Débora Nachmanowicz de Lima, do IBCCRIM, critica decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou o crime de desacato constitucional
Em maio de 2019, o MC Kawex, o Sabotage da Cracolândia, foi preso por desacato, no centro da cidade de São Paulo. Menos de um ano depois, em fevereiro de 2020, foi a vez do professor Lucas da Silva Nascimento ser preso pelo mesmo motivo no Rio de Janeiro. Em março deste ano, o educador MC Cauê Quimera foi detido e agredido sob a justificativa de desacato em Perus, periferia da zona noroeste da cidade de São Paulo.
Um pouco antes, em julho de 2018, Stella Avalloni foi detida em um manifestação de mães contra a violência do Estado. Ela foi presa por desacato, mas afirmou à Ponte na época que, na realidade, foi tirar satisfação depois que o PM Allan da Silva Araújo mandou beijos e fez provocações assediadoras para ela de dentro da viatura.
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O Supremo Tribunal Federal tinha a chance de mudar essas histórias comuns e repetitivas, mas com a votação da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 496, por 9 a 2 os ministros decidiram que o desacato é válido dentro da Constituição Federal de 1988.
O crime de desacato é definido como “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” e visa “proteger o prestígio e dignidade da administração pública”, como argumentaram alguns ministros. A lei prevê pena de detenção de seis meses a dois anos ou pagamento de multa (descrito no artigo 331 do Código Penal). O problema é que esse é um crime “aberto”, como explica a advogada Débora Nachmanowicz de Lima, coordenadora-adjunta da comissão amicus curiae do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
“O que é desacatar? Para você ser enquadrado em um crime você precisa saber o que você não pode fazer. Se eu falar que um funcionário público cometeu algum erro, eu estou desacatando ele? Se eu usar de ironia, eu estou desacatando ele? Sendo que o meu direito está sendo violado?”, questiona.
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O pedido foi proposto pela CFOAB (Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil), que acredita que o crime de desacato viola diversos preceitos fundamentais, incluindo a liberdade de expressão, o princípio de igualdade e o princípio de legalidade.
Os entendimentos da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos), que apontam que o desacato viola o sistema democrático, também é citado no requerimento da OAB. Nesta ação, o IBCCRIM atua como amicus curiae (amigo da Corte), ao lado das Defensorias Públicas de diversos estados, da Artigo 19, do IARA (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental), do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Defensoria Pública da União e do Ministério Público do Rio de Janeiro.
No parecer sobre a ADPF para que o desacato seja considerado inconstitucional há citação de duas reportagens da Ponte: uma de janeiro deste ano, quando mais de 30 manifestantes foram “detidos para averiguação“, incluindo um fotojornalista, e a outra do início de junho, quando a PM reprimiu com violência o ato antifascista realizado por torcedores ligados a torcidas organizadas, na avenida Paulista. Na ocasião, houve flagrante diferença de conduta policial para tratar uma militante bolsonarista e para os manifestantes contrários ao presidente.
“Na prática, o crime de desacato serve para a Polícia Militar deter e acusar cidadãos em duas situações: nas manifestações e no policiamento diário, direcionado para uma população vulnerável, nas periferias, na Grande SP”, aponta Débora.
A advogada lembra que o Código Penal é bem anterior à Constituição Federal: a lei sobre desacato foi criada em dezembro de 1940 e a constituição é de 1988. Desacato visa proteger o prestígio e dignidade da administração pública e prevê pena de detenção por seis meses a dois anos ou pagamento de multa.
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A advogada argumenta que o crime de desacato pode ser substituído por outros três tipos penais: desobediência, resistência e injúria. Por isso, ele serve apenas para manter uma ameaça contra o cidadão.
“Tudo isso fica a mão do policial. A primeira abordagem, quem fez a detenção, é o policial. Ainda que, lá na frente, o juiz decida que não é desacato e essa pessoa seja absolvida, ela já vai passar por um constrangimento desnecessário, quando não violento, no início. Exatamente pela previsão de um crime como esse e tudo isso é muito subjetivo, fica na mão do policial decidir”, explica.
Em muitos casos, o desacato é usado para prender em flagrante com a soma de outras penalidades, aponta Débora. “Para você ser preso em flagrante, você precisa de uma pena máxima acima de quatro anos. O desacato tem uma pena de detenção de seis meses a dois anos, mas isso não impede que a pessoa seja criminalizada. Isso gera um boletim de ocorrência de detenção e, se colocarem outros crimes, isso [a pena] pode aumentar”, detalha.
