Análise da Human Rights Watch encontrou sinais de negligência em autópsias e evidências de que PMs levaram ao hospital jovens que já estavam mortos
Felipe Guilherme Antunes tinha 21 anos quando seu corpo de jovem negro foi estraçalhado por disparos de policiais militares do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), em 8 de fevereiro do ano passado, durante uma operação policial nos morros do Fallet, Fogueteiro e Prazeres, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Dos vários tiros que o atingiram, dois o acertaram na cabeça à queima-roupa. O crânio do jovem foi fraturado e os vasos sanguíneos do seu pescoço, destruídos. Coração, pulmão, diafragma, fígado, estômago e intestino de Felipe foram perfurados com balas. Um vídeo anexado ao inquérito policial mostra o rapaz com o tórax aberto e os intestinos para fora.
Mesmo assim, a Polícia Militar do Rio afirma que Felipe estava vivo quando os PMs o levaram para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no centro, assim como as outras 12 vítimas da mesma operação realizada pelo Bope, todas negras como Felipe.
A descrição dos ferimentos de Felipe é um dos itens que chama a atenção de um relatório sobre o massacre de Fallet, Fogueteiros e Prazeres elaborado pela ONG internacional de direitos humanos Human Rights Watch, divulgado nesta segunda-feira (3/2), que apresenta uma análise pericial de autópsias de nove dos 13 mortos (leia na íntegra aqui e aqui, em inglês e em espanhol). O documento aponta indícios de que os policiais levaram ao hospital vítimas que já estavam mortas, para atrapalhar as investigações, e que houve negligência nas autópsias realizadas nos cadáveres.
Os PMs alegaram que mataram os 13 jovens em legítima defesa, mas moradores afirmaram que houve execução e tortura, além de ameaças e invasão de residências na comunidade.
De acordo com Maria Laura Canineu, diretora da HRW no Brasil, a perícia realizada pela Polícia Civil tem falhas “alarmantes”. “Em corpos com ferimentos tão graves e múltiplos, você não consegue realizar uma autópsia em 30, 40 minutos. Um dos laudos foi feito em 10 minutos pelo perito, sem raio-x para identificar outros projéteis”, destaca. “Isso é uma falha flagrante do que é previsto na legislação internacional e entendo que em qualquer norma brasileira que exista sobre isso, porque uma autópsia tem que ser feita de uma forma extremamente cuidadosa”.
A ONG encaminhou as autópsias para serem analisadas por quatro peritos, sendo três do Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura (IRCT, na sigla em inglês, com sedes na Bélgica e na Dinamarca), e um da Fundação de Antropologia Forense da Guatemala (FAFG, na sigla em espanhol). Eles constataram que as nove vítimas foram atingidas por tiros nos pulmões e oito tiveram ferimentos no coração, entre outras lesões.
Como os PMs afirmaram que usaram fuzis na operação, o entendimento dos peritos estrangeiros é de que os nove homens, dentre eles um adolescente, teriam morrido instantaneamente por conta da intensidade do aparato, e que não havia possibilidade de terem sido levados ainda com vida ao hospital, como alegaram os policiais.
Em um jovem de 18 anos, “o laudo [da Polícia Civil] primeiro diz não haver fraturas no crânio nem sangramento interno nos músculos temporais; mas depois afirma que a causa da morte foi tiros que atingiram o crânio, a pelve – não descrita na autópsia – e as costas”, segundo documento da HRW.
Logo após as mortes, o governador Wilson Witzel declarou que a ação foi “legítima”. “Nossa PM agiu para defender o cidadão de bem. Não vamos admitir mais qualquer bandido usando arma de fogo de grosso calibre, fuzis, pistolas, granadas, atentando contra a nossa sociedade. Vamos continuar agindo com rigor”, justificou.
Além disso, preservação de provas como as roupas das vítimas e realização de exames residuográficos, para identificar se havia pólvora nas mãos e vestimentas dos nove, não foram realizados. “Os peritos internacionais falam que esse tipo de prova é essencial para saber se houve suposto confronto”, aponta Maria Laura Canineu.
Na época da reconstituição do crime, em abril de 2019, o ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Pedro Strozenberg, disse à Ponte que um laudo da Polícia Civil havia indicado pelo menos 120 tiros, dos quais 94 teriam sido disparados pelos boinas pretas, como são conhecidos os agentes do Bope. “Foi a maior chacina dos últimos 10 anos”, lamentou. O órgão já apontava preocupação sobre as investigações. “Vimos provas importantes para esclarecer o caso, como pertences das vítimas, os laudos pouco detalhados e a própria cena do crime desfeita, serem desperdiçadas”, declarou na época.
