Assessor de órgão que fiscaliza polícias trabalha para empresa que faz assessoria das polícias em SP

    Embora dentro da lei, atuação de jornalista é uma “aproximação perigosa” que pode configurar “conflito de interesses”, segundo especialistas

    Imagem: Reprodução

    Desde que foi nomeado, em fevereiro deste ano, o ouvidor das Polícias Elizeu Soares Lopes tem delegado a intermediação de relacionamento com a imprensa ao jornalista Evandro Guimaro Spinelli. Porém Spinelli é contratado pela InPress, assessoria de imprensa que cuida da comunicação de toda a Secretaria de Segurança Pública, incluindo a Polícia Civil e a Polícia Militar. Como a função da Ouvidoria é fiscalizar e receber denúncias relacionadas às corporações, especialistas entrevistados pela Ponte acreditam que a situação pode indicar um conflito de interesses.

    A reportagem consultou o Portal da Transparência do governo do estado de São Paulo e o Diário Oficial e não encontrou o nome de Evandro entre os 15 cargos nomeados para atuarem no órgão. De acordo com a Lei 826/1997, que trata da criação e regulamentação da Ouvidoria, o ouvidor escolhe cinco assessores e 10 assistentes e o governador os nomeia. Essa nomeação é publicada no Diário Oficial.

    O decreto 41.957/1997 especifica a atuação desses cargos. Os assessores integram o grupo técnico, responsável por acompanhar casos prioritários, subsidiar ações do ouvidor, elaborar pesquisas de interesse em segurança pública e direitos humanos, além dos relatórios do órgão. Já os assistentes (que aparecem como assessores II) executam tarefas administrativas, como recebimento e registro de queixas, denúncias, sugestões da população e organização de arquivo com os procedimentos adotados.

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    A reportagem fez um pedido de Lei de Acesso à Informação solicitando a relação de servidores que poderiam vir a ser terceirizados na Ouvidoria. A SSP (Secretaria de Segurança Pública) respondeu que os nomes dos assessores se encontram no Diário Oficial e que “não existem concursados ou terceirizados, somente cargos em comissão”.

    Por telefone, o ouvidor não quis responder sobre o porquê do jornalista atuar como assessor sem nomeação. Apenas disse, em tom irritado, “pergunte ao Evandro”. Já Spinelli, também no mesmo tom, não quis explicar e disse que a resposta viria via Lei de Acesso à Informação, mesmo a reportagem tendo informado que havia feito a solicitação.

    Questionada pela Ponte, a In Press, terceirizada que presta serviço de assessoria de imprensa para a Secretaria de Segurança Pública, confirmou que Evandro Spinelli “atualmente consta do quadro de colaboradores, prestando serviços junto à Ouvidoria das Polícias”.

    Especialistas questionam vínculo

    A In Press Assessoria de Imprensa e Comunicação Estratégica Ltda. presta serviço ao governo do estado desde maio de 2018, quando venceu um processo de licitação (leia todas as movimentações aqui). O contrato é firmado por meio da Subsecretaria de Comunicação cuja finalidade é prestar assessoria de imprensa e comunicação “para o atendimento específico das ações, projetos e programas do Estado de São Paulo relacionados à tutela da ordem jurídica”.

    Na minuta do edital, são citadas na parte dos anexos as secretarias da Segurança Pública e da Administração Penitenciária nesse rol de atendimento. A vigência do contrato era até agosto de 2019, que foi prorrogada em 2020 e recentemente para até fevereiro de 2022, conforme a última assinatura de aditamento feita em outubro deste ano. O valor total do certame é de R$ 4.136.736,00.

