Cláudio Castro amplia mortes em favelas do Rio como ‘política do espetáculo’, diz especialista

    Operações policiais saltam no estado após governador interino assumir governo, aponta Instituto de Segurança Pública. “São instrumento de visibilidade política”, diz Daniel Hirata, pesquisador da Universidade Federal Fluminense

    Operações como as que usam helicópteros estão proibidas no RJ | Foto: Vladimir Platonow/Agência Brasil

    Apesar de proibidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em junho deste ano, as operações policiais nas favelas e periferias do estado do Rio de Janeiro explodiram em outubro de 2020. Segundo estudo GENI (Grupos de Estudos dos Novos Ilegalismos) da UFF (Universidade Federal Fluminense), que cruzou dados próprios com os dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), o aumento das operações de setembro para outubro dobrou: 19 operações em setembro contra 38 em outubro.

    O aumento das operações policiais foi acompanhado de um crescimento bastante significativo da letalidade em operações policiais: 8 em cada 10 operações resultaram em mortes no mês de outubro. São cinco vezes mais mortes: em setembro foram registradas 41 mortes e, em outubro, 125.

    Para o sociólogo Daniel Hirata, pesquisador da UFF, vários são os motivos para o aumento das operações e da letalidade policial nesse período, mas ele destaca um: a chegada de Cláudio Castro (PSC) ao governo do Rio de Janeiro, no lugar de Wilson Witzel (PSC), afastado temporariamente do cargo de governador após abertura do pedido de impeachment, em setembro.

    “Em outubro, o Cláudio Castro assumiu o governo do estado do Rio de Janeiro, depois do afastamento do ex-governador Wilson Witzel, nomeou o novo secretário da Polícia Civil, Allan Turnowski. Logo em uma das primeiras entrevistas o governador disse que as polícias do Rio de Janeiro entrariam em todas as comunidades do Rio de Janeiro”, avalia o pesquisador.

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    O descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu as operações policiais nas favelas do Rio durante a pandemia com a chamada ADFP das Favelas, explica Hirata, acontece pelo fato de as “operações policiais serem instrumento de visibilidade política”.

    “Nessa política de espetáculo as operações policiais geram dividendos eleitorais, esse viés do populismo penal, da lei e da ordem, e são também uma maneira de grupos dentro da polícia instrumentalizar interesses próprios”, completa.

    Em situações como essa, continua Daniel Hirata, é necesária uma atuação mais contundente do Ministério Público, “transparente em relação aos critérios que estão sendo justificados para a ocorrência de ações policiais” e o uso “não é só de ações repressivas”, mas de inteligência da Polícia Civil.

    Leia a entrevista completa

    Ponte – Como você enxerga esse aumento expressivo de operações?

    Daniel Hirata – O que pudemos identificar foi o aumento bastante expressivo das operações policiais no mês de outubro, em que tivemos o dobro das operações em outubro em relação às operações de setembro, e também que as operações se tornaram mais letais. Não foi só o aumento das operações, mas o aumento de operações com aumento das notificações de mortes.

    No mês de setembro, 3 em cada 10 operações tinham notificações de mortes. Em outubro saltou para 8 em cada 10 operações com notificações de mortes. As operações não só cresceram em número, como também estão mais letais. Esse número é corroborado pelos dados do ISP, que também registrou um número grande de mortes decorrentes de agentes do Estado. As operações policiais são as circunstâncias aonde a letalidade policial ocorre e isso não é surpreendente, essa convergência dos nossos dados com os dados do ISP é bastante expressiva.

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    Nesse mês de outubro percebemos também um aumento tanto dos crimes contra a vida quanto dos crimes contra o patrimônio. Os crimes contra a vida aumentaram 55%, os crimes contra o patrimônio aumentaram 9% e particularmente houve um aumento de 20% dos homicídios dolosos. Por que é importante colocar esses dados juntos? Porque tivemos o aumento das operações policiais e, decorrente desse aumento das operações, o aumento da letalidade policial, mas isso não foi acompanhado de uma diminuição dos registros de ocorrências criminais.

