Artigo | Além do reformismo penal das body cameras: pensar as eleições com horizontes abolicionistas

Os autores da Coluna Abolição alertam para o discurso do uso de ferramentas como câmeras na farda de policiais como solução final para o problema da violência de Estado no país

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

No Estado da Bahia, a eleição de Jaques Wagner (PT) em 2006 foi pontuada como um marco importante. Se dizia que, no estado, a ditadura empresarial-militar havia acabado mais tarde, quando, enfim, o carlismo parecia derrotado, justamente pelo candidato do Partido dos Trabalhadores, partido que surge no contexto de reorganização da classe trabalhadora em plena ditadura. Estávamos num contexto político onde as discussões sobre justiça, verdade, memória e reparação constituíam parte das pautas centrais da esquerda.

Dezesseis anos depois, um outro cenário se coloca. ACM Neto (União Brasil), que dispensa apresentações, se coloca como pré-candidato ao governo do Estado. O Partido dos Trabalhadores, no governo por todo esse tempo, tem discutido a sucessão estadual com um grupo político que conta com setores da direita tradicional baiana. 

O vice-governador, ainda em cargo, rompeu com o governo e será candidato ao Senado pela chapa de ACM Neto. Otto Alencar (PSD), antigo aliado de ACM, o avô, é candidato à reeleição para o Senado na chapa do PT. Depois de muitas reviravoltas, Jerônimo Rodrigues (PT), até pouco tempo secretário de Educação, se torna o candidato à sucessão de Rui Costa.

Duas coisas nos chamam atenção. A primeira é a facilidade que João Leão (PP) encontra de transitar entre dois grupos políticos que se afirmam antagônicos. A segunda é o que nos leva à questão principal deste texto: quais os elementos que conectam esses setores na política baiana. Por isso, mais importante que nomes, são os projetos políticos que estão colocados que nos interessa discutir. E, neste sentido, a segurança pública se torna fundamental de ser debatida.

Entendemos, como ponto de partida, que a política de segurança pública dos governos do PT viabilizou que, nesta composição ideologicamente heterogênea, o militarismo e sua agenda política conservadora fosse levada adiante como pauta inegociável de um governo que se apresenta como contrário à gestão federal. Afirmamos isto a partir do histórico de casos que, pelo menos, durante os mandatos de Rui Costa, demonstram uma incapacidade de enfrentar a pauta de segurança pública de uma perspectiva crítica ao militarismo, à guerra às drogas e ao genocídio da população negra.

Como o historiador Henrique Oliveira aponta, a atuação do governador Rui Costa já deu brecha para legitimar a atuação de grupos de extermínio, enfraquecer a demanda por responsabilização dos agentes de polícia nos assassinatos cometidos em operações, minimizar a relevância do cumprimento de direitos das pessoas em situação de cárcere, além de ampliar a presença da lógica militar na educação pública.

Nesse cenário nebuloso, onde a pauta de segurança pública de um governo capitaneado por um partido de centro-esquerda não consegue se diferenciar da lógica militarista que promove o extermínio, e que vigora na Presidência da República, é preciso levantar questões. 

A chacina da Gamboa, noticiada pela Ponte, foi mais um episódio que reforçou o debate sobre o controle público das forças de segurança. No entanto, também reavivou as possibilidades reformistas, e pouco efetivas, de controle, que não alteram o paradigma da violência de Estado. Foi depois deste episódio que a OAB/BA (Ordem dos Advogados do Brasil) sugeriu a instalação de câmeras nos uniformes policiais. Pouco tempo depois, a Secretaria de Segurança Pública do Estado indicou a possibilidade de uma licitação, para compra das câmeras. Mas onde isto nos leva?

No caso da Polícia Militar baiana, estamos falando de uma corporação que contabiliza corpos negros em 100% dos assassinatos cometidos pelas polícias. A prática genocida das forças policiais já está escancarada e o nosso compromisso não é com uma vigilância negociada, senão com o enfrentamento aos fundamentos racistas da segurança pública no Brasil. Por outro lado, o controle social das forças de segurança pública deve ser acompanhado da democratização do controle social do conjunto de instituições do sistema de justiça criminal, que não denunciam, não recorrem ou absolvem policiais que cometem assassinatos no  exercício de suas funções. E as câmeras não nos ajudam em nenhuma dessas, complexas, mas necessárias tarefas.

Em 2016, o The New York Times publicou um experimento realizado pelo professor de direito da University of South Carolina, Seth W. Stoughton, simulando situações de abordagem de policiais com suspeitos, onde o policial utiliza a body cam durante toda a abordagem. O resultado do experimento gravado pela body cam foram imagens pouco esclarecedoras, nelas o profissional aparenta sempre estar em situação de risco, sendo agredido pelo suspeito, mas vídeos feitos de outros ângulos, por outras câmeras, geravam uma outra perspectiva da situação.

O professor Stoughton explica porque a perspectiva é importante: no primeiro vídeo da matéria em questão, a câmera está no corpo do policial e faz com que a “luta” com o suspeito pareça ser muito mais agressiva do que realmente era, isto porque com a câmera no corpo, a produção dos movimentos bruscos faz com que aumente a dimensão do que de fato estava acontecendo. O professor chama isso de “intensidade enganosa”.

