Comissão recebeu denúncia de Mães de Maio, Defensoria e Conectas, feita em 2021, e questiona atuação do governo brasileiro no caso de Paulo Gomes, desaparecido após abordagem policial em SP
O governo brasileiro tem três meses para prestar esclarecimentos sobre o caso de Paulo Alexandre Gomes, que desapareceu, aos 23 anos, após uma abordagem policial em 16 de maio de 2006, no âmbito dos Crimes de Maio daquele ano que deixaram 564 mortos e mais três desaparecidos.
Essa é uma solicitação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), após o Movimento Independente Mães de Maio, o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH) da Defensoria Pública de São Paulo e a ONG Conectas Direitos Humanos denunciarem e cobrarem responsabilização sobre as vítimas desaparecidas.
As três organizações entraram com uma petição à CIDH em maio de 2021 apontando que as autoridades brasileiras se recusaram a investigar de fato o caso, que resultou em um arquivamento pelo Tribunal de Justiça em 2008, a pedido do Ministério Público, sem que testemunhas tenham sido ouvidas ou que tenha sido apurada a participação de PMs da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) que faziam patrulhamento na região em que Paulo desapareceu, no bairro de Itaquera, na zona leste da capital paulista. Ele foi visto pela última vez com vida durante abordagem policial e até hoje a família não sabe o que aconteceu depois.
A assistente social Francilene Gomes Fernandes transformou a dor pela perda do irmão em instrumento de luta por respostas, incluindo uma tese de mestrado tratando dos casos de desaparecimentos forçados pelo Estado. As informações que ela levantou também serviram de base para a denúncia internacional.
“Eu e meus pais recebemos a notícia num misto de alívio e tristeza. Sem dúvida, após longos 16 anos de dor, incerteza, saudades, tivemos nossa luta como Mães de Maio e familiares, reconhecida internacionalmente”, declarou. “Sabemos que as deliberações da CIDH como defensora dos direitos humanos têm um peso político importante, pode não ser capaz de nos trazer meu maninho de volta, mas sem dúvida será um importante mecanismo de prevenção a novas violações de direitos humanos, via desaparecimento forçado de pessoas. É uma vitória importante, coletiva, capaz de ter um alcance de coibir que novos Paulinhos tenham suas vidas ceifadas pela Polícia Militar.”
De acordo com a assessora da Conectas, Carolina Diniz, essa fase do processo se chama admissibilidade, que é quando a Comissão passa a avaliar se a denúncia tem procedência e o Estado brasileiro é intimado para prestar informações e fazer a sua defesa.
“Estando presentes todos os requisitos, a CIDH recebe o caso e manda para essa etapa de admissibilidade, que é depois de uma avaliação prévia, e manda o Estado se manifestar. Daí começa uma outra avaliação, porque um dos requisitos para fazer uma denúncia para a CIDH é de que todas as esferas internas tenham sido superadas, que é o caso do Paulo porque o inquérito foi arquivado, já transitou em julgado [sem possibilidade de recurso] e não tem mais como seguir aqui dentro [no país], em tese”, explica.
Se as justificativas do governo brasileiro forem consideradas insuficientes, a Comissão faz uma avaliação de mérito da denúncia, que é a terceira etapa do processo antes de um julgamento de fato. Se a CIDH entender que as respostas do Estado atenderam à demanda, o processo não vai para frente e não cabe recurso.
Diniz explica que a admissibilidade é um estágio importante porque “indica que existem indícios suficientes de que o Estado não foi capaz e que não dará uma resposta sobre isso e que muitas violações de direitos humanos aconteceram nesse caso”.
Com várias negativas da Justiça brasileira, agora as entidades pedem que a CIDH recomende ao Brasil que investigue e responsabilize os agentes envolvidos nas violações de direitos humanos cometidas em episódios como o de Paulinho e com isso que reconheça a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada em 1992 pelo país, e da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, promulgada em 2016.
O documento cobrou ainda que cursos e outras medidas para capacitar juízes e promotores quanto ao tema do desaparecimento forçado sejam requisitadas. As organizações também reivindicam a oferta de atendimento psicológico aos familiares das vítimas.
A petição destaca que, no caso de o governo brasileiro não atender às recomendações da CIDH, as denúncias sejam remetidas à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). O julgamento não tem poder de decisão nas esferas jurídicas nacionais, mas deve chamar a atenção para a responsabilidade do Estado e trazer um constrangimento internacional.
Crimes sem solução
Esta é a terceira vez que a sociedade civil e a Defensoria recorrem à OEA sobre os Crimes de Maio. Uma primeira denúncia foi encaminhada à CIDH em 2009. Nela a Conectas e os familiares das vítimas denunciaram o caso alegando violação do Estado brasileiro à Convenção Americana de Direitos Humanos.
Em 2015, houve uma segunda ação, quando a Defensoria Pública de São Paulo acionou a Comissão solicitando o reconhecimento das violações cometidas pelo Estado brasileiro contra as vítimas identificadas e a reparação integral das suas consequências dos crimes. Essa ação está na fase de admissibilidade.
Já as investigações nacionais sobre as mais de 500 mortes em 2006 nunca foram concluídas. Com as dificuldades encontradas em investigar e responsabilizar o Estado, em 2009 a Conectas pediu à Procuradoria-Geral da República que o caso da chacina do Parque Bristol, um dos mais emblemáticos Crimes de Maio, fosse transferido para a esfera federal, para que as investigações fossem reabertas e realizadas pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal.
Apenas em maio de 2016, dez anos após os assassinatos, Rodrigo Janot, o então Procurador-Geral da República, acatou a solicitação e apresentou pedido de federalização, que foi aceito pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em agosto deste ano.
Há ainda uma investigação em andamento no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Santos (SP). Fora isso, a Defensoria Pública ingressou com oito ações de indenização por danos morais e materiais contra o estado de São Paulo, em favor dos familiares das vítimas, das quais três tiveram resultados favoráveis.
Também com objetivo de fazer com que os Crimes de Maio sejam reconhecidos como grave violação de direitos humanos, e que seja feito pagamento de indenizações por danos morais individuais e coletivos, em 2018 a Defensoria Pública e o Ministério Público ajuizaram uma ação civil pública (ACP) contra o estado de São Paulo.
Em 2019, o desembargador Marcelo Theodósio, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) alegou que as denúncias prescreveram e, por causa disso, a Justiça se recusou condenar o estado a pagar R$ 153 milhões em indenizações. A defensora Letícia Avelar contesta a decisão: “A gente defende que não, que são crimes de lesa à humanidade, são imprescritíveis segundo inclusive o sistema internacional de direitos humanos”. Recursos levados ao STJ e ao Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não foram analisados.
O que diz o Itamaraty
Procurada sobre a carta da CIDH, a assessoria encaminhou a seguinte nota:
O Estado brasileiro recebeu, em 1º de novembro, nota da CIDH com os documentos da petição inicial. O prazo para apresentação de informações sobre a admissibilidade, de acordo com o regulamento da Comissão, é de até 4 meses.