No primeiro mês do segundo ano da gestão Tarcísio de Freitas, policiais mataram 59 pessoas (20 delas na Baixada), maior número em janeiro desde 2020. A cada 5 assassinatos praticados no estado, 1 foi cometido pela polícia
Alvo de duas operações da Polícia Militar para vingar a morte de policiais — a primeira entre 28 de julho e 9 de setembro do ano passado, e a segunda iniciada em 26 de janeiro deste ano —, a região da Baixada Santista, no litoral do estado de São Paulo, viu a violência policial explodir, inclusive nos intervalos entre uma operação e outra.
Em janeiro deste ano, as polícias mataram 20 pessoas na Baixada, o maior maior número já registrado para este mês em toda a série histórica disponibilizada desde 2013 no site da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP).
A explosão de mortes na região litorânea puxou o aumento nos números da letalidade policial no estado. No primeiro mês do segundo ano de gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicano) e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, o total de mortos pelas Polícias Civil e Militar chegou a 59, o maior número desde janeiro de 2020 — que teve 86 mortes. E foram os agentes em serviço os que mais mataram: 47 mortes ocorreram em horário de trabalho.
A primeira Operação Escudo na Baixada Santista (região composta pelas cidades de Santos, Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe, Praia Grande e São Vicente) foi deflagrada após a morte do soldado Patrick Bastos Reis, 30 anos, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM, em 27 de julho, e provocou 28 mortes ao longo de 40 dias. A segundo operação na região foi deslanchada após a morte do Marcelo Augusto da Silva, 38 anos, em 26 de janeiro, e foi inicialmente chamada de Escudo pela Polícia Militar, mas depois o secretário Derrite voltou atrás e disse que as mortes pela PM eram parte da Operação Verão, que acontece rotineiramente todos os anos no litoral.
Instituídas por Tarcísio e Derrite em reação às mortes de policiais, as Operações Escudo são consideradas ações organizada de vingança, criticadas por moradores de bairros pobres e por ativistas de direitos humanos pelas práticas de execuções, torturas e ameaças, que já foram denunciadas duas vezes na Organização das Nações Unidas (ONU) e também na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Para a socióloga Jacqueline Sinhoretto, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenadora do Grupo de estudos sobre violência e administração de conflitos (GEVAC – UFSCar), o aumento do número de mortes pela polícia em São Paulo é consequência de ao menos dois fatores: o abandono de políticas de redução da letalidade e a postura elogiosa frente à violência policial adotada pelo governador e pelo secretário da Segurança Pública.
“[A operação de agora] é diferente das Operações Verão que já ocorreram no passado e bastante diferente das Operações Verão que aconteceram sob a vigência do programa Olho Vivo, que é o programa da introdução das câmeras nos uniformes”, afirma a socióloga à Ponte.
Instituído durante o governo de João Dória em 2020, o programa Olho Vivo teve como objetivo evitar abusos de autoridade por parte dos policiais com a implementação das câmeras corporais nas fardas da Polícia Militar.
Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em conjunto com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, na sigla em inglês) mostrou que o uso do equipamento salvou 68 adolescentes de serem mortos pela PM. Outra pesquisa, conduzida pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), apontou que unidades que receberam o equipamento tiveram redução de 80% na letalidade policial um ano após a adoção.
No primeiro ano de Tarcísio, o programa sofreu um desmonte. O governo deixou de investir R$ 56,8 milhões no projeto e não adquiriu nenhum novo equipamento. Em entrevista à TV Globo, em dezembro de 2023, o bolsonarista chegou a dizer que os equipamentos não tinham efetividade, negando dados divulgados pela própria SSP-SP.
Ao mesmo tempo em que não investiu no programa, Tarcísio fez afagos à Polícia Militar, mesmo durante a explosão de mortes na primeira Operação Escudo da Baixada. Quando 14 pessoas já tinham sido mortas, Tarcísio defendeu os policiais e afirmou não existir combate ao crime “sem efeito colateral”. Neste ano, com a nova operação na Baixada Santista, que até esta terça-feira (27/2) já vitimou 33 pessoas, o governador e o secretário Derrite têm repetido a postura de defesa da tropa.
Em entrevista à Jovem Pan, na segunda-feira (26/2), o chefe da SSP-SP disse que a operação não vai parar. A fala coincidiu com a entrega, ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), de um relatório de violações produzido por organizações de direitos humanos após uma visita a comunidades de Santos e São Vicente. As denúncias incluem a morte de dois adolescentes e abordagens truculentas a crianças.
