Após tribunal paulista negar duas vezes liberdade para mãe de cinco filhos que furtou R$ 21,69 em mercadorias de um mercado, ministro concedeu habeas corpus e trancou inquérito 11 dias depois de caso ser revelado pela Ponte
O ministro Joel Ilan Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça, concedeu liberdade para uma mãe de cinco filhos que furtou produtos de mercado avaliados em R$ 21,69 porque estava com fome. O documento da decisão ainda não foi publicado, mas consta na movimentação do processo que o pedido feito pelo defensor Diego Polachini, da Defensoria Pública, foi acatado às 22h10 desta terça-feira (12/10). O caso foi revelado pela Ponte em 1 de outubro e a prisão aconteceu em 29 de setembro.
Paciornik também determinou o trancamento do inquérito, ou seja, que a investigação do caso não prossiga. Ele considerou o princípio da insignificância, já que a necessidade da mulher não causou um grande dano ao mercado, tendo em vista que os alimentos furtados equivaliam a menos de 2% do salário mínimo. Essas informações foram publicadas pela assessoria do tribunal.
No STJ, fora esse, foram feitos mais dois pedidos de habeas corpus por advogados e, na segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, a promotora Celeste dos Santos, que não atua no caso, também fez uma solicitação ao verificar que nos processos anteriores, a mulher tinha depressão e dependência química, argumentando que não faria sentido ela ser mantida no cárcere caso fosse comprovada a necessidade de tratamento médico. Esses outros pedidos não foram julgados.
Até então, a Justiça paulista negou duas vezes a possibilidade de que a mulher de 41 anos pudesse responder o processo em prisão domiciliar, que é uma alternativa prevista no artigo 318 Código de Processo Penal e ratificada em determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) para gestantes ou mães com filhos de até 12 anos, para crimes sem violência ou grave ameaça.
“Punição da miséria”
A 6ª Câmara de Direito Criminal ratificou, em 7 de outubro, os argumentos dados pelo promotor Paulo Henrique Castex e pela juíza Luciana Menezes Scorza, para manter a prisão preventiva (sem tempo determinado), que enfatizaram que a mulher praticou furtos outras vezes, que a prisão preventiva (sem tempo determinado) se faz necessária para garantir a ordem pública e por ela representar um “risco à sociedade”, além de ter informado que os filhos estavam sob os cuidados da avó.
No voto do acórdão (decisão de um grupo de magistrados), acompanhado pelos desembargadores Eduardo Abdalla e Ricardo Tucunduva, o relator Julio Caio Farto Salles, que ganha R$ 59 mil de salário líquido, escreveu que a mulher “se encontrava em cumprimento de pena em regime aberto quando do cometimento do delito em questão, tudo a desvendar índole indiscutivelmente voltada à delinquência ou persistência na senda do crime, revelando-se a segregação imprescindível para se obstaculizar risco real de novas recidivas, considerado o caráter nocivo próprio daqueles que fazem dos delitos seu modo de vida”. E que ela era culpada de ficar longe dos filhos por ter cometido o crime.
À Ponte, o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, criticou que o sistema de justiça não auxilia pessoas em situação de vulnerabilidade social, o que gera um círculo vicioso. “É a criminalização e punição da miséria, quando a Justiça não reconhece que uma pessoa furtou porque estava com fome”, enfatiza. “Os fabricantes da pobreza são inatingíveis e é como a frase do Eduardo Galeano: ‘a justiça é uma serpente que só morde os pés descalços’”.
Momento da prisão
O supervisor do estabelecimento viu através das câmeras de segurança do mercado Oxxo, na zona sul da capital, a mulher colocando os produtos dentro de uma sacola e saindo sem pagar. No mesmo momento, uma viatura da Polícia Militar passava pelo local e uma funcionária chamou os policiais. A mulher tentou fugir, mas foi alcançada pelos PMs.
Quando foi apresentada no 27º DP (Campo Belo), a acusada estava com escoriações na cabeça. Segundo a versão dada pelos policiais e que consta no boletim de ocorrência, os ferimentos teriam ocorrido porque, na fuga, ela teria caído duas vezes. A Defensoria Pública contesta esta versão. “A empresa vítima não relata qualquer dessas quedas e a paciente permaneceu em silêncio. Ressalte-se que a sua lesão ocorreu na testa, não sendo compatível com uma suposta queda, em que as lesões ocorrem, via de regra, nas mãos e joelhos”, descreveu Polachini.
“Portanto, sem a realização da audiência de custódia e sem qualquer documento médico a atestar a integridade física do flagrado, não é possível concluir pela higidez do ato de prisão, o que a torna ilegal”, concluiu o defensor.
No acórdão, o relator Farto Salles justificou que a ausência da audiência de custódia está embasada na suspensão decretada pelo Tribunal de Justiça por causa da pandemia. Esse tipo de audiência foi retomada em São Paulo a partir de 4 de outubro.
Reportagem atualizada às 13h52, de 13/10/2021, para inclusão de informações da assessoria do STJ.