‘Pra quem é preto como eu, é impossível não ter algum atrito com a polícia’, conta Cláudio Aparecido da Silva em sua primeira entrevista, afirmando que vai apostar no diálogo: ‘A gente não vai tratar a Secretaria da Segurança Pública como inimiga’
O novo ouvidor das Polícias de São Paulo teve o primeiro embate com um PM aos 9 anos de idade, quando morava na rua e acabou apreendido após xingar um policial que o menosprezou. Depois desse, vieram outros. Muitos. “Eu já sofri racismo, já sofri violência policial. Já assinei boletim de ocorrência de desacato, em ocasião inclusive que eu chamei a polícia”, conta.
A causa desses embates está na pele e no endereço de Cláudio Aparecido Silva, o Claudinho Silva, 46 anos, militante do movimento negro e morador da Favela Monte Azul, no Jardim Santo Antônio, zona sul da capital paulista, que foi nomeado na véspera de Natal para o comando da Ouvidoria das Polícias de São Paulo. “Pra quem vive na periferia, quem é preto como eu, quem mora em favela, é impossível em algum momento da vida não ter algum atrito com a polícia”, afirma o novo ouvidor, na primeira entrevista após ser nomeado, para a Ponte Jornalismo.
Como ouvidor, contudo, Claudinho afirma que vai apostar tudo no diálogo. “A gente não vai tratar a polícia e a Secretaria de Segurança Pública como inimigas do povo, nem inimigas nossa”, afirma. Promete manter uma atuação muito próxima aos movimentos sociais e propõe ampliar e modernizar o atendimento da Ouvidoria, por meio de serviços de comunicação on-line e de convênios com a Ordem dos Advogados do Brasil para o recebimento de denúncias fora da capital.
Seus outros objetivos incluem firmar um Termo de Ajustamento de Conduta para garantir que atos racistas sejam de fato tratados como crimes inafiançáveis e pressionar o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) para que o uso de câmeras corporais seja estendido a todos os policiais militares.
Na entrevista, Claudinho também fala de sua vida e detalha sua trajetória na militância e também no hip hop, em que assessorou artistas como Dexter e Gog. E conta como teve a ideia de presentear o Papa Francisco com um exemplar do álbum Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais, durante uma visita do então prefeito Fernando Haddad (PT) ao Vaticano.
Ponte – Como foi a sua trajetória de vida até chegar nesse momento, em que agora você assume como ouvidor das Polícias de São Paulo?
Claudinho Silva – Cara, a minha trajetória de vida é interessante. Eu sou o quinto filho de uma mãe negra, solteira, semianalfabeta, que teve sete filhos. Eu sou o primeiro homem. A minha irmã mais velha chama Ana Cláudia. A minha segunda irmã chama Claudimara, a terceira, Rose Cláudia, a quarta filha da minha mãe chama Cláudia e eu chamo Cláudio Aparecido porque “apareceu um homem”.
Ponte – Onde você nasceu?
Claudinho – Eu nasci em São Paulo, no Hospital Santa Marta, em Santo Amaro. Quando a minha mãe engravidou do sétimo filho, o meu pai abandonou ela e aí minha mãe teve que optar por trabalhar ou cuidar dos filhos. Ela mandou a gente pra Vitória, no Espírito Santo, pra minha vó cuidar. A gente tinha uma vida muito dura. Morava no Bairro da Penha. É o bairro mais violento da capital, ainda hoje, considerado “território do mal”. A gente morava a 365 degraus, na penúltima casa do morro. Minha mãe aqui em São Paulo trabalhava e mandava todo mês uma grana pra minha vó, mas esse dinheiro era insuficiente e a gente tinha que ir pra luta. Ia pra a feira catar embaixo das bancas, ia pedir nas casas. A água não subia todos os dias e a gente tinha que carregar água morro acima. Não conseguia nem pagar a luz, nem cozinhar no fogão a gás, então a gente rodava Camburi, que é uma região nobre lá que estava se desenvolvendo, e ia nas obras buscar restos de madeira pra cozinhar no fogão a lenha. Até hoje eu consigo equilibrar um feixe de lenha ou uma lata d’água na cabeça. Isso é aprendizado pra vida toda. E aí, numa certa ocasião, acho que eu tinha mais ou menos 9, 10 anos de idade, eu fugi de casa.
