Câmera na farda vai vigiar o cidadão e não punir o mau policial, analisa Artigo 19

    Denise Dora, diretora-executiva da ONG, aponta risco de criminalização e questiona: “Vão fazer o que com o conteúdo? Processar as pessoas?”

    Equipamento que será usado nos uniformes da PM | Foto: Arquivo/Ponte

    O mês de agosto dá início a um novo padrão na PM de São Paulo: os policiais começam a usar câmeras em seus uniformes, projeto em análise desde 2017. Serão 3 mil dos 85 mil integrantes da tropa com o equipamento. Segundo o governo, o objetivo é dar transparência às ações policiais e, assim, evitar casos de abuso e violência.

    A determinação do governador João Doria (PSDB) acontece em um cenário onde a própria sociedade cobra respostas das autoridades motivada por flagrantes ações violentas nos últimos meses. Vídeos com PMs pisando em pescoço de uma mulher negra, de policiais desmaiando um homem durante abordagem e também enforcando outro enquanto uma mulher tenta acalmar os policiais são alguns dos exemplos.

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    Os casos vieram à tona através de gravações feitas por celular, prática ensinada e promovida como elemento de defesa contra a atuação ilegal de policiais pela Witness Brasil. Em entrevista à Ponte, o diretor da Witness Victor Ribeiro, explicou como deve ser feita a gravação. “O vídeo é a ferramenta fundamental nesses tempos em que a gente vive para que se possa denunciar, documentar e defender direitos, não só em uma perspectiva de construir uma disputa narrativa, construindo outras versões dos fatos e da história, mas também promovendo uma documentação de uso concreto, como por exemplo esse uso jurídico do vídeo”, disse Ribeiro, à época.

    A campanha da Ponte #CelularEmLegitimaDefesa para denunciar irregularidades de agentes da segurança pública foi lançada em dezembro do ano passado.

    Aumenta a pressão o fato de o governo paulista registrar números recordes de mortos pela PM. No primeiro semestre do ano, 435 pessoas morreram vítimas de ações policiais, 20% a mais do que os 358 mortos no mesmo período de 2019. Na quarentena, houve aumento de 17% (comparado com o ano anterior) no número de mortes entre março e maio, quando 262 pessoas morreram.

    Na avaliação da Artigo 19, ONG que defende e promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação em todo o mundo, existe o risco de as pessoas serem mais criminalizadas do que protegidas.

    Denise Dora, diretora-executiva da Artigo 19, alerta que “a tecnologia nunca é neutra”. “A incorporação responde e muitas vezes tem funcionado mais como vigilância do Estado sobre a movimentação da sociedade, dos indivíduos, do que o inverso, um instrumento para conter autoritarismo do Estado”, analisa.

    Uma das críticas trazidas é o fato de não ter existido debate entre o governo de João Doria com a sociedade antes de pôr em prática o projeto. Dora cita o fato de equipamentos na Inglaterra, por exemplo, terem ressaltado viés racista e com probabilidade de erro em 87%.

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    “Outro estudo mostra que câmeras não diferenciam um homem negro de uma mulher negra se ela está de cabelo preso. Algumas pesquisas em curso sobre os algoritmos raciais mostram como eles são produzidos através de um determinado pressuposto que conduz a determinadas perspectivas e racismo”, afirma.

    Quando apresentou o programa Olho Vivo, como denominou a proposta das câmeras nas fardas, Doria procurou dizer que não existe o objetivo de “reduzir a letalidade”, porque são “poucos os policiais que cometem excessos”. O tucano afirmou que o objetivo é “auxiliar nas provas das ações policiais e, com isso, preservar a maioria da corporação”. Os equipamentos terão o tamanho de um celular, fixados nos coletes dos policiais, com transmissão ao vivo das ações. No entanto, os policiais terão autonomia para determinar quando os equipamentos poderão filmar ou não.

