Moradores da ocupação Esperança, em Osasco (SP), contam que policiais militares ameaçaram testemunhas de morte e impuseram toque de recolher no bairro
Os galpões de empresas vão ficando para trás conforme se passa pela estrada de Portugal, em Osasco, cidade de origem industrial na Grande SP. Algumas pessoas passam pelo chão de terra, pedras e buracos enquanto o carro segue seu caminho por mais umas centenas de metros até chegar na Ocupação Esperança, existente desde agosto de 2013. Até a terça-feira (6/5), era um local tranquilo, segundo os quem está ali desde o começo da ocupação. Às 6h daquele dia, no entanto, a Polícia Militar entrou na comunidade e matou dois jovens negros, Lucas Correia da Silva, de 23 anos, e seu primo, um rapaz identificado apenas como Leonardo (os vizinhos não tinham sua identificação completa e a Secretaria da Segurança Pública do governo João Doria se recusou a informar).
Os moradores têm medo de se identificar. Falam, mas só com a garantia de que seus nomes e vozes serão preservados. Alguns ouviram a ação policial, que terminou em duas mortes, como se fosse dentro da própria casa, acordados pelo barulho da perseguição. Boa parte das casas têm paredes e portas de madeira. Assim, os sons ficam mais nítidos.
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“Os policiais atiraram pelo menos 20 vezes. Um deles [os jovens baleados] suplicava para não morrer. Deu para ouvir os PMs dando uma leva de tiros e, depois de um pouco de silêncio, dar mais dois ou três”, conta uma pessoa que ouviu a ação. “Eles queriam saber onde tinha droga, para onde os outros dois que correram foram. Como os moleques não falaram…”
A Ponte esteve no local em que Lucas e Leonardo morreram. Parte de suas roupas ainda estava lá: duas blusas escuras e uma calça bege. Uma das jaquetas estava parcialmente queimada. Todas as peças apresentavam marcas de tiros. A calça ainda tinha sangue, principalmente na parte interna destinada à perna direita, onde havia um buraco de bala.
Os moradores mostraram o local em que os corpos estavam, no topo da ocupação. A área fica depois de um campo aberto onde as pessoas deixam seus carros. Dali dá para ver a Rodovia Anhanguera, que liga a capital paulista ao interior do estado. Uma mata separa a ocupação da rodovia e o local das mortes é uma esquina, com um barraco que foi arrombado pelos policiais, de acordo com quem acompanhou o caso.
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Além das mortes, os relatos apontam para a presença da PM durante toda a terça-feira, até 17h. Os policiais diziam estar em busca de drogas e armas e que estariam averiguando uma “denúncia anônima”. Invadiram casas e barracos sem apresentarem mandado com autorização judicial. Voltaram na manhã desta quarta-feira. Com ameaças, disseram que voltariam às 18h de hoje e impuseram um toque de recolher, obrigando todos a estarem dentro de casa quanto retornassem. Os policiais não apareceram, mas o medo que impuseram permaneceu na comunidade.
“Entraram na minha casa, era 9 horas. O policial chegou com o fuzil e me apontou, mandou eu deitar com mão na cabeça na minha sala. Ficou procurando droga. ‘Cadê a arma? Tem uma [pistola] 380 que eu sei’, ele dizia. E me ameaçou: ‘Viu o que aconteceu com seus amiguinhos? Você já é arquivo morto’. Imagina ouvir isso dentro da sua casa”, revela um morador, com medo de ser identificado.
Ele conta que ainda levou três tapas no rosto quando respondeu ao policial que já havia sido preso por tráfico de drogas. “Eu saí, já cumpri minha pena. Já foi, mano. E os caras ainda pesam”, afirma. “Ficaram dando empurrão com o fuzil, pontada no meu ombro. Estou até andando meio torto pela dor que ficou”.
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Outra pessoa também ouviu as mesmas perguntas. “Foi assim: ‘Tem passagem? Cadê a droga? Onde estão os outros dois que fugiram?’ Eu disse que não sabia de nada, que não sabia. Tiraram foto da minha cara, pegaram meu celular e me obrigaram a dizer a senha. Você vai recusar?”, conta outro homem.
O clima seguia tenso quando começou a cair a chuva, às 16h de hoje. Em reunião, os moradores pensavam em formas de mostrar que aquela situação não estava correta. Receberam integrantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em Osasco. Um assessor do ouvidor da Polícia de São Paulo, Elizeu Soares Lopes, entrou em contato e pediu informações, conta um morador.
Segundo informado pela assessoria da Ouvidoria, o órgão está reunindo informações para “definir quais medidas serão adotadas”. Confirmou a conversa entre um assessor do ouvidor e o advogado dos moradores, que pretendem registrar um boletim de ocorrência descrevendo as violações supostamente cometidas pelos policiais. A Ouvidoria afirma que espera a confecção do boletim antes de instaurar procedimento para acompanhar as investigações.
As informações compartilhada pelos moradores apontavam que os dois mortos eram primos. Lucas vivia na ocupação, enquanto Leonardo, morador da Vila Menck, também na periferia de Osasco, estava ali para visitá-lo. Ambos terão os corpos levados à Bahia, seu estado natal, para seus familiares velarem antes do enterro.
A revolta permanece. Sem o retorno prometido pelos policiais, os moradores decidiram se expressar. Pintaram uma faixa em que cobram o mínimo de dignidade por parte do braço armado do Estado.
O que diz o governo
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, administrada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre a ação policial na Ocupação Esperança e os relatos de truculência feitos pelos moradores.
Em nota, a pasta se limitou a dizer que “todas as circunstâncias relativas aos fatos são investigadas por meio de Inquérito Policial Militar instaurado pelo batalhão que atende a área dos fatos e pelo Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa de Osasco. As diligências prosseguem”.