Os vídeos produzidos pela body cam propositalmente não mostram se o suspeito toca na arma ou não, gerando dúvida em quem assistiu. O professor explica que fez isso de forma intencional para provar que nem sempre os vídeos responderão as perguntas urgentes. O professor também alerta para o fato de que a câmera sempre irá mostrar e consequentemente beneficiar o ponto de vista do policial.

Segundo o professor Stoughton “quando o vídeo nos permite olhar através dos olhos de alguém, tendemos a adotar uma interpretação que favorece essa pessoa”; isso é o que a psicologia chama de “viés de perspectiva da câmera”.

“As pessoas estão esperando mais das body cameras do que a tecnologia pode dar. Elas esperam que seja uma solução ampla para os problemas da relação entre policiais e comunidade quando, na verdade, são apenas uma ferramenta e, como qualquer ferramenta, têm um valor limitado sobre o que podem fazer.”

Para além do que foi exposto sobre o experimento do professor Stoughton, existe também o fato de que os policiais podem desligar a body camera de forma deliberada, sob a alegação de não estarem trabalhando no momento, como aconteceu no Capão Redondo em 16 de maio de 2021, quando o policial André Luiz Ferreira de Santana jogou um cassetete contra Vitor Gomes Cleace, de 21 anos, que passava de moto. Vitor perdeu o controle ao ser atingido, bateu num poste e veio a óbito. As body cameras dos policiais estavam desligadas no momento do ocorrido.

O uso das câmeras nas fardas da polícia militar gera de início uma sensação de proteção à população, que acredita piamente que com a polícia sendo “vigiada” o abuso de autoridade, e o genocídio da população preta vai cessar, no entanto é necessário cautela, não dá para apostar todas as fichas na tecnologia como solução para problemas estruturais.

Os custos do armazenamento das imagens das body cameras são extremamente altos, e eles são pagos com dinheiro público. Não precisamos de mais investimentos em equipamentos que levam ao aumento da militarização e da criminalização das comunidades já demasiadamente marginalizadas, precisamos cessar o investimento nessas instituições e reinvestir esse dinheiro em programas educacionais, em saúde e políticas de emprego que garantam direitos a quem trabalha. Não se reduz o crime com filmagens e vigilância constante; isto é, não se resolvem os problemas do policiamento aprofundando as dinâmicas de policiamento.

Por outro lado, pautas como a instalação de body cameras em fardas de policias se encaixam bem no período eleitoral, mas não surtem efeito a longo prazo. Por serem uma alternativa relativamente simples que aparenta ter um efeito imediato, soam convincentes. No entanto, policiais aprendem a conviver com as câmeras e a escapar das dinâmicas de transparência que elas prometem trazer, como no caso demonstrado acima. Além disso, se elas supostamente constrangem policiais, a ponto de candidatos se posicionarem contra esta medida para ganhar viabilidade eleitoral dentro das instituições militares, elas reforçam a naturalização de que a morte faz parte do exercício cotidiano das forças militares. A consequência disto é clara: a política genocida encontrada nos Estados pós-coloniais contra populações racializadas aparenta ser mitigada, mas não desarticulada.

Da mesma maneira, precisamos avançar na política institucional com pautas de segurança pública que movimentos de egressos do sistema prisional, de vítimas da violência de Estado e movimentos de familiares-vítimas do sistema de justiça criminal há muito vêm pautando. Isso é fundamental para a politização do debate público, para resgatar o polo gravitacional da política no sentido de conquista e expansão de direitos políticos, sociais, econômicos e culturais, mas também para não permitir uma fluidez confortável de setores parasitários do Estado, que têm encontrado na política de segurança um meio de construção de hegemonia.

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Por fim, esta reflexão é uma convocação a pensar a política a partir da nossa realidade. Se a experiência das câmeras em fardas nos EUA vem sendo utilizada como inspiração pelos reformistas penais, nós devemos lembrar que num estado onde todos os assassinados pela Polícia Militar são negros, não há mudança possível que não perpasse por pensar uma sociedade sem instituições que carregam a legitimidade de matar pessoas negras. Ainda que as câmeras reduzissem mortes, as polícias seguirão matando. E, por isso, questionamos essa proposta, pois, no horizonte, ainda estamos pensando em uma sociedade sem polícias. E, no caso da sucessão eleitoral, seja ao governo do estado da Bahia ou à Presidência da República, este é um horizonte que o Partido dos Trabalhadores e o conjunto da esquerda institucional deveriam pensar.

* Vítor de Souza Costa é nordestino da Bahia, baiano de Salvador. Comunista internacionalista. Doutorando em Relações Internacionais (RI) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em RI pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisa sobre Desenvolvimento Extrativista, sobre Política e Direito e sobre relações de Raça e Classe no capitalismo.

* Renata Santos da Cruz é negra, sergipana, bacharel em Direito pela Estácio – SE, pós graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Introcrim/CEI. Abolicionista penal, pesquisa cárcere e relações raciais.

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