Ponte – Por quê?
Claudinho – Porque eu aprontei uma na escola e minha vó foi chamada lá pela diretora. A minha vó me deu uma boa de uma surra e aí eu fugi de casa. Morei na rua nas ruas em Vitória e lá eu conheci a Fesbem, a Fundação Espírito-Santense do Bem-Estar do Menor [atual Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo, o Iases], e o juiz da Vara da Infância e Juventude obrigou a minha mãe a me trazer pra São Paulo.
Ponte – Como que você foi parar na Fesbem?
Claudinho – Eu rodava Vitória inteira, mas tinha um lugar que eu ia, especialmente nos feriados prolongados, que era a rodoviária. Eu tomava banho e pedia dinheiro lá. Como eu andava sozinho na rua, numa certa ocasião um grupo de outros meninos de rua me tomou o dinheiro que eu tinha ganhado. Fui reclamar com a polícia e aí o policial me menosprezou, olhou pra mim: “ah, vai pra lá, molequinho”. Aí eu xinguei ele. Eu saí andando, mas quando vi eu estava cercado por policiais. Fui colocado num camburão e encaminhado pro Juizado de Menores e consequentemente pra Fesbem. Minha mãe não podia ir, porque trabalhava numa metalúrgica em Santo Amaro, meu cunhado foi, me pegou lá na Fesbem e me trouxe pra São Paulo. Vim morar aqui onde eu moro ainda hoje, na Favela Monte Azul. A gente vivia numa condição bastante difícil e fui trabalhar na rua. Engraxei sapato uns oito anos da minha vida, até os 18 anos, quando consegui meu primeiro emprego formal. Eu guardava a minha caixa de engraxar sapatos num salão de cabeleireiro chamado Jô Black Power, em Santo Amaro. Inclusive eu corto o meu cabelo lá até hoje. Todo dia eu descia a rua Padre José de Anchieta e engraxava o sapato de vários policiais do 11º DP. Lembro bem de todos eles.
Ponte – Você ficou amigo dos policiais de lá?
Claudinho – Eles cuidavam de mim. Me davam presentes. A própria Nívea, uma escrivã, já me deu tênis. Tinha um outro policial chamado Vanderson Ferreira, que era um negrão que eu me identificava muito com ele. E curiosamente foi engraxando sapato no 11º DP que eu despertei pra questão do racismo.
Ponte – Como foi isso?
Claudinho – O Ferreira era o chefe dos investigadores e tinha mania de dar uma de durão. Ele brincava comigo falando alto: “pô, dá uma caprichada aí”. Um dia ele fez uma brincadeira dessa e chegou uma pessoa na porta da sala dele e falou assim: “Nem pra isso essa raça serve”. Aí foi a minha virada de chave pra questão do racismo. Eu fiquei atordoado e comecei a ir atrás de informação. Encontrei um dia um panfleto na rua de uma campanha do Movimento Negro Unificado, o MNU. As reuniões aconteciam todas as quintas-feiras no Sindicato dos Radialistas, na Bela Vista, uma campanha que chamava “Mano, Não morra, Não mate!”. Inclusive a galera do Racionais colava lá. Curiosamente quinta-feira era o dia mais ruim da graxa, então eu estava em todas as reuniões.
Ponte – E com isso começou a sua militância no movimento negro?
Claudinho – No movimento negro e consequentemente conhecendo os maiores expoentes do rap, despertando também essa coisa do hip hop.
Ponte – Você ficou bastante próximo do Dexter também, né?
