Quando ocorre uma chacina, a PM paulista, por conta do seu histórico, se torna um suspeito tão óbvio quanto um mordomo na trama de um romance policial inglês
Foi em outro século, outro milênio. Em setembro de 1999, a revista Veja publicou uma reportagem, assinada pelo repórter Bruno Paes Manso (um dos fundadores da Ponte), que trazia o perfil de 12 autores de chacinas cometidas em São Paulo. As chacinas — homicídios múltiplos, com pelo menos três mortos — eram crimes que se espalhavam feito uma epidemia na Grande São Paulo: só naquele ano, a região metropolitana registrou 88 destes crimes, que fizeram tombar 302 pessoas. Os chacineiros ouvidos pela reportagem — num tempo longínquo em que a revista conseguia abordar temas complexos sem cair em respostas punitivistas simplórias nem botar a culpa de tudo no PT — eram ladrões, jovens, a maioria negros (ou “pardos”, como dizia a reportagem) e moradores da periferia. Matavam pais de família e seus filhos, matavam para resolver pequenas disputas ou para silenciar testemunhas, matavam para vingar outras mortes ou por causa de um olhar atravessado. Chacina era coisa de bandido.
Corte para agosto de 2015. O cenário é a rua do bar do Juvenal, na periferia de Osasco, um dos locais atingidos naquele mês pela pior chacina da história de São Paulo, que deixou 23 mortos. Como repórter da Ponte, eu acompanhava um protesto que exigia justiça para as várias vítimas do crime. Enquanto observava as velas acesas e os pedidos de paz pichados diante do bar fechado, conversei com Fabiano, um morador do bairro que, na noite do crime, havia ajudado a socorrer algumas das vítimas baleadas para o hospital. Ninguém havia ainda sido acusado pelo crime e perguntei a Fabiano quem ele achava que havia matado seus amigos e vizinhos. Ele hesitou um pouco. Em seguida, deu uma resposta que achei reveladora:
“Só uma coisa que eu te falo: é que bandido não faz uma coisa dessas, não, de matar um monte de pai de família”.
A fala de Fabiano mostrava como a visão a respeito das chacinas havia mudado nas periferias de São Paulo em relação às décadas anteriores. Matar aleatoriamente várias pessoas de uma só vez numa quebrada havia se tornado o tipo de coisa que “bandido não faz”.
E ele estava certo. Os acontecimentos mostraram que a chacina de Osasco e Barueri não era, mesmo, crime de bandido. Dois anos depois, a Justiça condenou três réus por 17 dos 23 homicídios da chacina. Eram dois policiais militares e um guarda civil.
E não foram só eles. A ação de policiais vestindo toucas ninjas e matando gente pobre e negra a granel foi registrada em diversos outros casos. Policiais militares foram acusados de participação em sete assassinatos no Jardim Rosana, em 2013, na morte de oito pessoas na sede da torcida Pavilhão Nove em 2015 e no caso de quatro jovens mortos diante de uma pizzaria em Carapicuíba, em 2015, sem falar dos PMs presos por matar 20 pessoas ao longo de cinco chacinas e um duplo homicídio ocorridos em Mogi das Cruzes (SP), entre novembro de 2014 e julho de 2015. Sem falar em possíveis casos de PMs chacineiros que nunca foram descobertos.
Por isso, não é à toa, quando um ataque a tiros mata quatro pessoas, como ocorreu no último dia 7 na Vila Miriam, zona norte de São Paulo, e ainda deixa no chão cápsulas de .40, armamento exclusivo das polícias, todos os olhares se voltam para a PM: a Ouvidoria já se coloca em alerta para uma possível participação de policiais e o Ministério Público, responsável pelo controle externo da atividade policial, trata de designar uma promotora para acompanhar o caso.
É natural. Em caso de chacinas, a PM paulista, por conta do seu histórico, se tornou um suspeito tão óbvio quanto um mordomo na trama de um romance policial inglês.
Se alguém fizesse hoje um novo perfil dos autores de chacinas, como aquele escrito por Bruno na matéria de 1999, mostraria personagens até certo ponto semelhantes, muitos deles também pobres, negros e moradores das periferias. Só que agora vestiriam a farda cinza bandeirante da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Chacinas em queda
Chama atenção que isto ocorra num momento em que o número de chacinas, como dos homicídios em geral, tenha despencado em relação às cifras assustadoras do começo do século.
