Jovem não tem mais esperança de punição aos policiais militares que participaram da ação que a atingiu com tiro de borracha em baile funk na periferia de SP
“A gente vive num país onde não existe justiça né?” A pergunta, uma mistura de desabafo e descrença, é de Gabriella Talhaferro, 17 anos, que ficou cega após ser atingida por um tiro de bala de borracha disparado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo há exatos seis meses.
Gabi, como é chamada por amigos e familiares, perdeu a visão do olho esquerdo na madrugada de 10 de novembro, quando havia deixado sua casa em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, para curtir o baile funk chamado de Beira Rio, em Guaianases, na zona leste da capital paulista.
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No entanto, como o baile havia sido cancelado e ela não tinha como voltar para casa devido a ausência de transporte público, resolveu, por se sentir mais segura, aguardar a reabertura da estação Guaianases da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) em frente a uma adega na estrada Itaquera-Guaianazes. Foi nesse momento, diante do estabelecimento, que um policial militar de dentro de uma viatura mirou em seu rosto e atirou.
Na primeira das muitas entrevistas já concedidas por Gabriella à Ponte, que acompanha o caso desde o início, ela também contou que PMs que estavam no local ainda debocharam de sua situação de desespero, porque ela sangrava bastante, e se recusaram a prestar socorro.
Desde então, seis meses se passaram e nenhum agente foi punido. A adolescente, que na época tinha 16 anos, chegou a reconhecer, um mês após o crime, um cabo como o policial que, de acordo com ela, mirou a escopeta em seu rosto e atirou.
O reconhecimento se deu ao analisar um álbum de fotos apresentado por oficiais da Corregedoria da Polícia Militar com imagens dos agentes do 28º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), responsável pelo patrulhamento na área onde Gabriella foi baleada.
No entanto, segundo a corporação, o policial reconhecido não estava presente na ação que vitimou Gabriella, já que estava escalado como sentinela da unidade de Força Tática do mesmo batalhão e não poderia se ausentar do local.
No mesmo álbum, Gabriella reconheceu um tenente por omissão de socorro e por debochar de sua situação. O comando da PM também negou sua participação na ação, já que o oficial estava afastado do trabalho naquela data após apresentar um atestado médico.
Depois de tantas idas e vindas ao 44º DP (Guaianases) e à sede da Corregedoria da Polícia Militar, na Luz, região central da capital, além dos problemas no reconhecimento dos PMs, Gabriella e sua mãe Kelly Talhaferro, 33, estão perdendo esperança em punir os responsáveis.
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“Eu já me conformei que não haverá punição. Aceitar isso eu não vou, mas também vou deixar de correr atrás de algo que eu sei que não vai dar em nada”, disse Gabi à Ponte.
Sua mãe segue a mesma linha de raciocínio e duvida que as polícias paulistas estejam comprometidas em chegar aos culpados e torná-los réus pelo crime. Kelly ainda encontra um outro empecilho para conclusão dos trabalhos: o coronavírus.
“Agora [com a quarentena] é que não vão procurar mesmo. A investigação da Gabi não deu em nada. Disseram que os caras que ela reconheceu estavam de atestado e só. A gente sabe que não vai dar em nada. E eu, sinceramente, não estou nem um pouco a fim de correr atrás disso. É só sofrimento”.
Gabriella, que realiza um tratamento na USP (Universidade de São Paulo) para implantação de uma prótese em seu olho esquerdo, também contou que venceu os sintomas de depressão que estavam a perseguindo nos primeiros meses após à violência policial. “Acho que no momento estou bem. Com o tempo me acostumei e ainda supero tudo o que me aconteceu, deixando a tristeza de lado. Obviamente, às vezes vem, mas é normal, né?”
Ouvidor da polícia na época do fato, o sociólogo Benedito Mariano acompanhou o caso Gabriella Talhaferro até sua saída do cargo, em fevereiro, e analisa como excessiva a ação dos policiais. Para ele, a garota merece ser indenizada após perder a visão.
“A ação policial que cegou de um olho a Gabriela foi abusiva e irresponsável. Não havia necessidade nenhuma de usar bala de borracha, porque o baile funk já havia se dispersado. O Estado tem obrigação de indenizar a família e punir o policial que efetuou o disparo”.
Atual ouvidor da polícia, o advogado Elizeu Soares Lopes se colocou, através de sua assessoria de imprensa, “à disposição da adolescente e sua família para um encontro, presencial ou virtual, para esclarecer quais medidas foram adotadas pela Ouvidoria e quais novas ações podem ser tomadas”.
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A gestão de Lopes também informou que “vai oficiar as autoridades responsáveis pelas investigações para reiterar os pedidos de uma apuração rápida e isenta deste caso”.
Questionada, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo encaminhou nota informando que o “caso segue em investigação por meio de inquérito policial instaurado pelo 44º DP (Guaianases), que colheu diversos depoimentos das partes envolvidas. A Corregedoria da PM encaminhou o Inquérito Policial Militar (IPM) ao Tribunal de Justiça Militar com solicitação de prazo para prosseguimento da apuração. Os dados seguem o sigilo imposto pelo artigo 16 do Código de Processo Penal Militar”.