Claudinho – O Dexter surge na minha vida a partir de 2000. Em 1996, fui ganhar uma grana entregando panfleto em época de eleição pra uma candidata que apareceu aqui na época, se eu não me engano era do PSDB. Aí um amigo meu do futebol disse: “Você não pode estar com esse pessoal aí, não, tem que estar com a gente”. Em 98 esse cara me convidou pra me filiar no PT. Eu fui pro PT já com essa identidade bem construída da militância no movimento negro. Sempre fui bom de oratória porque na rua eu lia muito. Eu andava sozinho, não tinha com quem dividir o tempo e dividia com a leitura. Em 2003 fui convidado pra participar do governo da Marta Suplicy (PT), num programa de segurança alimentar chamado Banco de Alimentos. Aí numa determinada ocasião eu recebia o Afro-X [que, ao lado de Dexter, havia criado em 1999 o grupo de rap 509-E, que tirou seu nome da cela onde os dois se conheceram, no Pavilhão 7 da Casa de Detenção do Carandiru]. No acordo que ele queria fazer, a Prefeitura cedia o Anhembi pra eles fazerem um show e cobravam um quilo de alimento que ia pro Banco de Alimentos. A partir dali eu estabeleci uma relação de amizade com o Afro-X, com o irmão dele, o Bad, e também com o Dexter. Só que as conversas com o Dexter eram difíceis porque ele estava preso. Passou mais ou menos um ano, houve um atrito entre ele e o Afro-X e fiz a opção de caminhar com o Dexter. Não que eu tomei lado de nenhum dos dois, porque até hoje eu não entendo a briga deles, mas porque eu percebi que o Dexter precisava mais de mim do que o Afro-X. Nessa altura eu já estava lotado no gabinete do deputado estadual Vicente Cândido (PT) e comecei a cuidar das coisas do Dexter.
Ponte – Que função que você desempenhou com o Dexter?
Claudinho – Eu cuidava de tudo, todos os interesses dele aqui. Até a arte do Oitavo Anjo, nome de uma música de sucesso e da produtora dele, quem levou para o Dexter aprovar no presídio de São Vicente fui eu. Assim como eu também ajudei a conseguir advogado para os processos do Dexter. Lembrei de um advogado do movimento negro, o Hedio Silva Junior. Ele não queria pegar a causa porque estava com muita coisa na época. Aí o Dexter mandou “só” o Edi Rock e o [Mano] Brown para um almoço comigo e o doutor Hédio. Ele pegou o caso e conseguiu fazer uma unificação das penas e reduzir em 20 anos a cadeia do Dexter. Assim que ele saiu da cadeia, casou e eu fui convidado pra ser padrinho de casamento dele. Então a minha relação com o Dexter é de muita proximidade. Fiz toda uma movimentação para tentar uma audiência do Brown e do Gog pra pedirem para o Lula o perdão de pena para o Dexter, durante uma conferência de igualdade racial em Brasília. Não conseguimos audiência com o Lula, mas nessa ocasião conheci o Gog e hoje sou um dos responsáveis pela agenda dele em São Paulo. Inclusive o Gog é padrinho da minha filha.
Ponte – Depois disso, como foi sua atuação política e social nos anos seguintes?
Claudinho – Eu virei secretário estadual de combate ao racismo do PT. Fiquei sete anos nessa função. Fui conselheiro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Em 2015 fui convidado pra ser coordenador de juventude do governo do [prefeito Fernando] Haddad. Numa ocasião o Haddad ia participar de um seminário sobre mudanças climáticas no Vaticano. Uma coisa que os governantes usam como praxe é levar alguma coisa que represente a sua cidade pra entregar ao Papa e a assessoria estava em dúvida sobre o que levar. Aí eu falei: “Mano, leva um disco do Racionais”. O chefe de gabinete olhou para mim: “Como assim?”. Eu disse: “O Papa Francisco é um cara do social, que quer mudar o planeta, que defende os mais pobres, e o Racionais é a nossa maior voz de denúncia das mazelas sociais”. Pegamos o Sobrevivendo no Inferno, que é um disco feito todo com base na Bíblia. Levamos o disco autografado pelo Brown, Edi Rock e KL Jay. Infelizmente a gente não conseguiu assinatura do Ice Blue, que não estava em São Paulo. Foi no momento que o prefeito tinha reduzido a velocidade nas marginais e estava tomando uma surra da imprensa. Aí ele ganhou uns quatro dias de fôlego, porque a imprensa só noticiou o disco do Racionais para o Papa.
Ponte – Além disso você também trabalhou no SOS racismo, da Alesp [Assembleia Legislativa de São Paulo]?