Acompanhei um pouco dessa história como repórter policial do Agora SP no começo dos anos 2000. Na linguagem cínica dos repórteres, eu e outros colegas dizíamos que as chacinas nas periferias com apenas três mortos eram tão comuns que nem mereciam uma ida ao local. “Três mortos? Só vale nota” era um comentário comum. Eram tantos crimes que os jornalistas definiam que só valia a pena acionar o carro de reportagem a partir de quatro mortos no local. Em poucos anos, a situação mudou: as chacinas passaram a escassear tanto que, sim, mesmo as chacinas com com três mortos já mereciam espaço no noticiário policial.
É uma mudança que aparece nos números. Em 2015, ano da matança de Osasco, foram registradas 17 chacinas, com um total de 82 mortos. Em 2016, seis chacinas deixaram 23 mortos, enquanto o ano passado contabilizou 10 chacinas com 39 mortos, segundo dados publicados em jornais (o governo de São Paulo já não separa as chacinas dos outros homicídios em suas estatísticas). Algo muito distante do ano 2000, auge dos homicídios múltiplos, que teve 95 chacinas com 325 mortos.
A moral da história é que as chacinas são hoje dez vezes menos comuns do que eram na virada do século, época em que eram “crime de bandido”. E, hoje, quando uma chacina acontece, há grande chance de ter sido praticada por um policial.
Por que isso acontece?
Uma possível resposta pode estar em duas mudanças que ocorreram nos últimos anos, uma pelo lado do crime, outra pelo lado da polícia.
Pelo lado do crime
Pelo lado do crime, houve a surpreendente queda de 80% no número de homicídios observada no estado de São Paulo a partir de 1999, na contramão do que se viu na maioria dos outros estados brasileiros, especialmente no Nordeste.
Os motivos dessa redução são um tema que tem feito muitos estudiosos baterem cabeça entre si. Uns apostam que os homicídios caíram graças a uma grande dose de eficiência dos governos tucanos, os quais teriam implantado políticas extremamente eficientes na área de segurança pública, especialmente a técnica usada pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de priorizar a investigação e prisão dos homicidas mais contumazes.
Tem gente que pode acreditar nesta hipótese da eficiência do governo paulista para explicar a redução dos homicídios. Tudo bem. Deve ter lá o seu fundo de verdade. Mas, se eu tivesse que apostar, investiria mais fichas na hipótese levantada por outros especialistas que atribuem pelo menos parte da redução de homicídios à influência da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), que “desenvolveu mecanismos de ‘controle social’ que produziriam uma drástica redução do uso da violência física nos conflitos interpessoais e, assim, possibilitaram a imposição da paz nestes territórios”, como afirma a socióloga Camila Nunes Dias no livro PCC – Hegemonia nas prisões e monopólio da violência.
Surgido em 1993, o PCC dominou os presídios paulistas e de lá foi para as ruas, onde assumiu o comando do tráfico de drogas e de outras atividades ilegais sem deixar espaço para qualquer força de oposição capaz de lhe fazer frente. Como quem está no comando gosta de ordem, o PCC tratou de assumir um papel de mediador de conflitos e as próprias comunidades, na ausência de figuras do Estado em que pudessem confiar, passaram a enxergar nos traficantes as autoridades a quem procurar para resolver diversos problemas, de crimes a traições conjugais. Parte destes conflitos poderiam terminar nos tais “tribunais do crime”, uma imitação de julgamento conduzido pelos criminosos, que podem resultar em diversas punições, inclusive morte, mas tudo com a autorização da facção.
Vez por outra, um tribunal do crime poderia até evitar mortes. Um relato que ouvi a respeito de um destes julgamentos falava de um marido traído que queria matar o amante da esposa e levou a questão aos traficantes locais. Montado o tribunal, os magistrados improvisados ouviram tanto a mulher quanto o amante e se convenceram de que os dois haviam feito sexo por livre vontade, sem abuso nem arrependimento. O “erro”, portanto, era dos dois. O tribunal deu duas opção ao traído: ou autorizava que os criminosos matassem tanto o amante quanto a esposa, ou perdoava a ambos e encerrava o assunto. Aos prantos, o homem escolheu a segunda opção e a treta terminou pacificada, sem derramamento de sangue.
Nesta nova fase, a molecada de cabeça-quente que matava por qualquer motivo, retratada por Bruno Paes Manso na reportagem de 1999 e no livro O homem X: uma reportagem sobre a alma do assassino de São Paulo, já não tinha mais lugar: os antigos assassinos foram mortos ou se submeteram às novas regras. Chacinas não eram mais crime de bandido.