“Enquanto forem mantidas essas operações que objetivam o confronto e não ações de cooperação com outras políciais para fazer investigações mais inteligentes para o desmantelamento e desfinanciamento das quadrilhas, nós temos uma expectativa, infelizmente, de que mais vidas serão sacrificadas, inclusive as dos próprios policiais”, diz Jacqueline.
O apoio à violência policial por parte dos gestores públicos leva a um quadro grave, explica a socióloga. Jacqueline diz que a polícia acaba se tornando mais letal.
“Em São Paulo, Rio, Bahia, Pará, esses estados que têm alta letalidade, em todos tem discursos de elogios à violência policial, que ora estão na boca do secretário, ora do governador. Contudo, mesmo nos momentos em que não estão, você tem lideranças policiais e políticas que falam diretamente aos policiais e que constantemente fazem esse elogio. Nós temos um perfil em que a polícia é mais violenta do que o conjunto da sociedade. O conjunto da sociedade está cometendo menos crimes letais, ao passo que os policiais não acompanham esse mesmo movimento”, analisa a socióloga.
Na linha do que aponta Jacqueline, o estado vive um momento de queda nos homicídios comuns, ao mesmo tempo em que aumentam as mortes cometidas por quem veste farda. No mesmo período, houve redução no número de homicídios em comparação com o ano anterior. Em janeiro de 2023, foram 258 mortes contra 228 no mesmo período deste ano ,uma redução de 11%. O número é o menor para o mês em toda a série histórica.
Com o aumento na letalidade policial e queda nos homicídios, a proporção de mortos pelo Estado em relação ao total de homicídios dolosos no estado chegou a 20,6%, o que significa que as polícias responderam por pelo menos um quinto dos assassinatos em São Paulo cometidos no mês passado.
Um mecanismo usado para mensurar a violência policial é justamente essa relação. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que o ideal é a proporção de até 10% de mortes pelas polícias em proporção ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que qualquer índice maior de 7% já seria considerado abusivo.
Para Jacqueline, a redução dos homicídios tem relação com diversos fatores, como mudanças culturais e uma no mundo do crime. Já em relação à alta na violência policial, seria o produto da falta de manutenção de políticas de redução da letalidade e do incentivo ao uso da força.
“Essa afirmação da violência, do perfil guerreiro, do perfil dedo-nervoso entre os policiais, produz não só o aumento do número de confrontos em serviço, mas também faz com que toda a subjetividade do policial seja bombardeada por esse altíssimo número de informações que vão levá-lo à tendência de explodir aqui e ali na resolução de seus conflitos, o que leva inclusive os policiais para o adoecimento e a auto-violência”, pontua.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a SSP-SP questionando sobre a alta na letalidade em janeiro. Em nota, a pasta disse que as mortes em intervenção policial são consequência da “reação dos criminosos diante da ação da polícia no combate à criminalidade”.
Para reduzir a letalidade, a SSP informou que tem investido “em treinamentos, aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, entre outras ações voltadas ao efetivo”. Não houve especificação sobre os equipamentos.
Veja nota na íntegra:
A SSP esclarece que as mortes em decorrência de intervenção policial são consequência direta da reação dos criminosos diante da ação da polícia no combate à criminalidade. Em muitos casos, os bandidos optam pelo confronto, colocando em risco tanto a população quanto os participantes da ação.
Todos os casos de MDIP são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento do Ministério Público e Poder Judiciário.
A pasta tem concentrado esforços para a redução do indicador, por meio de investimentos em treinamentos, aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, entre outras ações voltadas ao efetivo. Somado a isso, há comissões direcionadas para análise das ocorrências, visando ajustar procedimentos, revisar treinamentos e aprimorar as estruturas investigativas.
Os homicídios dolosos atingiram o menor patamar da série histórica, iniciada em 2001. Foram 215 casos registrados no primeiro mês do ano. O número representa uma queda de 14% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando aconteceram 250 homicídios nas cidades paulistas. A variação desses casos é analisada de forma permanente pela pasta, por meio do Sistema SP Vida, que monitora os crimes contra a vida ocorridos no Estado, com o objetivo de facilitar a implementação de políticas públicas mais eficazes e direcionadas.