Artigo | Por que a fala de J.K. Rowling sobre menstruação é transfóbica

    Autora de Harry Potter criticou a expressão “pessoas que menstruam” apagando a existência de pessoas não-binárias, homens e mulheres trans, e travestis

    Ilustração Junião / Ponte Jornalismo

    No fim de semana, a escritora britânica J. K. (Joanne) Rowling, autora de Harry Potter, uma das sagas mais amadas do mundo, dominou o primeiro lugar dos assuntos mais falados do Twitter. O motivo foi uma série de tweets com cunho transfóbico que Rowling escreveu.

    Tudo começou quando a autora, que tem 14,5 milhões de seguidores na rede social, postou uma crítica ao termo “pessoas que menstruam”. Para Rowling, é errado dizer que “pessoas menstruam” porque o termo correto seria mulheres. Com essa fala, que teve 69 mil curtidas, ela apaga a existência de corpos trans, ela reduz o “ser mulher” apenas ao sistema reprodutivo.

    Quando as críticas começaram a chegar de vassoura, na velocidade de um apanhador de Quadribol (esporte bruxo muito presente na saga de Rowling e que é parecido com o beisebol, mas feito em cima de vassouras), a autora começou a se defender: “Eu respeito o direito de todas as pessoas trans de viver de qualquer maneira que lhes pareça autêntica e confortável. Eu marcharia com você, se você fosse discriminado por ser trans. Ao mesmo tempo, minha vida foi moldada por ser mulher. Não acredito que seja odioso dizer isso”.

    Na última segunda-feira (8/6), Daniel Radcliffe, ator que interpretou o bruxo Harry Potter nos cinemas, escreveu uma carta sobre o assunto: “Mulheres trans são mulheres. Qualquer declaração ao contrário apaga a identidade e a dignidade de pessoas transgênero e vai contra todos os conselhos dados por associações profissionais de saúde que têm muito mais experiência no assunto que Jo ou eu”.

    O texto do ator foi publicado no Trevor Project, ONG estadunidense dedicada ao amparo emocional e prevenção ao suicídio de pessoas da comunidade LGBT+. Radcliffe também pediu desculpas aos fãs da saga. “A todos aqueles que agora sentem que sua experiência com os livros foi manchada ou diminuída, sinto profundamente pela dor que esses comentários causaram”, escreveu.

    “Espero de verdade que vocês não percam totalmente o que foi valioso nessas histórias para vocês. Se esses livros ensinaram que amor é a maior força do universo, capaz de superar qualquer coisa; se eles ensinaram que a força é encontrada na diversidade, e que ideias dogmáticas de pureza levam a opressão de grupos vulneráveis; se vocês acreditam que um personagem em particular é trans, não-binário, ou tem gênero fluído, ou é gay ou bissexual; se você encontrou qualquer coisa nessas histórias que ressoou em você e ajudou em qualquer momento de sua vida — então isso é entre você e o livro que você leu. E isso é sagrado”, escreveu o ator.

    No mundo real, não o mundo imaginário de J. K. Rowling, muitos homens menstruam, e até engravidam se quiserem, já que muitos deles não se hormonizam ou não fazem procedimentos cirúrgicos para retirada dos órgãos reprodutores. Ao mesmo tempo, nesse mesmo mundo real, mulheres trans e travestis não menstruam e nem por isso são menos mulheres.

    Leia também: Artigo | Novo filme do universo de Harry Potter mostra como o ódio atua na sociedade

    Ainda nesse mesmo mundo real muita gente sequer se define como homem ou mulher, já que muitas pessoas são não-binárias e não se encaixam na regra desse mesmo mundo real que separa homens e mulheres (e muitas vezes nos separa por nossas genitálias).

    J. K. criou um universo novo, mágico, onde há luta por democracia, contra o autoritarismo, contra a segregação, contra o preconceito, mas não foi capaz de entender o impacto que a sua obra tem sobre as pessoas. Parece que ela escolheu viver em um mundo apenas fantasioso, onde pessoas trans não existem.

    Quando ela aborda em seus sete livros a luta contra os Comensais da Morte (seguidores do bruxo das trevas Lord Voldemort, que acredita que o sangue dos bruxos deve ser puro e que o relacionamento entre bruxos e não bruxos deve ser proibido), o ódio aos “sangues ruins” (bruxos que não são filhos de bruxos com bruxos), J. K. está falando da luta contra o racismo, LGBTfobia e sexismo.

    J. K. entende as opressões do mundo. Ela sabe o que é o fascismo e como esse discurso é sedutor, já que ela abordou isso ao longo dos anos em Harry Potter e continua em “Animais Fantásticos”, nova franquia de filmes do mundo bruxo.

