Artigo | Desaparecimentos forçados e a ditatura que nunca terminou nas periferias

    35 anos depois da descoberta da vala de Perus, retratação oficial do Estado brasileiro não impede que práticas de desaparecimentos forçados continuem vitimando populações vulneráveis no país

    Ilustração: Antonio Junião/Ponte Jornalismo

    Na última semana, acompanhamos aqui na Ponte o evento que marcou o pedido oficial do Estado brasileiro pela vala clandestina de Perus. Descoberta em 1990, no cemitério Dom Bosco, na zona noroeste de São Paulo, a vala continha 1.049 ossadas enterradas ilegalmente. A retratação oficial do Estado vem quase 35 anos depois da descoberta das ossadas com uma mensagem e um memorial. Entretanto, falta a identificação de todos os restos mortais e sua devolução às famílias. 

    Desaparecimentos forçados eram uma política dos governos militares e, por vezes, existe a falsa sensação de que ficaram apenas naqueles dias. Para as pessoas vulnerabilizadas, no entanto, o modelo de segurança pública da ditadura nunca acabou. A própria polícia militar como conhecemos é um filhote da ditadura, como diria o Brizola. Ela nasce militarizada e é um dos braços usados pelos milicos para oprimir, massacrar e eliminar. 

    Leia mais: Estado brasileiro pede desculpas por Vala Clandestina de Perus

    A ditadura oficialmente acabou há 40 anos. Seu modelo de policial segue vivo, forte e mortal com o mesmo modus operandi, sem que haja efetivo controle civil de suas atividades. Na prática, os desaparecimentos forçados nunca terminaram nos bairros mais periféricos, pobres e pretos do Brasil. 

    No mesmo ano da descoberta da vala, 11 pessoas, sendo 7 adolescentes, desapareceram em um sítio em Magé, na Baixada Fluminense. Foram levadas por homens que se identificaram como policiais. O Brasil era uma democracia há 5 anos quando a Chacina de Acari ocorreu. 

    No 21º ano da redemocratização, Francilene Gomes teve o irmão como uma das 4 vítimas desaparecidas durante os Crimes de Maio de 2006. Paulinho nunca voltou para casa. Seu corpo nunca foi encontrado. Sua família ainda espera para se despedir — já que a própria Fran nos deixou no ano passado. 

    Leia também: O passado que não passou: ditadura segue presente na segurança pública?

    Em 2014, 29 anos após a redemocratização do Brasil, Rute Fiúza teve seu filho de 16 anos, Davi, levado por policiais e nunca mais voltou para casa. O Fórum Grita Baixada e o Observatório Fluminense da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (OF/UFRRJ) levantaram para o livro Desaparecimento forçado: vidas interrompidas na Baixada Fluminense que existem pelo menos 768 situações com evidências de desaparecimento forçado na região entre 2016 e 2020.

    Dentre as faltas do Estado brasileiro, independentemente de qual é o governo de turno, está a tipificação de desaparecimento forçado como crime. Mesmo com constantes recomendações em instâncias internacionais, há inércia e leniência dos poderes constituídos em instituir a prática como crime, investigar as outras valas e outros desaparecimentos e não deixar que seus perpetradores sejam cobertos pelo manto de uma anistia. 

    Assine a Newsletter da Ponte! É de graça

    Tomo emprestada uma frase do movimento negro para dizer: com desaparecimentos forçados, não existe democracia. Nem com violência policial nas periferias, nem com racismo. Ou seja, não estamos em uma democracia plena enquanto não devolvermos a identidade a corpos desaparecidos, enquanto não tivermos uma política de segurança que não se baseie em uma lógica bélica — afinal, militar é aquele que tem um alvo sempre, um inimigo sempre. 

    Retratações são importantes, mas precisam vir com ações de reparação e justiça para serem completas. Precisam construir arcabouço prático, teórico e legal para que o que  houve não volte a acontecer. Enquanto isso não ocorrer, enquanto os erros do passado não forem reparados, não podemos nos considerar uma democracia de verdade.

    Este artigo foi publicado originalmente na newsletter semanal da Ponte: clique aqui para assinar e receber textos exclusivos, reportagens da semana e mais na sua caixa de e-mail

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    Inscrever-se
    Notifique me de
    0 Comentários
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários

    mais lidas

    0
    Deixe seu comentáriox
    Sobre a sua privacidade

    Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.