A mãe de uma das vítimas chegou a fotografar policiais em cima da caçamba de uma caminhonete sentados no que seriam os corpos das vítimas embrulhados. Moradores denunciaram ameaças e invasão de casas na comunidade. “Esculacharam morador, tacaram bomba em cima da gente, chamou as meninas de piranha, xingando, falando que vão matar a gente. Não deixaram nenhum familiar entrar dentro das casas, tacaram bomba, tiro de borracha, esculacharam muito. Eles disseram que entraram para matar bandido e morador”, relatou à reportagem outra moradora, na ocasião.
O objetivo da análise, segundo a diretora da Human Rights Watch, foi identificar se havia possibilidade de que os policiais militares prestaram “falsos socorros”, tema que a entidade pesquisa há pelo menos dez anos. “Esse é método mais comum de inviabilizar investigações, em que a polícia leva o suspeito para o hospital, mexe na cena do crime, dizendo que é uma tentativa de salvar, mas as pessoas já chegam mortas ao hospital. Esses ‘falsos socorros’ são muito comuns no Rio e em São Paulo”, alerta.
Ela ainda aponta inconsistências no inquérito policial. “Um resumo no caso feito pela própria polícia diz que ‘os cadáveres foram socorridos para o Hospital Souza Aguiar’. A gente não sabe se foi um ato falho, mas basicamente estão assinando embaixo que as pessoas estavam mortas”, afirma.
Em novembro do ano passado, a Polícia Civil encerrou as investigações chancelando a versão dos policiais de que a ação foi em legítima defesa e que não houve crime. Com isso, a HRW pretende encaminhar as análises ao Ministério Público Estadual do Rio, já que os promotores ainda não se manifestaram se farão denúncia ou pedirão arquivamento do caso.
A entidade solicita que o governo do Estado estabeleça protocolos de realização de perícia necroscópica e de serviços de emergência, citando como exemplo resolução criada em São Paulo, em 2013, que estabelece que PMs não socorram vítimas de intervenção policial. “Quando há um acidente de carro, não é a polícia que leva para o hospital a menos que seja em circunstâncias muito excepcionais, mas quando é casos de supostos confrontos, a gente vê que a própria polícia faz esse trabalho de resgate”, destaca Maria Laura.
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Para ela, o contingenciamento de recursos para a área tem sido usado como justificativa para a baixa qualidade das investigações. Em novembro, o governador Wilson Witzel anunciou em projeto orçamentário para 2020 que cortará 86% das verbas para a Polícia Técnica, braço da Polícia Civil. “Essa perícia mostra que os procedimentos mais básicos para investigação desses episódios não são seguidos, o que leva a crer que há pouca vontade política de investigar de forma adequada esse tipo de caso”, critica a diretora da HRW. “Isso não é uma situação de agora, mas é alarmante num estado em que a polícia matou mais de 1600 pessoas no ano passado, ou seja, um número que é recorde, que é histórico, e essas mortes têm que ser bem investigadas”.
PM: operação visava a “preservação de vidas”
Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa da PMERJ disse em nota que a operação “foi planejada para intervir numa guerra entre facções criminosas rivais, que disputam o controle de território naquela região, tendo como principal preocupação a preservação de vidas”.
A pasta alega que houve confronto “iniciado por criminosos fortemente armados”. E que, ao final da ação, “11 criminosos foram presos e outros 15 foram encontrados feridos e socorridos para o Hospital Municipal Souza Aguiar. Entre os feridos, 13 vieram a óbito e dois ficaram internados. Durante a operação os policiais apreenderam quatro fuzis, 14 pistolas, seis granadas, três rádios comunicadores, além de carregadores e drogas”.
A secretaria também aponta que instaurou Inquérito Policial Militar “que foi remetido ao Ministério Público com a conclusão de ausência de crime ou transgressão por parte dos policiais militares envolvidos no episódio”. Questionada sobre protocolos de resgate e sobre o relatório da HRW, não respondeu.
Já o Ministério Público do Rio disse que o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública “instaurou procedimento investigatório criminal, para, de modo independente, colher provas sobre as mortes ocorridas” e que “vem acompanhando o trabalho desenvolvido pela DH-Capital”. A assessoria do órgão também declarou que “ainda há diligências a serem realizadas, a fim de melhor esclarecer os fatos” e que fez várias reuniões com a Defensoria Pública, “dando máxima atenção aos seus questionamentos”.
A reportagem também procurou a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, que até agora não respondeu.
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