Breque dos apps em São José dos Campos durou seis dias e obrigou plataformas de delivery a negociar com entregadores, que já avisam: dependendo do resultado da reunião entre motoboys e iFood no dia 28, a greve volta
A cidade do Vale do Paraíba, interior de São Paulo, que já viu desfilar em suas avenidas marchas emblemáticas como as realizadas durante a greve de 1985 na General Motors, testemunhou aquela que pode ser considerada a mais longa greve de entregadores de aplicativo da história do Brasil. Terminou na quinta-feira (16/9), depois de seis dias, o “breque dos apps” em São José dos Campos.
A greve, que viu entregadores se aliarem com restaurantes, impôs reveses importantes para as plataformas de intermediação entre estabelecimentos e motoqueiros. Apps como o Bee Delivery anunciaram novos benefícios aos entregadores, e o gigante iFood, principal app de delivery do Brasil, foi obrigado a sentar na mesa com a categoria para negociar – uma primeira reunião está agendada para o dia 28 de setembro.
Os motoboys que participaram do breque da semana passada já avisam: se o acordo não for razoável, o breque volta. A luta, inclusive, já inspira trabalhadores em outras cidades: em Jundiaí, no interior paulista, um breque para o dia 28 já é dado como certo, enquanto em João Pessoa, capital da Paraíba, tem um ato marcado para esta terça a tarde (21/9), estililado pela movimentação em São José dos Campos e em busca de justiça pela morte de mais um entregador atropelado, o motoboy Kelton Marques.
#BrequedosApps: a origem
Há oito semanas, uma movimentação sob poucos holofotes tomava forma em ao menos vinte cidades do Brasil. O espaço nas bags, mochilas em que os entregadores levam a comida, reservado às logomarcas das empresas de delivery, foi tomado por adesivos que convocavam uma greve nacional para o dia 11 de setembro, último sábado.
“Alguns aplicativos até mudaram o tipo de mochila depois do breque do ano passado para que a gente não colasse mais nada, só que não adiantou”, disse Gustavo*, 42, motoboy e morador da região metropolitana da cidade de São Paulo. Ele, assim como todos os entregadores entrevistados, solicitou que seu nome verdadeiro não fosse divulgado a fim de evitar possíveis retaliações por parte das empresas.
Entre as principais reivindicações, estão o aumento das taxas e a criação de um código de entrega para evitar golpes e bloqueios arbitrários, pautas que os entregadores carregam desde julho de 2020. A novidade da vez é a defesa do fim da entrega com hora marcada.
Este sistema de agendamento de entregas é um teste do iFood em três cidades do Brasil: Belém (PA), Goiânia (GO) e Ribeirão Preto (SP). Segundo a empresa, o intuito é “organizar melhor o dia a dia das entregas” e que, com isso, “as chances de receber pedidos podem aumentar”.
Motoboys relatam que, na prática, a medida piora as condições de trabalho. O pesquisador em segurança e saúde no trabalho Leo Vinicius Liberato vê tanto no sistema de agendamento quanto na categoria de OL (Operador Logístico), onde além de cumprir com uma escala de trabalho os entregadores também são submetidos a um chefe humano, “uma forma que o iFood encontrou para controlar ainda mais o ‘ecossistema’ que explora”. Ele lembra ainda que a maior investidora deste setor do mercado, a Naspers, é uma empresa da África do Sul que nasce em 1915 e foi, durante o regime do Apartheid, uma das principais porta voz dos supremacistas brancos no país africano. “É este o capital que vem para o Brasil e essa greve expõe isso.”
Não foi o primeiro chamado de paralisação nacional convocado por entregadores. No ano passado, o Brasil inteiro observou com grande atenção a ascenção da mobilização desta categoria nos dias 1 e 25 de julho, data dos primeiros breques no país. De lá para cá, uma série de manifestações mais regionalizados aconteceram. Liberato, que costuma acompanhar essas mobilizações, afirma que no geral esses breques duram um ou dois dias. Por esse fator, a greve de São José dos Campos chama a atenção por “explicitar mais algumas contradições pela reação das empresas de aplicativo, em especial no que diz respeito ao trato com os restaurantes”.
O breque de São José dos Campos
De acordo com Ângelo*, 30 anos, a paralisação em São José dos Campos não foi exatamente planejada. Organizada por trabalhadores sem vínculo com sindicatos, o chamado começou a circular na região depois que um vídeo gravado em São Paulo, que ensina como se bloqueia a saída de pedidos, foi postado nas redes sociais do Treta No Trampo, um dos principais canais de divulgação do movimento. “Isso é o breque”, diz.
Nos grupos de WhatsApp, as conversas deixaram de ser sobre o trabalho e passaram a investigar maneiras de continuar a paralisação. “Foi assim que começamos a nos dividir, um vai para um lugar e outro para outros”, disse Ângelo.
Divididos entre os principais pontos de delivery da cidade, os entregadores bloquearam aqueles que não sabiam da movimentação e apareciam para retirar um pedido. Isso afetou toda a rede de entregas de São José dos Campos, que conta com 3 mil motoboys cadastrados no iFood.
Segundo ele, o movimento ganhou força quando os restaurantes passaram a desligar a plataforma em resposta ao breque. Em pouco tempo, quase nenhum estabelecimento aparecia como disponível na plataforma mesmo em horário comercial.
No final do primeiro dia de paralisação, os entregadores se reuniram para votar a continuidade da greve. Um comunicado que circulou nos grupos de WhatsApp da mobilização avisava de que nenhuma das 4 equipes de OL voltaria a ligar o aplicativo.
