No Mês da Visibilidade Intersexo, conheça Carolina Iara de Oliveira, cientista social, travesti, negra, intersexo, vive com HIV/Aids e é candidata a uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo
“A minha trajetória política começou com o meu nascimento”, conta Carolina Iara de Oliveira, 28 anos. Travesti, intersexo, servidora pública da saúde e ativista em direitos sociais e humanos, Carolina concorre a uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo.
Ela pode ser a primeira travesti a ocupar uma cadeira na casa legislativa da cidade de São Paulo e a primeira intersexo a ocupar um vaga legislativa no Brasil. Carolina sabe como é essa sensação: é a única pessoa trans no programa de pós-graduação na UFABC (Universidade Federal do ABC), na Grande SP, onde cursa mestrado em Ciências Humanas e Sociais.
Foi em 31 de dezembro de 1992 que a trajetória política de Carolina começou. Nascida intersexo, em uma época com poucas informações sobre a pluralidade de corpos, foi submetida a diversas cirurgias de redesignação sexual. Ou mutilações, como chama. Sua mãe, solo, negra e periférica, achava que os médicos tinham razão.
“Seu filho em uma síndrome rara de anomalia de diferenciação sexual, ele nasceu com um problema na genitália, mas como ele tem músculo suficiente para formação de um pênis, vamos fazer o processo de fazer ele ter um pênis normal”, escutou de um deles. E foi o que aconteceu.
“Eu não tenho informação do que fizeram comigo bebê, mas tenho informações do que fizeram depois: duas grandes cirurgias aos 6 e aos 12 anos. Cirurgias, que eu costumo brincar, me redesignaram na infância, porque foram cirurgias de redesignação sexual na infância. Fazem três por semana aqui em um hospital do Jabaquara, em São Paulo, enquanto pessoas trans adultas ficam 10 anos na fila”, lembra Carolina em entrevista à Ponte.
Além das dores das operações, as recuperações eram lentas e doloridas. O racismo institucional também estava presente nessa época da vida da pequena Carolina. “Na hora do pós-operatório, na hora de retirar pontos, eu ia chorar, mas os médicos me falavam que fizeram a cirurgia para eu virar homem”.
“Imagina procedimentos com sonda na sua genitália sem nenhum tipo de anestesia local e a criança não poder chorar? É algo muito doloroso. É um trauma, uma mutilação genital que eu vou levar para sempre. Nada que fizerem vai me restabelecer, me ressarcir. Mas a gente ressignifica a dor”, desabafa.
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Cria da Fazenda da Juta, em Sapopemba, extremo leste da cidade de São Paulo, aprendeu desde muito nova a ressignificar essa dor. E nessa quebrada teve o primeiro contato com os movimentos socais, que até hoje a salvam e dão esperanças em sua vida. Foram 15 anos vivendo nesse território.
As primeiras reuniões e assembleias foram ali na Juta, quando as mulheres negras e nordestinas lutavam por moradia. Também foi na Juta que teve contato com o movimento cultural, onde viu o surgimento de nomes como Linn da Quebrada, também cria do mesmo bairro. “O bairro foi uma escola. Viver naquele contexto era muito pulsante”.
Dos 14 para os 15 anos, após as cirurgias que não teve a chance de escolher, Carolina descobriu que era travesti. “Eu sabia que não era esse corpo que as pessoas queriam que eu fosse. Eu não correspondia nada do que exigiam de masculinidade negra, que é um conceito super racista”, afirma. “A travestilidade foi o único lugar que eu encontrei para responder aquela demanda do meu corpo”.
Apoiada em casa e pelos amigos, conseguiu enfrentar os desafios da escola. “Quando eu me coloquei como uma travesti na minha escola tinham outras pessoas LGBTs e outras travestis. A gente se juntava e enfrentava as opressões”, conta.
Tinham a ajuda de uma diretora, mulher negra e sonhadora. “A diretora era freireana [adepta da obra do pedagogo brasileiro Paulo Freire] e levou um padre progressista que tinha lá perto para falar sobre LGBTfobia. Era uma coisa diferenciada que eu estava vivendo, não era o comum”, reconhece.
Desde muito pequena, ouvia de parentes que era uma criança muito afeminada, que só lhe faltava a saia. Aos 15 anos passou a usar saia e assim ficou até os 18 anos, quando se viu obrigada a “voltar para o armário” para conseguir um emprego. Para evitar essa volta ao armário, teve uma breve passagem pelo trabalho sexual, mas achou perigoso demais para seguir.
“Eu tinha um sonho de ser socióloga, ser escritora. Aí eu ia entregar currículo no centro e via muitas vezes jogarem fora o meu currículo. Eu tinha muita passabilidade na adolescência, hoje tenho menos, aí as pessoas topavam, mas quando pegavam o documento e viam que era uma pessoa trans descartavam”, conta.
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Essa foi a terceira mutilação a qual foi submetida. Dessa vez não foram as lâminas médicas, mas a cisgeneridade compulsória (condição que obriga uma pessoa a corresponder ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento). “Eu me senti obrigada a me masculinizar novamente. Foi um processo muito complicado e dolorido”. Conseguiu o primeiro emprego na área da saúde, no Hospital Santa Marcelina.
Da Fazenda da Juta, Carolina passou a ocupar espaços na saúde pública e entrar em contato com movimentos feministas, de direitos humanos e de enfrentamento de violência doméstica. “Eu tive muita vivência em enfrentamento de violência doméstica, desde o atendimento de muitos casos de violência doméstica, violência sexual, violência LGBTfobia e até aborto legal de homem trans eu tive que encaminhar, por conta de violência sexual. Foi outra escola. Tenebrosa, mas uma escola de juntar a sua dor com a dor do outro e construir coisas a partir dali para seguir em frente”.