    Para mim o bem mais precioso na segurança pública sempre vai ser a vida e a preservação da vida, mas há quem justifique a violência policial como método de controle do crime e os dados não estão corroborando essa leitura. Os dados mostram que temos o aumento das operações policiais, o aumento da letalidade policial e o aumento das ocorrências criminais.

    Ponte – Há alguma explicação para esse aumento?

    Daniel – Essa é a pergunta que todo mundo quer responder. Em outubro, o Cláudio Castro (PSC) assumiu o governo do estado do Rio de Janeiro, depois do afastamento do governador Wilson Witzel (PSC), nomeou o novo secretário da Polícia Civil, Allan Turnowski. Logo em uma das primeiras entrevistas o novo governador disse que as polícias do Rio de Janeiro entrariam em todas as comunidades do Rio de Janeiro.

    Me parece que ele não estava se referindo a uma dificuldade operacional das polícias, ele estava se referindo às decisões judiciais que restringem as operações policiais. Nessa entrevista, ele faz menção ao Complexo da Maré, falando que há dois anos não se fazia operação policial lá, o que não é verdade, temos registros muito definidos, inclusive nos relatórios das polícias de operações nos últimos dois anos, mas ele estava dizendo “Maré” porque lá tem uma ação civil-pública limitando operações desde 2016.

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    Então o governador estava dizendo que não iria cumprir decisões judiciais. É assim que eu leio as declarações do governador, que foram seguidas de declarações do secretário Allan Turnowski de que ele gostaria de colocar tanques para fazer ocupações de favelas no Rio de Janeiro. Essas declarações são fortes e vêm do comando da polícia, indicando que eles não estão dispostos a fazer cumprir a decisão do STF de suspender as operações policias durante a pandemia.

    Ponte – A Polícia Civil do Rio tem um diferencial né?

    Daniel – Sim, a CORE [Coordenadoria de Recursos Especiais], que é antiga, é anterior ao BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais]. A CORE é uma unidade de operacionalização da Polícia Civil. O “caveirão voador”, o helicóptero blindado que aterroriza as comunidades e favelas no Rio de Janeiro, é da Core.

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    É uma espécie de espetáculo porque as operações policiais tão têm se demonstrado eficazes para o controle do crime, mas é uma política associada aos símbolos da lei e da ordem, do punitivismo e que, no final das contas, vão incidir sobre a população mais pobre, negra e dos habitantes de favelas e periferias do Rio de Janeiro.

    Ponte – Diante desse cenário, como as polícias têm descumprido as determinações do STF?

    Daniel – Tem várias razões. As operações policiais são instrumento de visibilidade política, de gestores públicos e agentes policiais, se justificam por demandas de recursos. Nessa política do espetáculo as operações policiais geram dividendos eleitorais, esse viés do populismo penal, da lei e da ordem, e são também uma maneira de grupos dentro da polícia instrumentalizarem interesses próprios. Várias coisas justificam a existência das operações policiais e o descumprimento das determinações do STF que são muito complicadas.

    Algo que deve ser destacado é que o Ministério Público do Rio de Janeiro tem sido muito tímido no controle externo das polícias. Se tivéssemos um MP mais atuante e transparente em relação aos critérios que estão sendo justificados para a ocorrência de ações policiais podíamos ter um controle maior sobre essas ações. São muitas coisas que convergem para esse descumprimento e que vão contra o que a gente acredita que seja uma boa política de segurança pública. Os resultados estão aí para mostrar isso.

    Ponte – E o que precisa ser feito para impedir essa alta letalidade?

    Daniel – É importante reforçar o controle interno e externo das polícias, não tem outra alternativa. Além disso, é preciso exigir que se estabeleçam protocolos ainda mais objetivos de como essas operações têm de ser feitas. Já temos protocolos, que, inclusive, não são ruins, feitos pelas polícias e pela antiga Secretaria de Segurança Pública, mas eles não são seguidos.

