Em dois meses, Rota matou 50% das vítimas que fez em 2023 inteiro

Batalhão é o mais letal da PM paulista, seguido de 16º BPM/M, que atua na zona sul da capital, e 2º Baep, que corresponde a cidades da Baixada Santista, de acordo com dados do Ministério Público

Policial da Rota em viela | Foto: Reprodução/Instagram/Rota

Hildebrando Simão Neto, de 24 anos, e Davi Gonçalves da Silva, 20, esperavam pelo café da tarde quando tiveram a casa invadida. José Marques Nunes da Silva, 45, estava voltando para casa após um dia de trabalho como catador de latinhas quando foi abordado. Essas são algumas das vítimas denunciadas pela Ponte que foram mortas neste ano por policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), em São Vicente, no litoral de São Paulo.

O batalhão é o mais letal da Polícia Militar paulista e, em dois meses e seis dias, já matou 19 pessoas, o equivalente à metade das 38 mortes que praticou no ano de 2023 inteiro, segundo microdados do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), obtidos via Lei de Acesso à informação. De 2017 a 6 de março de 2024, foram 433 vítimas. A Rota é o único batalhão que pode atuar em todo o estado.

O pódio é acompanhando pelo 16º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M) com 133 vítimas em segundo lugar, que compreende seis bairros da zona sul da capital: Vila Andrade, Portal do Morumbi, Paraisópolis, Morumbi, Campo Limpo e João XXIII. A medalha de bronze é do 2º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), com 114 mortes e que tem sede em Santos, mas atua também em outros 24 municípios do litoral, de acordo com a configuração mais atualizada de unidades da corporação que data de 2022, quando foi criado o último batalhão da Ações Especiais, o 15º Baep, em Guarulhos, na Grande São Paulo, pelo governador Rodrigo Garcia.

Os Baeps são batalhões “padrão Rota”, criados pela primeira vez na gestão do então governador, hoje vice-presidente, Geraldo Alckmin, em 2014, para atuar em operações especiais, com a alegação de fazer “controle de distúrbios civis e de antiterrorismo”. A partir da gestão João Doria, em 2019, a criação desses batalhões explodiu, passando de cinco para 14. Quatro Baeps estão no top 10 do ranking dos mais letais da corporação: além do 2º, estão o 5º, que tem sede em Barueri e abarca 14 cidades da região metropolitana, o 4º, que está na capital e tem prevalência na zona leste, e o 1º, que está sediado em Campinas e abrange mais 38 cidades do interior.

Se a maioria das vítimas da Rota se concentravam na capital até o primeiro semestre de 2023, é a partir da Operação Escudo, que ocorreu entre julho e setembro de 2023, e nas três fases da Operação Verão, iniciada em janeiro e que segue em vigência, que o batalhão matou mais gente, sobretudo na Baixada Santista. Das 19 vítimas até 6 de março, 17 foram nas cidades de Santos, São Vicente e Guarujá.

Em 27 de julho do ano passado no Guarujá, o soldado Patrick Reis, da Rota, foi assassinado durante patrulhamento. Como resposta, o governo estadual deflagrou a Operação Escudo, que durou 40 dias com um total de 28 mortes praticadas pela polícia. Até o momento, dois PMs do batalhão viraram réus pela morte de Rogerio de Andrade Jesus, de 50 anos, no Guarujá, ocorrida em 30 de julho, no segundo dia da Operação Escudo.

Já neste ano, três PMs foram mortos no litoral e a violência aumentou quando o soldado Samuel Cosmo, também da Rota, foi assassinado em 3 fevereiro de 2024, em Santos, quando estava em serviço. Até a publicação desta reportagem, foram contabilizadas ao menos 49 pessoas mortas pela polícia.