Mas foi o ano de 2014 que foi um divisor de águas na trajetória de Carolina. Foi o ano que começou a trabalhar na Prefeitura de São Paulo e o ano que descobriu que vivia com HIV/Aids. “A questão é que a Aids ainda é esse silêncio, as pessoas têm medo. Inclusive as pessoas LGBTs, de serem associadas à Aids, porque a Aids é um xingamento da extrema-direita para nós”, define.
Imediatamente procurou movimentos sociais para enfrentar esse novo desafio coletivamente. “Já é uma mania minha de juntar com os outros e as outras. Descubro que vivo com HIV e penso que outras pessoas devem viver e que deve ter movimento social. O que não é comum, quando as pessoas descobrem que vivem com HIV elas vão para a solidão, para o silêncio, em que ninguém pode saber”, lembra.
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Três anos depois, descobriu que fazia parte de uma letra que ainda estava sendo criada na sigla LGBT+: o I. “Comecei a contar minhas histórias de infância para algumas amigas travestis, que me sugerem pesquisar sobre intersexualidade. Aí caiu a grande ficha que tudo aquilo tinha um nome”.
Foram todas essas vivências que levaram Carolina ao mestrado. “Eu entrei por insistência do movimento de Aids”, brinca. “Amigas do Coletivo Loka de Efavirenz começaram a me questionar que eu já produzia coisas muito importantes”.
Um dos textos que motivaram essa pressão dos amigos e das amigas se chama “Morre o departamento de Aids no Brasil“, uma crítica de Carolina sobre o fim do departamento de Aids. “Eu pesquiso o acesso ao trabalho de pessoas negras vivendo com HIV. Para mim é motivo de orgulho fazer parte disso. Eu tive muita dor e lidei com muita dor das pessoas”.
“Fazer uma renovação na Câmara é importantíssimo”
Só no começo de 2019 que Carolina saiu novamente do armário e se posicionou, de uma vez por todas, como travesti. Caso seja eleita, essas são as bandeiras que Carolina vai defender na Câmara Municipal de São Paulo: as que carrega em seu corpo e conhece bem. Em uma candidatura que também representa a sua trajetória, coletiva, Carolina almeja uma vaga ao lado de Silvia Ferraro, Paula Nunes, Dafne Sena e Natália Chaves pela Bancada Feminista, do PSOL.
Carolina define a Câmara Municipal de São Paulo como “coisa horrorosa”. “Quando a gente pensa em Câmara Municipal, nessa instituição tão antiga, só não mais antiga que a igreja, é da mesma forma que na colonização. Os donos das regiões vão lá, se dividem e fazem a Câmara da cidade”.
“Aqui em São Paulo tem uma capa mais moderna que nas cidades do interior, mas ainda é um coronelismo um pouco disfarçado. Romper com isso e fazer uma renovação na Câmara é importantíssimo”, aponta.
Essa renovação se mostra necessária quando atualmente não há nenhuma mulher negra eleita na Câmara, em que 85% dos vereadores são homens, brancos, com mais de 50 anos, segundo levantamento do PSOL. Carolina faz parte das 271 candidaturas de pessoas trans nas Eleições Municipais de 2020 espelhadas pelo Brasil.
O levantamento foi feito pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e apontou que 25 das candidaturas são coletivas, e apenas 2 para prefeitura e 1 para vice-prefeitura. Das 271 candidaturas, 247 travestis e mulheres trans, 14 homens trans e 10 pessoas com outras identidades trans. O sudeste concentra 42% das candidaturas e 51% vêm por partidos de esquerda.
Para Carolina, a candidatura coletiva só tem benefícios, para ela e para a população. “O interessante de ser cinco pessoas é justamente conseguir se dividir bastante, estar em vários lugares e várias frentes”, conta.
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“A pauta da saúde para pessoas LGBTs, principalmente trans e intersexo, da minha parte, enquanto sujeita, são as principais pautas, além da pauta da negritude também. Apesar de não ter feito parte institucionalmente da Marcha das Mulheres Negras, isso quem fez mais foi a Paula, eu tive essa incursão em várias coisas nos movimentos negros”.
Para combater a LGBTfobia, explica Carolina, duas linhas devem ser levadas em consideração. “Quando pensamos em pauta LGBT+ é pensar infância e adolescência e pensar juventude. Como a gente consegue tratar bem essas três fases dessa população”.
“Em geral, jovens adultos já vão estar no processo de marginalização que conhecemos, como processo de retomada de emprego, retomada do acesso à saúde e á educação, que foram negados, e como a gente evita que as crianças passem por tudo isso. São essas fases que impedem o envelhecimento de pessoas LGBTs”.
Por isso, pretende atuar na educação básica pensando na população LGBT+ e no fortalecimento de programas como o Transcidadania, criado pela gestão (2012-2016) do prefeito Fernando Haddad (PT) e que tem como linha de atuação a empregabilidade e a educação para pessoa trans.
“Como a gente faz para que as pessoas trans não sejam expulsas lá na educação básica? O que o município tem que fazer? Tem que ter equipes multidisciplinares nas escolas para atender essas crianças e adolescentes que são LGBTs, estão sendo perseguidas e vão sair da escola em breve, porque não vão aguentar. Não tem esse esforço político, não tem essa estrutura. Professor não tem essa estrutura nem o treinamento para lidar, não tem a equipe”, aponta.
“A Câmara precisa legislar a favor dessas políticas públicas para que elas sejam políticas de Estado, não de governo. Precisamos obrigar a Prefeitura a colocar dinheiro novo nessas políticas públicas e estipular por lei que elas existam. O Transcidadania não é lei, por exemplo, é um decreto. Um decreto pode ser derrubado”, argumenta.
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