Em decisão histórica Carlinhos Metralha foi sentenciado a dois anos de prisão em regime semiaberto pelo desaparecimento do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, em 1973; “aqueles que praticarem crimes contra humanidade vão responder por esses crimes, não importa quando”, afirma Andrey Borges de Mendonça, responsável pelo caso
O delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carlinhos Metralha”, foi condenado a dois anos e 11 meses de reclusão em regime semiaberto pela 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo por sequestro com agravante de gerar maus tratos ou grave sofrimento físico ou moral contra o ex-fuzileiro naval e corretor Edgar de Aquino Duarte, desaparecido desde junho de 1973, última vez que foi visto após ter sido preso dois anos antes, quando não mais atuava como militante político.
A sentença é considerada histórica pelo MPF (Ministério Público Federal), que ingressou com a ação penal, por entidades de direitos humanos e ativistas por responsabilizar penalmente um membro dos órgãos repressores do Estado durante a ditadura militar. Além de Carlos Augusto, o MPF também havia denunciado por sequestro o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) de 1970 a 1974, e o delegado Alcides Singillo, que esteve a frente do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). No entanto, Ustra e Singillo deixaram de responder à ação pois morreram, respectivamente, em 2015 e 2019.
O juiz federal Silvio César Arouck Gemaque, autor da condenação, acatou os argumentos do MPF ao considerar que foram praticados crimes contra a humanidade e que, por isso, são imprescritíveis e devem ser investigados e julgados conforme determinação de órgãos internacionais, sobrepondo-se à Lei da Anistia. “Sem dúvida nenhuma o caráter de um ataque sistemático de perseguição política, praticado durante o período de maior perseguição política pós-64 aplica-se ao caso retratado na denúncia, como bem salientou o representante do MPF em suas alegações finais, uma vez que o crime de sequestro imputado ao acusado pode ser caracterizado como desaparecimento forçado de pessoas, na esteira do que vem decidindo sistematicamente a Corte Interamericana de Direitos Humanos, como no caso Gomes Lund, Herzog e outros”, escreveu. Cabe recurso.
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À Ponte, o procurador da República em São Paulo responsável pela ação, Andrey Borges de Mendonça, afirma que o ineditismo da condenação de Carlos Alberto Augusto é justamente o reconhecimento das diretrizes internacionais para julgamento desses casos. “A sentença foi uma surpresa, uma decisão histórica, porque o judiciário sempre foi muito resistente em cumprir as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos e esse foi um dos poucos casos a avançar e o único a ter uma responsabilização penal”, explica.
“Isso é fruto dos tribunais serem muito nacionalistas e verem o direito internacional como ‘perfumaria’, que não deve ser respeitado, e porque a gente teve uma transição diferente de outros países da América Latina, em que não teve uma ruptura das instituições, o que foi reforçado pela decisão do Supremo e contribui para que visões antigas permaneçam”, prossegue.
“A decisão do Supremo foi feita à luz da Constituição, mas ela julga em abstrato porque ela não está analisando um caso de tortura ou de sequestro, e o que a gente demanda é que [o entendimento do STF] tem que passar por um outro filtro, que é a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, enfatiza Mendonça.
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Além disso, no Brasil, ainda não existe o crime de “desaparecimento forçado” e, no caso, a denúncia usou como tipificação mais próxima e que existe no Código Penal brasileiro o crime de sequestro. Para Belisário dos Santos Jr, advogado e membro da Comissão Arns e da Comissão Internacional de Juristas, é fundamental que exista essa tipificação. “O crime de sequestro, pela pena pequena que foi aplicada, não é considerado um crime grave para contemplar o caso porque não envolve tortura e assassinato, mas é imprescritível porque é um crime permanente, que continua acontecendo até que a pessoa desaparecida ou o corpo seja encontrado”, explica.
À Ponte, o procurador disse que vai recorrer da sentença em relação à pena que foi aplicada, já que a pena máxima para o crime de sequestro é de oito anos de reclusão, e ao pedido de cassação da aposentadoria de Carlos Augusto, que recebe como servidor público.
