Em novo texto da coluna Pluralidades, Caê Vasconcelos conta as sensações de ver o musical “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, peça teatral com seis mulheres trans travestis no elenco principal
Tenho falado muito sobre a importância de honrarmos as nossas transcenstralidades e enxergarmos o mundo de forma coletiva. Para eu chegar onde tenho chegado, muito corpo transvestigênere precisou tombar. E isso dói, desanima, amedronta. Mas tem momentos que enchem nossos corações de esperança. Assistir ao musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas foi um desses.
Em outubro de 2021, o musical estreou de maneira online, por causa da pandemia do coronavírus. Na época, a Ponte conversou com parte do elenco para contar como era a peça. Agora que a vacinação avançou bastante, a peça ganhou vida presencial. A estreia foi em 9 de junho e eu era um das pessoas trans sentadas ali na plateia para aplaudir de pé um elenco composto por seis mulheres trans e travestis homenageando Caetana, mais conhecida como Brenda Lee.
Para quem não conhece a história de Brenda Lee, ela foi uma importante ativista travesti que lutou pela vida das travestis nas ruas de São Paulo na década de 1980 e 1990, durante o período da Operação Tarântula, quando eram perseguidas pelas polícias em uma espécie de “higienização”. A primeira casa de acolhimento de São Paulo, o providencial “Palácio das Princesas”, foi criada por ela, que servia também como espaço para luta contra o HIV/Aids e esperança de outros caminhos possíveis para meninas trans e travestis que só tinham a prostituição como profissão.
O musical abre com uma entrevista de Brenda Lee dada em 1984, uma das últimas vezes que falou com a imprensa — “aproveito para dizer que se tiver alguém com Aids e não tiver lugar para ficar, pode vir aqui para a casa que a gente vai cuidar sem nenhuma discriminação”, diz a ativista no vídeo. O espetáculo tem muito de cabaret, indo além do palco, com as atrizes circulando entre as mesas. A trilha, por sua vez, responde à tradição da Broadway, com canções de piano mas também diferentes influências de ritmos brasileiros.
Se hoje ser uma pessoa transvestigênere é um peso e uma luta diária, fico imaginando como era a vida das pessoas transcestrais que abriram os caminhos para que hoje a gente pudesse ter uma peça teatral com seis mulheres trans e travestis dominando o palco. O sangue de Brenda Lee e outras centenas de pessoas precisou ser jorrado para que pudéssemos ser vistos.
Ainda menos do que deveríamos, já que o Dia da Visibilidade Trans ainda é uma data de luta e não de celebração. Ainda lutamos por direitos básicos, como o respeito ao nome e pronome, aos banheiros, ao mercado de trabalho, à saúde, à escola, à moradia, à vida. Mas avançamos e precisamos celebrar nossas vitórias, conquistas e, principalmente, nossos talentos. E isso a minha galera transvestigênere tem de sobra. Ainda bem que agora as oportunidades de protagonizarmos nossas vivências têm aparecido.
Em janeiro eu havia escrito que, sem o transfake, pessoas trans são cada vez mais premiadas por seus talentos no audiovisual. Facilmente podemos estender isso para: sem o transfake, pessoas trans estão cada vez ocupando mais espaço no teatro. Isso em cima do palco e nos bastidores. Além do elenco maravilhoso desse musical, que traz atrizes extremamente potentes e multitalentosas, temos muitos outros nomes de pessoas trans importantes na cena teatral. Renata Carvalho, Léo Moreira Sá, Daniel Veiga, Ave Terrena, Neon Cunha e por aí vai. Anota todos aí, segue essa galera nas redes e se dê de presente a chance de ver de perto a potência das nossas pessoas trans do teatro.
Neon Cunha, inclusive, que foi homenageada ainda em vida dando nome a uma casa de acolhimento: a Casa Neon Cunha, coordenada por Symmy Larrat. Brenda deu vida à primeira casa de acolhimento para pessoas transvestigêneres e temos muitas outras pessoas seguindo essa transcestralidade. Procurem conhecer e apoiar algumas delas: Casa Chama, Casa 1, Casa Nem, Casa Florescer 1, Casa Florescer 2, Casa João Nery, Casa Aurora.
Por toda essa representatividade, ver o espetáculo Brenda Lee e o Palácio das Princesas, ver a potência das nossas atrizes, me renovou. Deu esperança de que, sim, estamos construindo um futuro melhor para as nossas pessoas. Ainda com muita luta e dor, mas já podemos sentar por quase duas horas e aplaudir nossas potências.
Podemos ver os sonhos de Brenda Lee sendo realizados por nós, cada pessoa trans na sua área, construindo juntes um outro futuro. E não vamos parar. Não tem mais volta. As portas que abrimos com muito esforço jamais serão fechadas novamente. O palco é nosso lugar, as redações jornalísticas são nossos lugares, as casas legislativas são nossos lugares.
Então te convido pra ver essa peça potente e revolucionária com esse elenco maravilhoso: Verónica Valenttino (Brenda Lee), Tyller Antunes (Ariella del Mare), Ambrosia (Isabelle Labete), Marina Mathey (Cinthia Minelli), Leona Jhovs (Blanche de Niège) e Olivia Lopes (Raíssa). Obrigado por nos presentearem com tanta potência e talento.
Serviço:
Brenda Lee e o Palácio das Princesas, do Núcleo Experimental
Temporada: 09/06 a 03/07
Local: Teatro do Núcleo Experimental (Rua Barra Funda, 637, Barra Funda, São Paulo-SP)
Ingressos: R$30 (inteira) e R$15 (meia-entrada)Vendas online em Sympla
* Caê Vasconcelos é homem trans, bissexual, jornalista e cria da periferia zona norte da cidade de São Paulo. É autor do livro-reportagem Transresistência: Pessoas trans no mercado de trabalho (Dita Livros) e repórter especializado na editora LGBT+. Foi repórter da Ponte Jornalismo de 2017 a 2021 e desde 2022 assina a coluna Pluralidades