Claudinho – Sim. É um serviço que surge quando [o líder negro sul-africano Nelson] Mandela visita o Brasil [em 1991]. Inclusive o presidente na época, o [Carlos] Apolinário, passou a presidência da Assembleia por alguns minutos para o Nelson Mandela. O movimento negro aproveitou aquele momento e pautou a Assembleia em relação ao enfrentamento ao racismo. O Jamil Murad, que era um deputado do PCdoB, fez um projeto de resolução e propôs a criação do SOS Racismo. A Assembleia aprovou e o serviço ficou sem ser implantado. Em 2006 a agente conseguiu finalmente criar o SOS Racismo, ligado à Comissão de Direitos Humanos. Por lá passaram vários coordenadores e eu fui coordenador de 2019 até 2021. O SOS Racismo é importante, porém precisa de mais atenção dos deputados que efetivamente têm compromisso com a pauta racial, porque é um serviço bastante marginalizado e sucateado dentro do Poder Legislativo.
Ponte – E além de tudo isso você também é professor?
Claudinho – Eu sou professor. Fiz licenciatura em educação física e dei aula na escola municipal José Olympio Pereira Filho, que fica aqui na Cohab Adventista. Eu tenho uma paixão muito grande por lecionar. Mesmo sendo um professor chato e com tão pouco tempo de atuação, eu consegui estabelecer bastante vínculo com meus alunos lá no José Olympio, porque dialogava com eles na perspectiva de construir protagonismo e autonomia.
Ponte – Como toda essa sua vivência vai influenciar você agora nessa nova função de ouvidor das Polícias de São Paulo?
Claudinho – Eu acho que que a Ouvidoria é um espaço de ponderações e construção de diálogo. A política de segurança pública é uma política social, como é a política de educação ou a política de saúde, de esporte. Curiosamente, é a menos aberta à participação popular. A gente vê muita resistência, dos governos e também por parte de atores da segurança pública, em relação ao a discutir com a população que tipo de segurança ela quer. A gente já acha que a população tem um papel fundamental na formulação da política. Então eu acho que a minha vivência, a minha militância, me constituiu um ser ponderado ao ponto de aceitar o desafio de querer dialogar tanto com a sociedade civil quanto com os operadores e atores da segurança pública no sentido de fazer com que eles sentem e discutam conjuntamente qual política pública deve ser a melhor pra ser aplicada nos territórios. Eu sei que isso é muito “sonhático” e abstrato ainda, mas eu moro a menos de três quilômetros do Jardim Ângela, que foi considerado o bairro mais violento do planeta. Eu acompanhei, convivi e convivo com o Fórum em Defesa da Vida. Participo das várias Caminhadas em Defesa da Vida no dia dois de novembro. Aliás, eu fui indicado [à eleição para a lista tríplice da Ouvidoria das Polícias] pela Sociedade Santos Martins, que é a organização que dirigiu esse processo de transformação daquele bairro, que deixou de ser o mais violento do planeta pra ser um bairro hoje que acolhe as pessoas, que tem uma casa de acolhimento de mulheres, uma igreja que acolhe moradores em situação de rua em períodos de inverno pesado, que desenvolveu uma grande rede de proteção às famílias da região, que tem uma relação muito boa com a base comunitária de segurança, que criou um fórum com vários especialistas da USP e lideranças comunitárias que discutem a defesa da vida. Então acho que essa experiência do Jardim Ângela a gente pode replicar em outros lugares, capacitando e formando as pessoas pra em algum momento sentar com os agentes de segurança pública e os dois, juntos, ali, pensarem uma segurança pública mais cidadã e mais plural.
Ponte – Ao longo da sua vida, como foi sua experiência pessoal com a polícia? Você sofreu racismo? Sofreu violência policial?
Claudinho – Eu já sofri racismo, já sofri violência policial. Já assinei boletim de ocorrência de desacato, em ocasião inclusive que eu chamei a polícia. Eu chamei a polícia porque alguém estava cometendo um crime. A polícia se negou a atender à denúncia e, quando eu falei que eu ia denunciar os policiais, eles me prenderam e me imputaram o desacato. Não tem jeito. Pra quem vive na periferia, quem é preto como eu, quem mora em favela, é impossível em algum momento da vida não ter algum atrito com a polícia. Porque a entrega da polícia na periferia não é a entrega da polícia em Moema [bairro rico na zona sul da capital paulista]. Não é, nem nunca foi. Até quem mora em Moema sabe que o que eles têm em segurança pública lá é muito diferente da qualidade de segurança pública que a gente tem aqui.