    Um histórico de arbitrariedades

    Gravar ações policiais não é uma ideia nova e vinha sendo gestada e até mesmo feita antes de Doria. Com Geraldo Alckmin (PSDB), em 2017, surgiu o primeiro projeto de colocar câmeras para registrar as ações dos policiais, mas não passou da fase de testes. Mas isso também não era exatamente uma novidade.

    Conforme a Ponte revelou há três anos, São Paulo possui, desde 2011, o Olho de Águia, programa que prevê o registro de ações policiais e é essencialmente aplicado em protestos, quando PMs usam câmeras para gravar manifestantes. De lá para cá, mesmo com essas gravações, a polícia investiu contra manifestações, inclusive incrementando o aparato de repressão, como mostrou estudo da Artigo 19 de junho de 2018, que identificou o sistema refinado do que chamaram de “vigilantismo” do Estado, tendo a “secreta” Diretriz Olho de Águia como uma das inspirações.

    Denise Dora, da Artigo 19, argumenta que a existência do Olho de Águia não significou diminuição da violência da PM, por exemplo, nas jornadas de junho de 2013 e no aumento da repressão vista nos últimos anos. Portanto, é possível questionar a eficiência e mesmo as intenções do Olho Vivo. “Vai fazer o que com o conteúdo? Processar as pessoas? Quando se pensa em uma política, com tecnologia ou não, tem que se pensar o ciclo todo. Vai resultar no quê? Em um conjunto de processos criminais”, diz.

    Em 2017, a Ponte mostrou que detenções arbitrárias viraram regra em protestos. Na manhã de 30 de junho daquele ano, a PM prendeu dez pessoas em um protesto por moradia e outros oito durante a tarde do mesmo dia. A prisão de duas integrantes de movimentos de luta por moradia foi feita por causa do Olho de Água. Elas foram reconhecidas em imagens durante manifestações e, por isso, foram detidas de forma ilegal para “averiguação”.

    Em janeiro de 2019, durante uma manifestação do Movimento Passe Livre, no centro de São Paulo, policiais foram flagrados fotografando o rosto de manifestantes aleatoriamente com o próprio celular. A Ponte chegou a questionar sobre o uso dessas imagens na época, mas não houve resposta.

    Em janeiro deste ano, também em ato do MPL contra aumento da tarifa do transporte público, um PM chamou o fotógrafo da Ponte Daniel Arroyo pelo nome, em demonstração de intimidação.

    Construa a Ponte!

    Episódios recentes também mostram que PMs em ações onde há flagrante uso abusivo da força não se intimidaram em continuar mesmo quando perceberam que estavam sendo gravados por testemunhas. Um deles aconteceu no começo de junho, no Imirim, zona norte de São Paulo. O PM está agredindo uma mulher durante a abordagem e uma pessoa com o celular na mão avisa: “tô filmando , vacilão”. Mesmo assim, a ação continuou.

    Reportagem do Uol publicada nesta quinta-feira (30/7) mostra que a violência é tolerada e até estimulada no retreinamento de policiais militares paulista, uma das medidas anunciadas pelo governo Doria para coibir abusos. Um major que é palestrante no curso disse que abusos existem na corporação e sempre vão acontecer. “A PM faz isso há 188 anos e sempre vai fazer. Você, policial, tem que ficar atento porque sempre terá alguém filmando”, declarou.

    Outro lado

    A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, através da assessoria de imprensa privada In Press, e a Polícia Militar sobre como funcionará o armazenamento das imagens, quem vai gerenciar esses dados e quem terá acesso a esse material.

    Em nota*, a pasta declarou que a instalação dos equipamentos visa “dar ainda mais transparência às ações policiais” e que, a partir de agosto, “585 câmeras serão utilizadas na área do Comando de Policiamento da Capital”.

    A assessoria também informou que desde o dia 1º de julho “mais de 80 mil policiais de todos os níveis hierárquicos já cumpriram as atividades do treinamento técnico-operacional”.

    *Reportagem atualizada às 10h38, de 01/08/2020, para incluir resposta da SSP.

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