Pelo lado da polícia
Pelo lado da polícia, é difícil dizer com certeza se algo de fato mudou ao longo da última década e meia. Talvez a Polícia Militar esteja realizando tantas chacinas quanto antes. Só que agora, como há muito menos homicídios, as chacinas da PM simplesmente apareçam mais. Algumas evidências, contudo, apontam que os policiais podem ter adotado as chacinas como parte de uma política sistemática de vingança simbólica que se intensificou nos últimos anos, especialmente a partir de 2006.
As investigações mostram que várias das chacinas cometidas pela PM teriam sido feitas para vingar uma violência praticada contra um policial. A chacina de Osasco e Barueri teria sido motivada pelas mortes de um PM e de um guarda civil, ocorridas dias antes. Na chacina de 2015 em Carapicuíba, a motivação apontada foi vingança por conta de um roubo que um PM acreditava ter sido praticado pelas vítimas contra sua mulher. E por aí vai. Na Vila Miriam, local da primeira chacina de 2018, reportagem de Arthur Stabile mostra que os moradores já especulam se teria sido motivada pelo roubo do carro de um policial.
Não é uma tradição nova entre as forças de segurança brasileiras. O lema “para cada agente do Estado que cair, matamos dez do outro lado” era mencionado pelos agentes do regime militar, como lembra a jornalista Rose Nogueira, que combateu a ditadura. Na época, a definição dos agentes inimigos para o “outro lado” podia ser bastante ampla, englobando desde membros da luta armada até quem tivesse uma brochura de Karl Marx na biblioteca.
A mesma lógica de “dez para um” foi adotada à risca em maio de 2006, depois que o PCC matou 43 agentes públicos, a maioria policiais. Em dez dias, a reação provocou outras 493 mortes, várias delas com indícios da participação de policiais fardados ou encapuzados, segundo investigações independentes conduzidas por instâncias tão diferentes como o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), o Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard.
A PM paulista voltaria a mostrar com toda clareza sua face vingadora seis anos depois, durante novo conflito, agora mais limitado, com o PCC. Ao longo de 2012, a mesma sequência de eventos se repetiu dezenas de vezes: após cada ataque praticado contra um policial, grupos de extermínio reagiam executando aleatoriamente moradores do bairro em represália. Numa reportagem que fiz com William Cardoso na Agência Pública, identificamos naquele ano pelo menos 38 homicídios que se seguiram a 11 ataques contra policiais, numa aparente ação sistemática de vingança. Um estudo de de Camila Nunes Dias, com Maria Gorete Marques, Ariadne Natal, Mariana Possas e Caren Ruotti, publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública, apontou na mesma direção.
As chacinas dos últimos anos, especialmente a partir de 2012, parecem deixar claro que os matadores da PM paulista sistematizaram o procedimento de praticar matanças como vinganças simbólicas contra os pobres de bairros onde policiais sofreram alguma violência. Digo “simbólicas” porque raramente essas matanças focam os indivíduos que, de fato, mataram aquele policial. A vingança se abate sobre os moradores do entorno e seus autores parecem simplesmente não se importar se os mortos tinham ou não qualquer relação com o crime praticado.
E são, sempre, uma vingança contra os pobres. Se um policial for assassinado hoje na Alameda Jaú, pode ter certeza de que não haverá uma chacina amanhã no DOM ou no Figueira Rubaiyat.
Tentando concluir, eu diria que, para quem observa o cenário da violência policial, seja no atacado das chacinas ou no varejo das execuções disfarçadas como resistências seguidas de morte, salta aos olhos como as matanças têm uma sistemática, uma história e uma tradição. Não são apenas “erros isolados” cometidos por “algumas maçãs podres” de uma corporação preocupada em valorizar a vida. Não se trata de deslizes, nem de “policiais mal preparados”, como se diz. São profissionais fazendo com competência o que querem fazer e o que se espera que façam. Porque tantas violências sistemáticas simplesmente não teriam se consolidado e se mantido ao longo de décadas se não representassem a vontade de uma parte importante da sociedade. Sempre que um PM executa um jovem negro numa quebrada, tem muito mais gente, ali, puxando o gatilho junto com ele.
(*) Fausto Salvadori é repórter, editor e um dos fundadores da Ponte
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