Ponte – A polícia é racista?
Claudinho – A polícia é racista como a sociedade é racista. A polícia é racista, a sociedade é racista, a Assembleia Legislativa é racista, o Partido dos Trabalhadores é racista. Porque são grupos que são retratos da sociedade. Não tem como a gente ter uma instituição do tamanho da Polícia Militar e negar que ela tenha nos seus quadros quem ache que pessoas negras são inferiores a pessoas brancas.
Ponte – A polícia pode deixar de ser racista?
Claudinho – A polícia pode deixar de ser racista. De que maneira? A gente precisa que a polícia se abra pra isso, que as pessoas estejam preparadas pra fazer esse debate, pra que a gente possa ter uma polícia que enfrente o racismo. Quando a polícia entender que pode se tornar amiga da sociedade, o policial vai ser tão valorizado quanto é o professor. E eu não vejo diferença nenhuma na importância do papel do professor, que educa, que forma e que dá o caminho pra aquela criança não se perder, diante de tantas oportunidades negativas que tem no seu território, para o policial que pode ir lá e oferecer uma segurança decente, pode respeitar aquele menininho, aquela menininha, os pais dele. Que pode ser gentil, que pode ser cauteloso, que pode ser carinhoso, porque carinho e bom senso cabem em qualquer lugar. Então, eu não vejo nenhum problema. São seres humanos, não são? Seres humanos estão aí pra aprender. Morei em favela o tempo inteiro. Contato todos os dias com o crime organizado. Mesmo sem ter o meu pai, mesmo tendo uma família desestruturada, não enveredei para o mundo no crime. A gente teve muito mais oportunidade pra dar mal do que pra dar bom, mas a grande maioria dá bom. Assim como eu acho que nas corporações dos policiais deve ser: a grande maioria dá bom. Agora, lógico, tem pessoas que não sabem lidar com aquele poder que ganham com a farda, a partir de ter uma arma ali no punho. Tem pessoas que não lidam bem com aquilo. É da cabeça das pessoas. O poder não faz bem pra todo mundo.
Ponte – Você está chegando num momento em que a Ouvidoria está com imagem um tanto desgastada, por causa da gestão do Eliseu Soares Lopes, que foi bastante criticada (movimentos sociais como Mães de Maio e Rede Resistência e Proteção Genocídio viam ele como pouco crítico em relação à atuação da polícia) e também por conta desse longo processo que levou ao adiamento da nomeação do novo ouvidor ao longo de mais de um ano. O que que você acha que é necessário fazer pra reconstruir a imagem da Ouvidoria? E também pra tornar o trabalho da Ouvidoria mais eficiente?
Claudinho – Um caminho sempre foi e nunca deixará de ser a relação e a parceria estratégica com o movimento social. Primeiro que o movimento social é o maior demandante da Ouvidoria. Então o movimento social precisa estar próximo e ser um dos legitimadores da atuação da Ouvidoria. Uma coisa que a gente quer fazer pra retomar essa legitimidade é reestabelecer o diálogo. O objetivo é retomar o debate da Ouvidoria com o Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana, que é quem forma a lista tríplice pra composição. Tem sempre que atuar considerando que a Ouvidoria é uma conquista da sociedade civil. Não quer dizer que não haja demandas também vindas das corporações policiais, em relação a questões como falsas acusações, assédios morais, etc. Tem também. Mas a Ouvidoria precisa estar totalmente sintonizada com a sociedade civil no sentido de receber as demandas e encaminhá-las da melhor forma possível, sempre tendo o cuidado também de estabelecer uma mediação entre a demanda e os alvos dessas acusações, porque não cabe a nós julgar. A gente precisa estar muito atento ao movimento da sociedade civil, porque é fundamental na construção dos caminhos que a gente precisa, especialmente pra ter uma entrega de política de segurança pública decente. E uma coisa que eu acho que é fundamental nessa direção é a gente modernizar o atendimento da Ouvidoria.