“Houve um certo apoio por parte dos restaurantes aos motoboys”, relata Leo Vinicius. “Mas no último dia da greve, o iFood estava pressionando para que os restaurantes reabrissem a loja na plataforma, segundo relatos.”
De acordo com uma denúncia publicada nas redes sociais da Padoca SJC, três dias antes do fim da greve a própria iFood fechou lojas por falta de motoboys, “sem nos avisar e sem avisar vocês, clientes”. Questionada pela reportagem sobre as razões por trás deste tipo de prática, a empresa não se posicionou.
Liberato afirma que a situação demonstra o poder que a maior empresa do setor no Brasil tem sobre os restaurantes e entregadores. “É um nível de subordinação que o iFood impõe que é muito grande. Isso é um fato que ficou ainda mais transparente nesta greve, o que é bastante contraditório com o discurso publicizado pela empresa”.
“Uma união muito forte”
Um dos principais motivos que garantiram a continuidade da greve, de acordo com Ângelo, foi “a união entre os motoboys e apoiadores”.
Os grevistas também se organizam em grupos para circular pela cidade e distribuir água e comida para quem estava nos bloqueios, além de interditar restaurantes de menor circulação e tentar convencer quem ainda estava trabalhando a aderir à paralisação.
Para contornar a falta de ganhos, eles organizam também uma campanha virtual de arrecadação de fundos. Aderiram à campanha famosos como Gregório Duvivier e a personagem Tina, além de organizações como o Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos. Os entregadores relatam que receberam muitas doações pelo PIX divulgado nas redes sociais e que o dinheiro foi usado para garantir a alimentação nos dias de greve.
A resposta dos aplicativos
A escalada da tensão entre os interesses dos entregadores e dos donos de restaurantes chegou ao seu limite no sexto dia de greve. O dono de uma rede de restaurantes da cidade, que até o sexto e último dia de paralisação (16/9) manteve a plataforma fechada, anunciou para entregadores a intenção de reabrir no dia seguinte e mencionou a possibilidade de conflitos com a polícia.
A situação pressionou os aplicativos a dar uma resposta ao movimento. O iFood enviou um comunicado interno no aplicativo aos restaurantes e entregadores da região em que, entre outras coisas, explicava que “havia reajustado a taxa acima do salário mínimo”. A Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia), que reúne nove empresas do setor, também reforçou que “apesar da atual instabilidade econômica no país, não houve a redução de taxas de remuneração dos parceiros”.
A troco do fim da greve, o iFood prometeu uma reunião de negociação no dia 28 de setembro, onde será discutida uma proposta de reajuste da taxa mínima para R$7,00. Por um lado, os entregadores não queriam suspender o movimento para que a reunião acontecesse. A presença de articuladores políticos da iFood, no entanto, alterou a situação.
Como essa reunião foi marcada? Ângelo contou à reportagem que um rapaz chamado “Johnny” entrou em contato com os chamados “linhas de frente” do movimento e insistiu para que a reunião acontecesse.
Conversando com entregadores envolvidos em mobilizações de todo o Brasil, este senhor tem como função “desfazer e enrolar o movimento nacionalmente” ao fazer longas conversas que, apesar de explicar como funciona a plataforma, não resolvem as demandas. Ao se aproximar do movimento, ele sempre ressalta uma atuação às escondidas, explicando porque não faz declarações em nome do iFood ou aparições públicas.
Quando questionado pela reportagem, Johnny William Cruz Borges reforçou não ser “porta voz da empresa para a imprensa”. Em seu LinkedIn, ele se descreve como o responsável pela “criação de redes de relacionamentos produtivos e duradouras com lideranças da categoria, recebendo e entendendo os pleitos, construindo diálogos políticos frutíferos e racionais”.
Até a publicação desta reportagem, a assessoria de imprensa do iFood não explicou sua função nas negociações nem como ele atua para garantir que as demandas dos entregadores sejam atendidas. No entanto, motoboys afirmam que, além de uma promoção (bônus extra por corrida) de R$ 5,00 todos os dias até a data da reunião, a promessa de reajuste foi garantida por ele. Na prática, “o que eles deram foi uma promoção de R$ 3 de sexta a domingo desta e da próxima semana — o que é praticamente o normal no fim de semana”, dizem os entregadores.
Em vídeo, os entregadores de São José dos Campos declararam que “no dia 28 há uma reunião marcada com o iFood” e qu e a partir deste dia eles voltarão a entrar em greve. “E a greve dessa vez vai ser interminável e nacional.” Questionada se outros aplicativos estarão presentes na rodada de negociação, a Amobitec não se pronunciou.
Numa live realizada nesta sexta-feira (17/9), dia seguinte ao fim da greve, o clima é otimista. “A nossa classe para mim já é considerada uma família, todos lutando por uma causa que com certeza a gente vai ganhar”, disse Marcelo, entregador de São José dos Campos, ao canal do carioca Ralf MT.
Ao menos um outro aplicativo parece já ter realizado uma negociação mais propositiva com os entregadores. Circula entre os motoboys um comunicado da Bee Delivery com sete pontos em que se cria um canal de comunicação direto com a empresa e representantes da categoria. Além disso, reajustaram a taxa por quilometragem em corridas longas a partir do quinto km rodado para R$ 1,00 por km, e da taxa dinâmica de R$ 1,60 para R$ 2,00.
*Nome fictício