Para combater violência do Estado, organizações instalam câmeras em territórios vulneráveis de SP

    Movimentos sociais têm utilizado imagens de câmeras de seguranças e instalado aparelhos nas periferias como estratégia para provar ocorrências de violência policial e violações de direitos

    Para se proteger população recorre a instalação de câmeras nas comunidades | Foto: Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio

    No último domingo (3/4) a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio esteve na região do Grande ABC para realizar uma intervenção na comunidade da Favela do Amor, em Santo André (SP). A entidade acompanhou a instalação de câmeras em locais estratégicos da comunidade e colou lambes nos postes de todas as entradas da favela. O objetivo é claro: “Tentar garantir uma proteção no território que está cansado de conviver com abusos de policiais militares na quebrada”, como disse a articuladora da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, Katiara Oliveira.

    Na Favela do Amor, em que foram instaladas câmeras, morava Lucas Eduardo Martins dos Santos, um menino de 14 anos morto, segundo familiares, pela Polícia Militar, em novembro de 2019. Na ocasião, Lucas desapareceu após uma suposta abordagem policial e seu corpo foi encontrado, dois dias depois, em um dos braços da represa Billings. Os assassinos até hoje não foram identificados pela polícia.

    Homem instala câmera na Favela do Amor, no ABC Paulista | Foto: Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio

    De acordo com Katiara, a mãe de Lucas, Maria Marques Martins dos Santos, disse no dia da ação de instalação das câmeras que as ameaças contra familiares e moradores da Favela do Amor são constantes e se intensificaram a partir de dezembro de 2020. “Mais de uma vez soldados passaram gritando em sua porta perguntando ‘Cadê o Lucas?’, ela testemunhou crianças brincando na rua, correrem com medo após um soldado dentro da viatura falar a mesma frase para eles”.

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    Katiara ainda aponta que a ideia é que outras ações parecidas com essa possam ocorrer em comunidades da zona leste e da zona sul da cidade, com a colocação de placas e lambes. 

    Segundo ela, nesses locais ocorreram execuções pela polícia, prisões forjadas e ameaças contra uma defensora de direitos humanos e por isso cada ação tem uma especificidade, de acordo com as necessidades da comunidade. 

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    Para Katiara a intervenção é “importante como uma metodologia que se inaugura na Rede enquanto prática de estratégia local pautada na prevenção de violações e na produção de provas com a perspectiva de segurança comunitária. Vira uma referência para a quebrada procurar fazer denúncias, seja de prisão, de tortura ou de execução”.

    A mobilização em Santo André ocorreu em um momento em que 55 pessoas foram mortas pela Polícia Militar no estado de São Paulo apenas em fevereiro deste ano, conforme mostra reportagem da Ponte

    Violência da GCM em imagens

    A violência provocada por ações da Guarda Civil Metropolitana também foi alvo de intervenção e análise em um dossiê publicado pelo movimento A Craco Resiste. A organização mostrou através de imagens, o uso de bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta no rosto e socos sem motivação aparente contra dependentes químicos e pessoas em situação de rua.  

    As imagens são de câmeras de segurança posicionadas em direção à Praça Júlio Prestes e as Alamedas Cleveland e Dino Bueno, que formam o entorno da “Cracolândia”, como é chamada pejorativamente a região da Luz, no centro da cidade de São Paulo. Como relatado pela Ponte, as filmagens são de dezembro de 2020 a março de 2021. 

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    Como resultado dos indícios de violência desproporcional obtidos nas imagens, o Núcleo de Movimentos Sociais e População de Rua da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), enviou um ofício ao Ministério Público Estadual, nesta segunda-feira (5/4), para que o órgão abra inquérito para apurar o caso, destacando que as ações ocorreram “nesta época tenebrosa da pandemia do Coronavírus (Sars-CoV-2), onde as pessoas devem mais ser protegidas do que açoitadas pelo poder público”.

    De acordo com a antropóloga e militante do movimento Roberta Costa, a iniciativa partiu do diálogo dos moradores da região com A Craco Resiste. “Os moradores que estão ali vendo o cotidiano acham um absurdo a violência que acontece ali. Eles entraram em contato com a Craco Resiste para denunciarmos e publicizarmos as imagens que eles fazem. Isso acontece constantemente e foi assim que surgiu a ideia desse dossiê por causa de um morador da região, que não é da Craco Resiste mas estava indignado. Ele entrou em contato com a gente e falou das imagens para denunciarmos”.

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    Ela ainda reitera que as imagens provam que a violência é inquestionável, e que segundo ela faz parte de uma política pública da prefeitura. “Quando conseguimos filmar, não tem como se questionar a violência ali, a truculência e a desumanidade, inclusive a quantidade de vezes que se repete de várias formas. É uma política pública da prefeitura institucionalizada. Isso precisa ser dito e precisa acabar”. 

    Na visão de Victor Ribeiro, diretor da organização Witness no Brasil, as câmeras são ferramentas cruciais para defender direitos, denunciar violações, tirar esses casos sistemáticos de violência do desconhecimento público e trazer visibilidade. Mas também são um instrumento determinante quando usadas para fins jurídicos. “Cada vez mais vemos os vídeos sendo usados nos processos como evidência. No caso da Cracolândia, em que a rotina de agressões do Estado contra as pessoas se dá sistematicamente, esse vídeo-dossiê da Craco Resiste é uma peça fundamental para evidenciar tudo que as organizações que atuam na região denunciam por anos”.

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    Além disso, ele lembra que a iniciativa da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio revela como a população precisa criar formas de se defender na ausência do Estado. “Tanto no fluxo quanto nas quebradas, a ação de instalar câmeras de segurança para monitorar a violência policial deixa bem claro que a população sabe a força que o vídeo tem, e que muitas vezes é o único recurso para se proteger”.

    Outro lado

    À Ponte, a Prefeitura de São Paulo afirmou por meio da Secretaria Municipal de Segurança Urbana, que as imagens fornecidas pela A Craco Resiste “não permitem uma análise apropriada, pois não mostram toda a dinâmica das ocorrências, mas apenas um recorte da ação dos guardas”. 

    A nota ainda diz que a Corregedoria da Secretaria Municipal de Segurança Urbana apura situações em que há desvio de conduta ou protocolo de atendimento, impondo medidas disciplinares específicas. “Os agentes em campo devem obedecer estritamente aos protocolos estabelecidos para uso progressivo da força. Para que esta atuação seja acolhedora e humanizada, os agentes participam de capacitações diversas, em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e com a Defensoria Pública, aprofundando a compreensão de legislação específica e conceitos de direitos humanos”.

    O órgão também disse que a “Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) distribui mil refeições diárias na região. Já a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania mantém pontos do programa Rede Cozinha Cidadã na Luz, que distribuiu mais de 2,4 milhões de marmitas em toda a cidade durante a pandemia.  Há também um banheiro montado na Praça Júlio Prestes – da ação Vidas no Centro, que já contabilizou mais de 181 mil atendimentos neste perímetro – e pias para higienização das mãos instaladas próximo à Praça Princesa Isabel, endereços do entorno do quadrilátero onde há o fluxo de usuários”.

    Procurada pela Ponte, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) do governo João Doria (PSDB) disse em nota que o caso de Lucas é investigado, sob segredo de Justiça, pelo Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) de Santo André. “A Polícia Militar instaurou IPM para apuração dos fatos e os envolvidos estão afastados das atividades operacionais. Mais informações não serão divulgadas devido ao sigilo judicial”.

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