    Leia também: Artigo | Por que falar em LGBTfobia e não homofobia

    E essa não é a primeira vez que a escritora é transfóbica. Em dezembro de 2019, J. K. usou o seu Twitter para defender a pesquisadora Maya Forstater, que foi demitida depois de se posicionar contra uma legislação que permitiria que as pessoas trans se identificassem com outros gêneros. Esse tweet teve mais de 200 mil curtidas.

    Anos depois de escrever o primeiro exemplar de Harry Potter, a autora parece se esquecer do motivo que a fez escrevê-lo. Harry Potter mudou a vida de muitas pessoas. Harry Potter deu para as pessoas LGBTs e excluídas uma chance de aceitação. J. K. fala para muita gente, por isso pedimos, enquanto comunidade trans, que ela tenha cuidado em seus posicionamentos.

    Uma das 29,3 mil respostas do post principal de J. K. ilustra bem isso. Uma leitora diz à autora que desistiu de se matar porque queria saber o final da saga do bruxinho mais amado do mundo. “Por um longo tempo, foi tudo o que me manteve viva. Até conhecer meu marido, que me ajudou a aprender a amar a mim mesmo e a querer viver”.

    Muito antes do primeiro posicionamento transfóbico de J. K. Rowling, enquanto escrevia o meu livro-reportagem “Transresistência: Histórias de pessoas trans no mercado de trabalho“, me dei conta do poder da obra Harry Potter na vida das pessoas trans. Das oito pessoas que entrevistei para escrever esse livro, três eram fanáticas pelo universo mágico criado por Rowling.

    “Eu cresci com aquelas questões, me enxergava muito na Hermione [personagem de Harry Potter]. A leitura sempre foi a minha fuga. Era uma fuga da realidade, eu não precisava pensar nos meus problemas, não precisava pensar no meu gênero, não precisava pensar na minha realidade. Eu vivia aquelas histórias. Eu sofria naquele vácuo entre um livro e outro, que eram lançados anualmente, era um buraco que se abria e eu precisava preencher com uma nova história”, me disse Helena de Brito, mulher trans que entrevistei para o Transresistência, em 2017.

    Eu, enquanto fã de Harry Potter e homem trans, digo que estou decepcionado. Não surpreso, mas decepcionado. Muito antes de me entender um homem trans, ou uma pessoa LGBT, me entendi um fã de Harry Potter.

    Sou do tipo de fã de HP que, até hoje, 23 anos depois do lançamento do primeiro livro, indica a leitura da saga para as pessoas próximas. Sou o tipo de fã de HP que tem todos os livros, todos os DVDs (sim, tenho DVDs) dos filmes, tenho uma varinha, diversas camisetas, meias, cuecas da saga. Tenho até a capa da minha casa: Corvinal.

    Para quem não leu ou assistiu os filmes, os alunos de Hogwarts, escola de magia central na trama, são divididos em quatro casas: Grifinória, a casa do trio protagonista, que acolhe os bruxos mais corajosos e leais; Lufa-Lufa, a casa dos bruxos gentis, pacientes e tolerantes; Corvinal é a casa dos inteligentes, focados e estudiosos; e Sonserina, a casa que tem mais bruxos do time do mal, mas que muita gente vota como a melhor casa, onde estão os bruxos ambiciosos, calculistas e orgulhosos.

    Por isso, J.K., como fã e homem trans, eu te peço para repensar seus posicionamentos e pensamentos. HP é muito maior do que qualquer fala sua — e ainda bem. Não vou cancelar uma obra que me deu motivos para me amar porque você, no fundo, se incomoda com a existência de corpos trans. Mas, a partir de hoje, não vou mais consumir novos produtos da saga que eu mais amo, por conta da sua transfobia.

    Fui transfóbico e agora?

    Pensando nos posicionamentos transfóbicos da J.K, listei alguns exemplos de transfobias que muita gente não percebe ou não sabe que se encaixam no preconceito motivado pela identidade de gênero de uma pessoa trans.

    Como vivemos em uma sociedade cisnormativa, que entende que o certo é nascer menina e viver como menina e nascer menino e viver como menino, que não entende que não são as genitálias que definem os gêneros, aprendemos expressões e pensamentos que são transfóbicos.

    Discursos como esses legitimam a morte de pessoas trans, dificultam que pessoas trans acessem às universidades e os espaços de trabalho, impedem que pessoas trans amem e sejam amadas por ser quem são.

    Por isso, cara gente cis, quando pessoas trans, coletivamente enquanto movimento, apontarem que uma frase ou posicionamento seu foi transfóbico, peça desculpas e tente não repetir isso.