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    Esse é um ponto que valeria ter um investimento de formalização das ações da polícia para que essas operações tenham uma letalidade menor. A gente deseja que as ações da polícia sejam justificadas com balanços sobre o que vem sendo feito. Mas nós temos uma autonomia das polícias, desde da extinção da Secretaria de Segurança Pública, que está cada vez maior. Tudo isso converte para o aumento da letalidade policial.

    Ponte – É possível mudar?

    Daniel – É possível, mas, para que se mude as coisas, é necessário vontade política, o que não parece ser o caso da atual gestão.

    Ponte – Quando se fala na alta letalidade do Rio de Janeiro, muito se fala do tráfico e das milícias. Até que ponto são as polícias ou esses outros grupos?

    Daniel – Esses grupos têm impacto na letalidade do Rio de Janeiro. A realidade do Rio é específica, tem a malha urbana recortada por grupos armados que têm esse controle territorial muito bem definido e que disputam territórios. Isso é um fator fundamental para entender o motivo de o Rio de Janeiro ter tantas mortes. Não há muito o que se esperar de grupos criminais, mas podemos esperar uma mudança de atitude das polícias. As polícias do Rio de Janeiro respondem, há alguns anos, por uma porcentagem muito grande do total de mortes que acontecem no estado. Em 2019, do total de mortes, 30% foi decorrente de ações das polícias. É um número muito grande mesmo para a realidade do Rio de Janeiro.

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    Ainda que o cenário do Rio seja muito complicado por conta do controle territorial de grupos armados, que é bem diferente de outros lugares, o que podemos exigir e ter alguma expectava é em relação ao poder público e as polícias, não dá para esperarmos que os grupos criminais mudem a postura deles, não tem como influirmos ali. Então esse é o tamanho do desafio e da responsabilidade para que se mude as coisas aqui no Rio de Janeiro.

    Ponte – A corrida eleitoral teve algum impacto nesse aumento da letalidade?

    Daniel – É muito difícil dizer ou ter alguma objetividade nisso. Houveram operações antes das eleições, de enfrentamento das milícias, para garantir o próprio processo eleitoral. Eu acredito que as operações não são instrumentos adequados e eficientes para fazer esse enfrentamento com as milícias.

    As operações já eram ineficientes para o enfrentamento das facções de tráfico de droga e com as milícias elas são ainda mais ineficientes. Mas é possível, dado que as operações são ineficientes e, para mim, elas fazem parte esse engenharia do populismo penal que, no final das contas, tem mais a ver com resultados eleitorais do que com uma efetividade de segurança pública, é possível que as operações também tenham sido feitas com certo viés eleitoral. Mas preferimos falar com base nos números.

    Ponte – Qual seria, então, o caminho ideal para a política de segurança pública do Rio de Janeiro sem essa letalidade tão grande?

    Daniel – Em primeiro lugar é, reforçando, o controle interno e externo das polícias, ou seja, um controle das corporações e um controle do Ministério Público. É importante ter um plano de redução da letalidade policial, isso é fundamental de ser feito nesse momento.

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    NEsta quinta (26/11), inclusive, houve um despacho do STF cobrando informações sobre o cumprimento da decisão da Corte Interamericana em relação ao caso de Nova Brasília, especificamente em relação ao plano de redução da letalidade policial. Se isso não é suficiente, já é um bom início: criar metas, criar algum tipo de instrumento de controle para que essa letalidade baixe. A preservação das vidas é o mais importante na segurança pública.

    Ponte – Mais investigação funcionaria?

    Daniel – Claro. É investigação, atuação rotineira da polícia. A parte investigativa é muito mais eficiente para o enfrentamento de grupos armados no Rio de Janeiro do que as operações policiais. Um outro instrumento não repressivo que seria bastante eficiente no enfrentamento das milícias é a regulação de mercados legais e serviços públicos como transporte público e o mercado imobiliário, que são áreas de atuação intensa e tradicional das milícias, que se alimentam dessa zona estreita da legalidade e da ilegalidade que habita na regulamentação de terras, autorização das obras. Isso enfraqueceria um dos pontos importantes de poder econômico, e, portanto, militar e político, das milícias. Não é só de ações repressivas que a segurança pública precisa, a inteligência é fundamental.

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