“A mensagem é de nenhum governante está acima da lei, aqueles que praticarem crimes contra humanidade vão responder por esses crimes, não importa quando, e isso é importante para o presente e para o futuro a não repetição de desrespeito aos direitos fundamentais. Não é um assunto do passado, é um tema do presente porque a tortura, o desaparecimento que ainda são presentes, não é por acaso porque nós temos um passado que não foi enfrentado e que reverbera até hoje”, conclui.
Exilado, preso e desaparecido
Edgar foi expulso da Marinha por participar de um movimento de marinheiros contra o golpe militar, em 1964, vendo-se obrigado a se exilar do país na época, viajando para México e Cuba. Ele foi absolvido das acusações a revolta em 1966. Dois anos depois, ele retornou ao Brasil e passou a trabalhar como corretor da Bolsa de Valores sob a identidade falsa de Ivan Marques Lemos e não se envolveu mais com militância.
Em junho de 1971, ele foi preso dias depois do cabo José Anselmo dos Santos, com quem dividia apartamento em São Paulo, e que havia citado o nome de Edgar em um depoimento. Anselmo tinha se tornado um agente infiltrado dos órgãos repressivos do Estado sob supervisão de Carlos Alberto Augusto, cujo apelido, segundo presos políticos, era por conta de andar com uma metralhadora pela carceragem. A relação de Edgar com Anselmo teria motivado a prisão.
No período, de acordo com depoimento de testemunhas que foram presas na época, Edgar foi visto em celas do DOPS e do DOI-CODI, entre 1971 e 1973. Uma das últimas pessoas que o viu foi a ativista e ex-presa política Amelinha Teles, 76 anos, que o conheceu nas dependências do DOPS. “Ele ficava em uma cela próxima à minha e eu ouvia os gritos quando batiam nele, davam socos, tapas. Eles [delegados] ameaçavam dele de morte”, lembra.
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Na época, conta que chegou a denunciar as violências sofridas por Edgar quando foi solta, ainda naquele ano. “A gente falou para o Virgilio [advogado Virgilio Egydio Lopes Enei, já falecido] o que estava acontecendo e quando ele chegava lá [no DOPS] para falar com o Edgar, o Singillo dizia que ele não estava lá e nunca mais conseguimos contato”, prossegue.
Amelinha e sua família foram torturados por Ustra, e conseguiu condená-lo pelo crime na Justiça, sendo o primeiro militar reconhecido como torturador no regime militar. Para ela, a condenação de Augusto representa uma forma de “recuperar a dignidade de todos os companheiros desaparecidos”, ainda mais num período em que o presidente do país, Jair Bolsonaro (sem partido), exalta explicitamente as ações da ditadura.
“Reconhecer e condenar um dos sequestradores que atuava a mando dos seus superiores é uma vitória grande em um momento de tanto retrocesso, esse é um caso emblemático e o Brasil é um país que convive com os crimes do Estado sem responsabilizar ninguém por isso. Esse é um passo para se construir justiça social”, pontua Amelinha.
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Da ação penal, impetrada em 2012, para o resultado deste ano, a condenação vai na contramão do que os tribunais brasileiros vêm decidindo, usando como base a Lei da Anistia. Em 2010, o STF (Supremo Tribunal Federal) entendeu que a Lei de Anistia colocava em pé de igualdade vítimas do regime militar e torturadores, por meio do julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 153, jurisprudência que vem sendo aplicada nesses casos.
Em 2019, a Justiça Federal negou reabrir o caso do assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado por Ustra e assassinado no DOI-CODI, em 1971. Também rejeitou, no ano passado, denúncia do MPF contra quatro militares pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. De acordo com nota do MPF, a maioria das 50 ações penais propostas pelo órgão “foi rejeitada ou está paralisada em varas federais de todo o país”.
Por outro lado, o Brasil já foi condenado duas vezes pela Corte IDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) por crimes da ditadura: no caso “Guerrilha do Araguaia” (Lund Gomes e outros), em 2010, e no caso de Vladimir Herzog, que teve o assassinato fraudado como suicídio pelos militares. A morte de Vlado foi julgada pela Corte em julho de 2018 e o país foi condenado por crime de lesa-humanidade por falta de investigação e punição dos responsáveis. Essa determinação da Corte apontou que a Lei de Anistia não pode ser usada para impedir a punição de graves violações contra os direitos humanos cometidas por agentes do Estado.
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