    Ler pessoas trans, ouvir pessoas trans, acessar conteúdo feito por pessoas trans ajuda muito nisso. E deixo aqui minha lista:

    1. Não chamar uma pessoa trans pelo nome que ela escolheu é transfóbico, porque isso invisibiliza a identidade que essa pessoa escolheu para ser sua. No começo de transição é normal confundir. Por isso, sempre que perceber que usou o nome antigo, peça desculpas e corrija — isso quando estiver falando com outras pessoas também, não só com a pessoa trans.
    2. Ainda sobre o nome, é errado perguntar para uma pessoa trans qual é o nome de registro dela, princialmente em uma entrevista. Se ela quiser te contar, ela vai te contar. Mas é transfóbico relembrar esse momento difícil para uma pessoa trans, que é vivenciar a vida no gênero que não condiz com a sua identidade de gênero. Também é errado usar o nome de registro dessa pessoa em uma matéria jornalística se isso não for realmente crucial para o seu texto. Sempre se pergunte: é importante que o público saiba que João já se chamou Maria? Se a resposta for não, não use.
    3. Não usar o artigo certo também é transfóbico: para mulheres trans e travestis, sempre devemos usar o artigo feminino: ela/dela. Para homens trans, sempre usamos o masculino: ele/dele. Quando estamos falando com e de pessoas não-binárias, sempre pergunte como ela prefere ser tratada, porque isso pode variar de pessoa para pessoa.
    4. Não dar acesso para pessoas trans interpretarem pessoas trans no mundo das artes. Temos muitos atores e atrizes trans capacitados para interpretarem pessoas trans nas peças teatrais, nos cinemas e nas televisões – inclusive interpretar pessoas cis.
    5. Reduzir as nossas existências as nossas genitálias é (mega) transfóbico. Crescemos em uma sociedade que acredita que meninas precisam e devem ter genitálias femininas e meninos precisam ter genitálias masculinas (aliás, é assim que nos dizem mulheres ou homens pela primeira vez, ainda no ultrassom dentro da barriga da genitora). Mas, os corpos trans, mostram que isso não é verdade: tem menina com genitália de menino e menino com genitália de menina. E tá tudo bem.
    6. Pra entender isso, há algo muito importante para separarmos: identidade de gênero (como você é) é uma coisa e orientação sexual (por quem você se atrai afetivamente) é outra. Por isso, pessoas trans podem ser gays, lésbicas, bissexuais, pansexuais e por aí vai.
    7. Não se permitir se relacionar (afetivamente) com as pessoas trans porque ela tem genitálias x ou y. Nem todo relacionamento é sexo (ou só sexo), então porque muitas pessoas cis (sejam elas héteros, lésbicas ou gays) dizem que não ficariam com uma pessoa trans? Inclusive, lésbicas e gays, crescem aprendendo a ter repulsa às genitálias masculinas e femininas, respectivamente. Ninguém é obrigado a se relacionar com ninguém, mas reduzir a existência de uma pessoa a sua genitália é uma atitude transfóbica que precisa ser repensada.
    8. Ainda sobre as genitálias, é errado perguntar para uma pessoa trans se ela fez a redesignação sexual (procedimento cirúrgico que algumas pessoas trans fazem para adequar seu corpo às genitálias do gênero de identificação) — a não ser que o assunto seja cirurgias. O corpo trans é convencionalmente visto como público e as pessoas acham que podem fazer esse tipo de pergunta, mas isso é extremamente invasivo. A gente não chega em uma pessoa cis e pergunta o que ela tem entre as pernas, né? Por isso não pergunte isso a uma pessoa trans sem ela te dar permissão para entrar nesse assunto.
    9. Achar que toda pessoa trans precisa usar hormônios e cirurgias para ser uma pessoa trans também é transfóbico: cada pessoa trans tem o direito de escolher o que é melhor para ela e para o seu corpo;
    10. É errado falar que “fulano virou ciclano” ou que “ciclano virou beltrano”. Ninguém vira nada. Eu não virei homem quando me descobri trans. Dá pra gente usar verbos menos pejorativos, como: se entendeu, se descobriu, transicionou, percebimento.
    11. Já falei isso no texto, mas não custa repetir: não são só mulheres que menstruam. Então precisamos saber, e entender, que tem homem que menstrua (e engravida!) e tem mulher que não menstrua. Assim como tem pessoas que menstruam, mas não se encaixam na binaridade do nosso mundo transfóbico.
    12. Impedir uma pessoa trans de usar o banheiro condizente ao seu gênero é transfóbico, além de causar problemas fisiológicos em pessoas trans.
    13. É transfóbico quando definimos brinquedos, cores e roupas para meninos e para meninas. Brinquedo não tem gênero. Cor não tem gênero. Roupa não tem gênero. Por que então dizemos que rosa é para meninas e azul para meninos?

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    […] “pessoas que menstruam” porque o correto seria mulheres na visão dela. A crítica virou artigo na Ponte. Depois, com a declaração da rapper Karol Conká, em fevereiro deste ano, quando ainda […]

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