“Sem o desacato, os PMs vão ter que inventar coisas. Se a pessoa for detida só por resistência ou desobediência, ela não vai poder ficar presa. Ela vai ter o registro e vai para casa. Ainda que ela responda o inquérito, ela não fica presa. Mas a possibilidade de você somar tudo isso com o desacato vai fazer um total de quatro anos, por exemplo, e a pessoa vai poder ser presa em flagrante”, aponta.
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A absolvição, aponta a advogada, não importa em caso de prisão por desacato, pois a pessoa terá que passar por todo o caminho jurídico para alcançar eventual absolvição.
“Fica a cargo do policial civil transformar isso [o B.O.] em um inquérito, que vai para o Ministério Público, que vai decidir se vai denunciar ou não. É raro que o MP faça uma manifestação pelo arquivamento. E aí a gente vê que o juiz normalmente recebe a denúncia, determine que aconteça a instrução desse processo”, lamenta.
“A pessoa, então, vai ter que contratar um advogado, apresentar uma defesa, ir no Fórum para uma audiência. Aí depois disso o juiz vai verificar tudo. Mas até isso chegar, olha esse caminho que ela percorre”.
Como votou cada ministro
A votação terminou na sexta-feira (20/6) às 23h59. Votaram pela manutenção do desacato os ministros Luís Roberto Barroso, relator da ação, seguido por Cármen Lúcia, Marco Aurélio Mello, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Celso de Mello e Dias Toffoli. Apenas Edson Fachin e Rosa Weber acreditam que desacato é inconstitucional.
Em seu voto, o ministro Barroso argumentou que o desacato existe para “proteger a função pública exercida pelo funcionário”. “No campo penal é razoável que se prevejam tipos penais protetivos da atuação dos agentes públicos. É nesse contexto que se justifica a criminalização do desacato”.
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O relator apontou que não basta o funcionário se sentir ofendido para que o desacato seja aplicado. “Não há crime se a ofensa não tiver relação com o exercício da função. É preciso um menosprezo da própria função pública exercida pelo agente. E, mais, é necessário que o ato perturbe ou obstrua a execução das funções do funcionário público”, argumenta.
Os ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux e Dias Toffoli acompanharam o relator sem argumentarem em seus votos. O ministro Alexandre de Moraes também acompanhou o voto do relator, mas manifestou em seu voto que o desacato “não viola o texto convencional invocado, nem afronta a ordem constitucional vigente”.
Para o ministro Gilmar Mendes, “o desacato é um crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. O sujeito passivo, conforme dissemos, é o Estado, sendo o funcionário público uma vítima secundária da infração”.
Mendes argumentou que “o desacato constitui importante instrumento de preservação da lisura da função pública e, indiretamente, da própria dignidade de quem a exerce”.
Para o ministro Celso de Mello, a liberdade de expressão não pode “amparar comportamentos delituosos que tenham, na manifestação do pensamento, um de seus meios de exteriorização, notadamente naqueles casos em que a conduta praticada pelo agente encontra repulsa na própria Constituição” e que não se pode admitir “atos, palavras ou imputações contumeliosas que ofendam valores fundamentais”.
Já o ministro Edson Fachin, um dos votos contrários, argumentou que “seja por ofender os tratados internacionais, seja por ofender diretamente o próprio texto constitucional” a solicitação para extinguir o crime de desacato é procedente.
Fachin também apontou que “não há fundamento constitucional para a criminalização do desacato, seja pela relevância do direito à liberdade de expressão, seja pela desnecessidade de se renovar a tipificação de condutas já criminalizadas”.
A ministra Rosa Weber defendeu em seu voto que “no Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão é a regra” e que “ao prever injustificada distinção entre funcionários públicos e cidadãos comuns, o tipo do crime de desacato, em que qualificada a ofensa em razão do seu destinatário, viola o princípio da igualdade e o princípio republicano”.
“A tipificação do crime de desacato inibe os cidadãos de contestarem as ações e os comportamentos dos agentes estatais, enfraquecendo a prerrogativa do cidadão de fiscalizar as atividades dos agentes públicos”, completou Weber.