Comitê usa como exemplo caso de Davi Fiuza, desaparecido em 2014 após ser abordado por PMs, para sugerir que casos de desaparecimentos que envolvem policias não sejam julgados por tribunais militares
O Comitê da ONU sobre Desaparecimentos Forçados publicou nesta quarta-feira (29/9) um relatório onde faz uma série de recomendações ao Brasil em relação ao tema. Além de sugerir ações que devem ser tomadas pelo Estado, o documento aponta, de forma crítica, a omissão e a falta de vontade do governo em colaborar com a promoção de políticas públicas na questão da transparência nas investigações e de ações que tentem impedir a impunidade em caso de pessoas desaparecidas enquanto estavam em poder do Estado.
O texto da Organização das Nações Unidas dá como exemplo o caso de Davi Fiuza, desaparecido desde 2014 após uma abordagem policial em Salvador. Em 2018, a Polícia Civil da Bahia indiciou dois tenentes, dois sargentos e 13 alunos do curso de formação da PM pelo desaparecimento, morte e ocultação do cadáver do adolescente. Porém, o Ministério Público considerou não ter provas suficientes para denunciar os acusados por homicídio, os enquadrou em sequestro e cárcere privado e o caso foi enviado para a Justiça Militar.
“O Comitê está preocupado com o fato de que casos de desaparecimentos forçados investigados, entre outros, como homicídios dolosos, possam estar sob a jurisdição de tribunais militares. A esse respeito, preocupa-se com a informação de que, em 2018, o Tribunal de Justiça da Bahia decidiu que, justamente com base na Lei nº 13.491 / 2017, o foro militar era competente no caso do suposto desaparecimento forçado de Davi Fiuza no estado da Bahia em 2014. O Comitê reafirma sua posição de que, por princípio, todos os casos de desaparecimento forçado devem ser julgados apenas pelas autoridades civis ordinárias competentes”, diz o texto.
É justamente para que casos como o de Davi não se repitam no sistema de justiça brasileiro que a ONU sugere, entre outras coisas, que casos de desaparecimentos forçados envolvendo militares sejam julgados por um tribunal civil. Segundo o comitê especializado da entidade, agentes de segurança não devem ser investigados e julgados pelos seus pares para que o processo não tenha interferências.
“Relembrando sua declaração sobre desaparecimentos forçados e jurisdição militar, o Comitê recomenda que o Estado Parte tome rapidamente as medidas necessárias para assegurar que a investigação e o julgamento de casos de desaparecimento forçado sejam expressamente excluídos da competência dos tribunais militares”, destaca um trecho do documento.
O relatório ainda ressalva a importância do afastamento de policiais que tenham algum envolvimento em casos de desaparecimentos. “O Comitê recomenda que o Estado Parte estabeleça um mecanismo para assegurar que as forças de segurança, sejam civis ou militares, cujos membros sejam suspeitos de terem cometido desaparecimento forçado, não possam participar de nenhuma etapa da investigação”.
Por menos interferência de tribunais militares
De acordo com o artigo 124 da Constituição Federal, “compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças”.
Porém, em 2017, a lei foi alterada, mudando o encaminhamento de crimes praticados por militares. Se antes os crimes dolosos contra a vida praticados contra civis eram julgados pela Justiça comum, a lei 13.491/2017 abriu um grande número de exceções para que esses casos sejam levados a tribunais militares.
“Nesses casos a chance de ter mais impunidade e cooperativismo é muito grande porque os juízes da Justiça Militar fazem parte das forças de segurança. Para garantir a independência e autonomia da investigação e do processo, é recomendado pelo direito internacional que os delitos cometidos por militares, que não sejam de natureza disciplinar, sejam julgados pela justiça comum”, avalia a diretora de programas da Anistia Internacional Brasil, Alexandra Montgomery.