Instituídas pelo governador Tarcísio de Freitas e pelo secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite em reação às mortes de policiais, as Operações Escudo são consideradas ações organizada de vingança, criticadas por moradores de bairros pobres e por ativistas de direitos humanos pelas práticas de execuções, torturas e ameaças, que já foram denunciadas duas vezes na Organização das Nações Unidas (ONU) e também na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Todos os 10 batalhões que lideram o ranking de letalidade estão cobertos pelo programa de câmeras nas fardas, que passou a ser implementado de fato a partir de 2020, ano que houve recorde de violência policial e outras medidas foram adotadas pelo governo, como a criação de uma Comissão de Mitigação e Risco dentro da PM para avaliar ocorrências que terminavam em mortes. Os primeiros batalhões que passaram a receber os equipamentos cuja gravação é ininterrupta foram, por exemplo, a Rota, o 2º Baep, o 16º BPM/M, o 28º BPM/M, o 38º BPM/M, 48º BPM/I, o 1º Baep, entre outros.

“A gente tem dois fenômenos: primeiro é esse discurso de um enfraquecimento das câmeras e um incentivo dos gestores, seja do governador, seja do secretário, seja do comandante-geral da Polícia Militar, para o confronto por parte do policial, minimizando denúncias de abusos e em alguns casos até falas que vão diretamente contra a efetividade das câmeras corporais, que é a principal estratégia de controle dos da força que a Polícia do Estado de São Paulo desenvolveu”, avalia Rafael Rocha, que é coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz. “À medida que os instrumentos são enfraquecidos e vêm as falas da gestão atacando esses instrumentos, incentivando uma maior letalidade, a gente vê esse efeito generalizado [de mortes].”

Como a Ponte mostrou, o governo estadual deixou de investir R$ 57 milhões no projeto e não destinou verba específica para as câmeras na Lei Orçamentária Anual para 2024. Entre idas e vindas de declarações contra o programa, tanto Tarcísio quanto Derrite já sinalizaram que não vão adquirir mais equipamentos além das 10.125 que estão em funcionamento desde 2022.

Lista de batalhões que fazem parte do programa de câmeras nas fardas da PM de São Paulo até agosto de 2022 | Imagem: reprodução/PMESP

Nas operações Escudo e Verão, o mau uso dos equipamentos ou a não alocação para os batalhões que já estavam cobertos e foram para a Baixada Santista também acenderam um alerta para ativistas, moradores, pesquisadores e entidades de direitos humanos e da sociedade civil. Só na Rota, de 2022 para 2023, o aumento foi de 216% na letalidade, sem contar ações em que atuou em conjunto com outros batalhões.

Na semana passada, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) menosprezou as denúncias e defendeu as operações. “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, declarou.

“Uma operação que foi totalmente mal planejada, mal feita”, critica Rocha. “Uma operação vingança com a única intencionalidade de produzir mortes naquele território e que retroalimenta toda essa discussão, espalha para o resto da Polícia Militar do estado de São Paulo essa noção de que o que está sendo bem avaliado pelos gestores é a matança.”

Se as operações na Baixada elevaram a letalidade na Rota e no 2º BAEP, ainda falta esclarecer o motivo de batalhões como o 16º BPM/M, que atua na capital, estarem em destaque. De acordo com reportagem do jornal Folha de S.Paulo, a região do Morumbi concentrou o maior número de mortes cometidas pela PM na capital em 2023. Outra matéria da Folha também indicou que, em 11 anos, a letalidade policial cresceu nas zonas centro e oeste e caiu na zona leste.

O pesquisador do Sou da Paz aponta que é preciso olhar os dados com cautela e que só uma investigação mais aprofundada nos boletins de ocorrência pode responder essa questão. “Na cidade de São Paulo, o que as nossas pesquisas anteriores mostram é que [a letalidade policial] é muito associada ao roubo, ao roubo de veículos e outros tipos de roubos também, então faz sentido, se a gente for entender essa mudança para o centro, que é onde se concentra a maioria dos roubos de celulares”, explica.

“É diferente, por exemplo, da Operação Escudo, que tem uma saturação que a gente tem visto, que tem sido demonstrado pela Ouvidoria das Polícias e pelo Ministério Público: uma busca ativa por pessoas com passagem pelo sistema de justiça”, afirma. “Agora, essa questão da zona sul, a gente tem que entender melhor qual é essa dinâmica.”

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública, da Polícia Militar e do Ministério Público de São Paulo sobre os dados levantados, mas até a publicação não houve resposta.

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