Ponte – De que maneira?
Claudinho – Uma coisa que é importante: em períodos de grandes eventos, a Ouvidoria ter plantões. Criar canais usando tecnologias como o WhatsApp, por exemplo, pra receber denúncias. A prestação de contas periódica da atuação da Ouvidoria, apresentando os resultados e encaminhamentos, apresentando as demandas chegadas e o que foi feito. Então, a gente tem uma série de possibilidades de construção de mecanismos pra gente conseguir dar conta disso. As pessoas precisam ter na sua cidade, na sua região, um lugar para que possam recorrer à Ouvidoria. A gente está já está em diálogo com a Comissão de Direitos Humanos da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] pra ver se consegue nas subsedes, especialmente através das comissões de direitos humanos locais, ter um canal de recepção de denúncias no interior e Grande São Paulo.
Ponte – Como conseguir fazer esse atendimento mais moderno, recorrendo inclusive ao uso de tecnologia, com uma Ouvidoria que tradicionalmente em São Paulo sempre contou com poucos recursos financeiros?
Claudinho – A gente vai ter que fazer uma disputa no diálogo com a Assembleia Legislativa e com a Secretaria de Segurança Pública pra estruturação da Ouvidoria. A Ouvidoria não pode continuar sucateada. Afinal de contas, a Ouvidoria são os olhos da sociedade civil que influenciam a política de segurança pública. À medida que ela permanece sucateada, como está hoje e como foi sendo sucateada ao longo dos anos, necessariamente perde o seu potencial de intervenção e de influência e com isso quem perde é a sociedade. A gente vai ter que fazer uma disputa de orçamento, um debate sobre condições adequadas de trabalho da Ouvidoria pra que ela possa efetivamente conseguir dar as respostas que a sociedade civil espera dela.
Ponte – Essa disputa vai se dar justo no momento que a gente tem no governo Tarcísio de Freitas, identificado com a extrema-direita, que pela primeira vez nomeou um policial militar para comandar a Segurança Pública em São Paulo, o Guilherme Derrite, alguém que já disse que policial que mata pouco é uma vergonha. Como você acha que vai ser lidar com esse perfil de comando da Segurança Pública desse governo?
Claudinho – Eu nunca tive nenhum contato com o capitão Derrite. Pelo que eu sei ele é um jovem, tem 38 anos. Eu acredito, sim, que a nossa construção com a Secretaria de Segurança Pública pode ser difícil e delicada, mas pelo fato dele ser jovem eu acredito que a gente pode também fazer a disputa de imaginário dele. O que a gente precisa nos momentos adequados é ter os bons argumentos e tentar construir no sentido de ir demovendo ele de determinadas ideias.
Ponte – Como assim, “disputa de imaginário”?
Claudinho – Disputa de marginário. Apresentar pra ele questões que a gente está acostumado a vivenciar nos territórios periféricos, apresentar fatos e resultados de atuações como essa, por exemplo, aqui do Fórum em Defesa da Vida, em que uma política de segurança pública cidadã conseguiu tirar do Jardim Ângela o título de bairro mais violento do mundo. Como que foi feito isso? Com muito diálogo, com muita conversa, com muita construção, com muito debate, também, com muita briga, com muita confusão, mas que ao longo do tempo as pessoas, estando dispostas a dialogar, esse diálogo acontece e os resultados vêm com certeza.
Ponte – Por ser um militante do PT atuando na Ouvidoria, dá pra imaginar que qualquer colocação um pouco mais crítica que você venha a fazer como ouvidor vá ser atribuída ao seu posicionamento político. Como que você pretende lidar com essas críticas?
Claudinho – Primeiro que o PT é o partido político que eu optei por ser filiado. O PT não foi quem patrocinou a minha candidatura pra Ouvidoria. Esses espaços institucionais, como o da Ouvidoria das Polícias, não são pra aventureiros nem pra brincadeira. Eu não posso em nenhum momento sequer pensar que esse espaço pode ser de construção de oposição ao governo do estado, em razão da minha orientação político-partidária. O PT não será quem vai orientar a minha atuação política lá. A minha orientação política se dará através do movimento social. Quem será o grande dirigente da atuação política da Ouvidoria vai ser o Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana e o movimento social de direitos humanos. Ninguém mais vai interferir na nossa atuação. A Ouvidoria não pode virar palanque de político A ou B. A Ouvidoria é órgão de atendimento e defesa da sociedade civil. E isso não pode ser alienado em hipótese alguma. Porque senão a gente dá margem pra que pessoas mal intencionadas consigam inclusive propor o fim da Ouvidoria. Isso não pode acontecer. A Ouvidoria precisa ser protegida.