O Supremo Tribunal Federal julgará no próximo dia 6 de outubro as atribuições da Justiça Militar em relação a crimes praticados por militares. “Estamos chamando vários atores da sociedade civil para acompanhar esse julgamento. Tem havido uma expansão de casos nos tribunais militares, que na nossa opinião acaba violando a norma constitucional e acaba gerando um ambiente que propicia o avanço de casos de desaparecimentos forçados”, explica o coordenador de enfrentamento a violência institucional da organização de direitos humanos Conectas, Gabriel Sampaio.
Tornar desaparecimento forçado em crime
Um dos motivos da promotora Ana Rita Nascimento, do MInistério Público da Bahia (MP-BA), não denunciar os policiais envolvidos no desaparecimento de Davi Fiuza por homicídio, em 2018, foi a ausência do corpo. “A autoridade policial não logrou êxito em localizar o menor, seja este com vida, ou seus restos mortais, para que sejamos capazes de apontar, com supedâneo no laudo cadavérico próprio, as causas e circunstâncias que cercaram a sua morte, acaso esta tenha ocorrido”, declarou ela ao site do MP-BA à época.
Não há como pedir a condenação de alguém por algo que não exista na lei. Dessa forma, no Brasil, ninguém pode ser responsabilizado por desaparecimentos forçados. Por este motivo, a ONU pede que as autoridades brasileiras criem um mecanismo para tipificar como crime casos como o de Davi.
“O Comitê recomenda que o Estado Parte tome as medidas necessárias para assegurar que o desaparecimento forçado como crime contra a humanidade seja explicitamente criminalizado em sua legislação nacional”, diz o relatório.
“A ausência da tipificação do crime de desaparecimento forçado gera a impunidade. Porque você não acha o corpo da vítima e não tem como processar por homicídio. Na prática, familiares registram o desaparecimento de alguém e não se inicia a investigação desse desaparecimento. Se presume que esse desaparecimento foi voluntário. Mas quando no futuro se encontra um corpo que pode ser compatível com determinado desaparecimento, não há o cruzamento de informações e não existe ainda uma investigação por homicídio”, diz Alexandra.
Negacionismo do governo
Para Gabriel Sampaio, o Brasil está muito atrasado na discussão sobre a tipificação do desaparecimento forçado como crime. Ele lembra que o presidente Jair Bolsonaro é contra essa pauta desde a época que era deputado. “Um dos últimos atos da Dilma foi internalizar os instrumentos internacionais, como as convenções da ONU e da Organização Interamericana de Direitos Humanos, mas o Congresso Nacional ainda não aprovou a legislação. Essa é uma das poucas incidências na história parlamentar do atual presidente foi dificultar esse projeto”.
Tanto Gabriel como Alexandra são céticos em relação ao atual governo acatar algumas das recomendações feitas pelo Comitê da ONU para Desaparecimento Forçado, mesmo com o Brasil sendo signatário das convenções humanitárias da organização.
“Esses são acordos de Estado e não de governo. Quando um país assina um tratado, ele entra em vigor, está dito que você precisa cumprir a rigor algumas regras”, explica Alexandra. “O Estado brasileiro pode avançar no caso dos Tribunais Militares via STF, mas acho muito difícil conseguir que venha do executivo em curto prazo”, explica Sampaio.
Quando questionados pela ONU sobre casos de desaparecimentos forçados no país, a delegação brasileira formada por membros dos ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, da Justiça e do Itamaraty, informou que não haviam casos suficientes que demandassem um esforço especial do governo brasileiro.
A própria organização parece reconhecer que não haverá esforço por parte do Brasil em relação às recomendações do relatório. “Embora tomando nota de que estão ocorrendo amplas consultas internas a esse respeito, o Comitê lamenta a afirmação da delegação de que não há sinal de que o Estado Parte reconhecerá tal competência em um futuro muito próximo”, aponta o texto.
A reportagem entrou em contato com a assessoria de comunicação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pedindo que a pasta comentasse o relatório feito pelo Comitê de Desaparecimento Forçado da ONU, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.