízes usam ao que lhes convêm, que são juízos morais referentes a essas mulheres numa sociedade patriarcal”.
Um exemplo desse tipo de argumentação ocorreu no caso de Rosângela Melo, 41, mãe de cinco filhos que furtou R$ 21,69 em mercadorias de um mercado em outubro deste ano, como revelou a Ponte. Na época, até ser solta pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), na primeira e na segunda instâncias os magistrados justificaram que a mulher teria “caráter nocivo” por ter furtado outras vezes e por isso deveria permanecer presa. “Ainda a respeito, não se demonstrou a imprescindibilidade da soltura para cuidar das crianças, tarefa igualmente possível aos avós ou outros familiares (cuja inexistência não se cogitou, indicando-se, ao contrário, estar a prole sob os cuidados de sua genitora fls. 39), cabendo salientar haver a própria ré provocado seu afastamento dos menores ao se envolver, em tese, com a prática de novo ilícito”, escreveu o desembargador Julio Caio Farto Salles em sua decisão.
A lei de 2018 entrou em vigor no mesmo ano do caso de Jéssica Monteiro, 27, que estava grávida de nove meses, foi presa por tráfico de drogas. A prisão dela aconteceu em fevereiro daquele ano e, enquanto aguardava a audiência de custódia, entrou em trabalho de parto e teve que ir para o hospital. Depois de dar à luz o filho, Jéssica retornou à prisão por decisão da Justiça. O caso gerou comoção nacional. Dois dias depois, nova decisão concedeu à ela a prisão domiciliar. Na mesma semana, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu favoravelmente ao habeas corpus coletivo para fazer valer o que o artigo 318 do Código de Processo Penal já previa – que concede a conversão para o regime domiciliar a mulheres grávidas e mães de crianças até 12 anos que estejam em situação de prisão preventiva. Na época, mais de mil mães assistidas pela Defensoria Pública foram beneficiadas pela determinação.
O levantamento do ITTC também indicou que 17,6% de 74 unidades femininas informaram não ter dados sobre maternidade nos prontuários das mulheres privadas de liberdade.
A pesquisadora também aponta outros dois problemas para as mulheres em situação de prisão: a falta de assistência jurídica e o risco de perder a guarda dos filhos. “A Justiça é muito morosa, porque a Defensoria Pública não consegue dar conta para a quantidade de pessoas que são presas, não é possível ter esse atendimento jurídico para ela, e também, muitas vezes, a mulher fica presa um tempo sem uma atenção específica e fica sem saber o que está acontecendo com seu processo, às vezes tem problema de demora de exame criminológico”, exemplifica. “Quanto menos tempo ela ficar longe dos filhos, mais ela consegue manejar a situação no sentido de que essa mulher vai conseguir se manter perto e cuidar deles. Se ela não está perto e cuidando, significa que outra pessoa vai ter que cuidar, muitas vezes são as avós, mas pode ser que não tenha ninguém da família e essa mãe pode perder a guarda da criança enquanto esse processo se perdurar e romper os vínculos com ela”.
O que dizem os tribunais
A Ponte questionou as assessorias dos tribunais dos estados mencionados sobre o cumprimento da Lei 13.769/2018 e aguarda uma resposta.
O TJ de São Paulo informou que “com relação à avaliação do percentual, o TJSP não emite nota sobre questão judicializada e destaca que aos magistrados são garantidas a autonomia e a independência para decidir os processos, tomando como base os documentos juntados aos autos. Havendo discordância das partes, é assegurada a possibilidade de recurso em segunda instância”. E disse que, “de acordo com dados atualizados da Secretaria de Administração Penitenciária, há atualmente 77 gestantes e 29 lactantes no sistema carcerário”.
O TJPI disse que “não emite nota sobre matéria judicializada, nem juízo de valor sobre decisões judiciais proferidas por seus magistrados e magistradas”. Sobre a lei, declarou que “a verificação da presença de tais requisitos legais no caso concreto é exclusiva da autoridade judicial competente, sendo-lhe garantida a autonomia e a independência para decidir os processos, de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas existentes nos autos”. E que a mulher privada de liberdade que não concordar com a decisão judicial pode recorrer a tribunais superiores.
O Coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do TJMG, Evaldo Gavazza, declarou que “os magistrados mineiros cumprem fielmente as decisões vinculantes dos tribunais superiores sobre o tema de mulheres privadas de liberdade, com especial enfoque nas Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok). O exame do direito subjetivo é realizado caso a caso com prioridade absoluta de atendimento dos interesses prioritários das crianças e adolescentes”.
A Assessoria de Comunicação do TJPE informou “que os requerimentos de progressão de regime, para cumprimento da Lei do Marco Legal da Primeira Infância, são realizados pela defesa das mulheres presas por meio da Defensoria Pública ou advogados particulares. Só então serão analisados pelo Poder Judiciário, caso a caso, levando-se em consideração fatores individuais para o deferimento ou não do pedido”. “Caso sejam identificados casos em que as mulheres já cumpriram os requisitos da prisão domiciliar sem que os processos tenham sido analisados ou tenham o requerimento negado, é necessário que se informe o Poder Judiciário para que eventual irregularidade seja sanada”.
O TJAM e o TJPR solicitaram os números dos processos ou nomes das mulheres privadas de liberdade para emitir um posicionamento. À Ponte, o ITTC reiterou que os dados foram levantados de forma quantitativa nas secretarias de Administração Penitenciária o número de mulheres que se encaixavam nos requisitos e não em decisões judiciais.
O tribunal paranaense ainda apontou que “a decisão do juiz é passível de contestação e revisão em instâncias superiores, a depender sempre das ações da defesa ou do Ministério Público” e que, por isso, “a negativa do juiz quanto a concessão, por si só, não configura descumprimento da lei. Importante, também, ressaltar que a negativa do juiz da concessão da domiciliar não configura, em nenhuma hipótese, descumprimento”. “Não há como dizer ainda, de forma genérica, que tais regras não estão sendo cumpridas. Inclusive, o TJPR possui medidas em andamento para o aprimoramento das constatações, monitoração e levantamentos, que dependem de ajustes sistêmicos e devem estar disponíveis nos próximos meses para consulta, pesquisa e aprimoramento das políticas públicas. Contudo, destaca-se que não é possível utilizar nenhuma dessas ferramentas para interferir em casos concretos, onde somente o juiz do processo e as próprias partes podem atuar, de acordo com as regras do ordenamento jurídico”, declarou.
Reportagem atualizada às 19h37, de 16/12/2021, após recebimento de nota do TJPR.