    A pedido da reportagem, o professor associado da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e doutor em direito administrativo Marcos Augusto Perez analisou o contrato da In Press com o governo do estado. Na avaliação dele, o documento tem um objeto “genérico”, o que possibilita que outros órgãos e pastas possam ser inseridos e que, por isso, não seria irregular a Ouvidoria entrar nesse escopo tendo em vista que o órgão, apesar de independente, integra a Secretaria de Segurança Pública. “A Ouvidoria não é citada [no contrato], poderia ter um contrato específico para ela, mas, em tese, ela pode ficar debaixo desse guarda-chuva”, explica.

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    Por outro lado, o professor aponta que “uma questão para ser considerada é a possibilidade de conflito de interesse”, já que Spinelli, que atua na Ouvidoria, é colaborador da In Press, que faz assessoria para a SSP. A secretaria é responsável pelas polícias do Estado e a Ouvidoria recebe justamente denúncias relacionadas a esses atores. “Esse tipo de aproximação é perigosa porque pode causar uma confusão de papéis e pode mostrar que a Ouvidoria esteja capturada pelos agentes que ela por lei deveria fiscalizar”, analisa Perez.

    O jornalista e professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP Eugenio Bucci também explica em que situação poderia existir essa possibilidade de conflito de interesse, a pedido da reportagem. “Caso a Ouvidoria disponha de um servidor, encarregado de receber denúncias ou fazer a intermediação dessas denúncias com autoridades ou com a imprensa, que tenha outro vínculo profissional, podemos ter uma situação em que haja, ao menos em tese, um possível conflito de interesses”, aponta.

    “A função da Ouvidoria é recolher reclamações que podem indicar irregularidades na atuação policial. Se algum servidor que trabalha com essas reclamações tem outro interesse, como, por exemplo, a promoção da imagem da [secretaria de] Segurança Pública, pode, em tese, haver algum tipo de conflito entre dar curso às reclamações e preservar uma imagem positiva da corporação”, pondera Bucci.

    O relatório da Ouvidoria referente ao primeiro semestre do 2020 (leia aqui a íntegra), divulgado no site do órgão no dia 3/11, não tem o nome de Evandro Spinelli no expediente do documento.

    O sociólogo e ex-ouvidor Benedito Domingos Mariano, que antecedeu a gestão de Elizeu Lopes, vê com “estranheza” a atuação de um assessor terceirizado que não esteja nos moldes da estrutura da Ouvidoria. Ele explica que, para além dos 15 cargos públicos, há ainda um assessor da Polícia Militar e um outro da Polícia Civil também indicados pelo ouvidor. “Na minha gestão, os assessores todos foram divulgados no Diário Oficial”, afirma.

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    Mariano foi o primeiro ouvidor, tendo atuado de 1995 a 2000 e de fevereiro de 2018 a fevereiro de 2020, não tendo sido reconduzido a um segundo mandato de dois anos como costuma ser de praxe há 25 anos. Para ele, “se tem um assessor que é do gabinete da SSP, [o órgão] perde autonomia”. De acordo com o Portal da Transparência do governo do estado, Evandro Spinelli não consta com cargo dentro da secretaria de Segurança Pública.

    O advogado e ex-ouvidor Júlio César Fernandes Neves, que atuou na Ouvidoria de 2013 a 2017, afirma que nunca viu no órgão ter assessor terceirizado. “Se agora estão adotando isso, é novidade para mim”, pontua.

    Neves aponta que os únicos “cedidos” da SSP eram quatro policiais que faziam a escolta dele enquanto ouvidor e que, para além dos assessores nomeados, haviam estagiários e os assessores que representam a PM e a Polícia Civil, como indicou Mariano.

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    De acordo com ele, o fato de o ouvidor escolher sua equipe é importante por duas questões: independência e preservação das informações dos denunciantes. “O ouvidor tem que atuar com autonomia e precisa ter gente de confiança para trabalhar, porque se lida com informações sigilosas, com a vida das pessoas que fazem denúncias, inclusive dos policiais [que fazem denúncias]”, frisa.

    A Ponte procurou novamente o ouvidor Elizeu Lopes a respeito do caso, mas não teve resposta.

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