Ponte – Toda vez que a Ouvidoria tem uma atuação mais crítica, volta e meia na Alesp ressuscitam projetos de lei para extinguir a Ouvidoria. Você acha que há um risco real de a Ouvidoria um dia ser extinta? E como combater esse risco?
Claudinho – Eu acho que o risco sempre há e não tem como fugir disso. A forma de combater isso é o diálogo permanente. A gente não vai tratar a polícia e a Secretaria de Segurança Pública como inimigas do povo, nem inimigas nossa. O que a gente quer é interagir tanto com as forças policiais, com a Secretaria, com a Assembleia Legislativa, no sentido de que a gente consiga efetivamente influenciar a política de segurança pública ao ponto de que a gente não tenha que chegar nessa situação de ter que defender que a Ouvidoria não seja extinta. A gente precisa fazer a política com P maiúsculo: todo mundo compreendendo qual é qual é o seu papel, suas visões de mundo, o que cada um pode fazer pra poder melhorar, porque no fundo todo mundo quer entregar uma segurança pública melhor. Então eu acho que todo mundo tem contribuição pra dar. O que falta é diálogo. A gente não pode trabalhar com a perspectiva de que segurança pública e direitos humanos são questões opostas. Elas podem caminhar juntas e a gente está aqui pra provar isso através dos exercícios de debate, de construção conjunta, reflexão. A política de segurança pública está acima de qualquer ideal político que esteja colocado ou que queira se colocar à frente dessas questões.
Ponte – Pra finalizar, tem algum objetivo que seja caro pra você a ponto de, se até o final da gestão conseguir esse objetivo, você pense “cumpri o meu papel”? Tem algo que você veja dessa maneira?
Claudinho – Tenho alguns sonhos. Posso citar dois?
Ponte – Vamos lá.
Claudinho – Primeiro sonho que a gente consiga estabelecer um Termo de Ajustamento de Conduta para que os crimes de racismo praticado no estado de São Paulo jamais sejam resolvidos através de uma fiança. Porque o racismo é crime inafiançável e a injúria racial já foi classificada como racismo em resolução do Supremo Tribunal Federal. Então não pode vir aqui um argentino, ou quem quer que seja, praticar racismo contra um torcedor de qualquer time brasileiro e ir pra uma delegacia dentro do estádio, pagar uma fiança e ir embora. Ele tem que responder pelo crime de racismo, que é imprescritível. Então, se a gente conseguir, no diálogo com o Ministério Público, com a Secretaria de Segurança Pública e com as forças policiais, construiu um Termo de Ajustamento de Conduta para que a gente pare de soltar racista, eu acho que eu que conquistei o sonho da minha vida. Porque o que me trouxe pra política foi o enfrentamento ao racismo. Como eu te disse lá atrás, na ocasião que eu estava engraxando o sapato do Ferreira na delegacia. Curioso que o racismo me trouxe pra política dentro de uma delegacia e hoje eu sou ouvidor da polícia. E outra coisa que eu acho que é um sonho também: que a gente possa conquistar nessa gestão que toda a Polícia Militar do estado de São Paulo use as câmeras corporais. As câmeras têm tido um resultado importante nessa questão da proteção do policial e das pessoas também. Então eu acho que, se a gente conseguir fazer com que toda corporação até o final dos próximos dois anos esteja equipada com as câmeras, acho que a gente fez uma grande entrega. Quero trabalhar nessa perspectiva. Quero buscar o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o Pronasci, que hoje vai ser dirigido a partir de janeiro por uma mulher negra periférica, a Tamires Sampaio, que a gente busque caminhos pra entregar uma segurança pública dentro do que é a perspectiva do cidadão do estado de São Paulo.