Audiovisual brasileiro finalmente passa a usar pessoas trans no papel de pessoas trans

    Filmes como Alice Júnior e Valentina trazem atrizes trans como protagonistas. Em 2017, artistas trans chegaram a publicar manifesto pedindo representatividade: “as portas estão abertas, mas foi na base do chute”, diz atriz

    Foto: Reprodução/Alice Júnior O Filme

    Em 2017, um grupo de artistas trans se reuniu para exigir o fim do transfake nas artes. O transfake é quando uma pessoa cisgênera (que se identifica com o gênero de nascimento) interpreta uma pessoa trans (que não se identifica com o gênero de nascimento) em algum filme, peça ou novela.

    Entre essas pessoas estava a atriz Leona Jhovs, 33, que agora também é diretora e roteirista. Naquele ano, o Coletivo T lançou o manifesto ‘Representatividade trans já. Diga não ao Transfake’, se posicionando criticamente contra a estreia da peça Gisberta, de Luis Lobianco, em Belo Horizonte, em que um ator cisgênero interpreta a transexual brasileira Gisberta, brutalmente assassinada em 2006 em Portugal.

    No cinema e no audiovisual, nacional ou internacional, o transfake sempre foi uma realidade. Lá fora, Hilary Swank viveu o homem trans Brandon Teena em Meninos não Choram (1999), Jared Leto deu vida a travesti Rayon no filme Clube de Compras Dallas (2013) e Eddie Redmayne interpretou a transexual Lili Elbe em A Garota Dinamarquesa (2015).

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    No Brasil, já vimos Rodrigo Santoro interpretar a travesti Lady Di em Carandiru (2003) e, pouco antes do manifesto dos artistas trans, Carolina Ferraz viveu uma travesti em A Glória e a Graça (2016) e Carol Duarte interpretou Ivan, homem trans da novela A Força do Querer (2016).

    Renata Carvalho, Ave Terrena, Lua Lucas, Suzy Muniz, Wallace Ruy, Leo Moreira Sá, Caio Jade, Gil Porto, Dom Lino, Danna Lisboa, Veronica Valentino, Dani Veiga, Renata Carvalho e Daniela Glamour estão entre os artistas que assinaram o documento em 2017.

    Três anos depois, a realidade do cinema e do audiovisual nacional começaram a mudar, mas à força. “As portas estão abertas, mas foram abertas a muito custo, foram abertas a base do chute”, definiu Leona Jhovs à Ponte.

    “Fico assistindo hoje o cinema nacional dando muita atenção para o protagonismo trans, mas é importante identificar que isso é graças a nossa luta, que vem há muitos anos. De lá para cá, muitos artistas trans e diretores estão atentos a essa nova convocação”, continua.

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    Em 2017, a série 3%, primeira produção original da Netflix Brasil, canal de streaming, trouxe Marina Mathey, atriz e cantora, interpretando Ariel. Só em 2019, por exemplo, a Ponte noticiou dois curtas-metragens, que tinham protagonismo trans, nas cenas e na equipe de produção.

    Em Modelo Morto, Modelo Vivo, Leona interpreta a protagonista Manuela, além de dirigir e também assinar junto o roteiro, e conta a história ficcional uma mulher trans, artista, que ao frequentar uma oficina de modelo vivo, desperta para sua própria beleza e potência, mesmo tendo que enfrentar dificuldades cotidianas.

    Outro curta é Perifericú, que traz Vita Pereira como a protagonista Luz e também como diretora (além de trazer mais duas pessoas trans na direção, Rosa Caldeira e Nay Mendl). O filme ficcional mostra, a partir da coletividade e afetividade, como ressignificar e naturalizar as periferias enquanto locais possíveis para uma mulher trans negra.

    A presença de pessoas trans por trás das câmeras, aponta Leona Jhovs, é a luta da vez. “Ainda assistimos muito narrativas que não são fortalecedoras, ainda tem muita coisa sendo escrita e dirigidas por homens cisgêneros, e isso faz com que haja uma grande dificuldade, porque ainda somos escritas com camadas de perversão ou de marginalidade”.

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    “É importantíssimo que a gente adentre esses outros espaços enquanto roteiristas e diretores. E isso vem acontecendo. Quando você avalia um filme que foi escrito por uma pessoa trans e ou dirigido você vê ali a alteração da narrativa e o quanto isso fica mais empoderador para as nossas vivências”.

    Leona lembra a importância do papel de artistas trans nessa mudança no audiovisual. “Estamos no fronte, buscando e exigindo espaços que são nossos por direito e nos foram negados e tirados. Essa luta, que vem muito antes de 2017, é para cobrar, ficar em cima, para que as nossas corpas possam acontecer, atuar e serem atuantes. Isso vem transformando o cinema”.

    Além de trazer pessoas trans interpretando pessoas trans, em produções próprias e no seu catálogo, a Netflix Brasil teve outra iniciativa positiva nos últimos anos. “Eles têm um acordo conosco que todo personagem trans e travesti vai ser dublado somente por pessoas trans e travestis. Eu e Gabriel Lodi já fomos dois artistas que fizemos dublagem em produções da Netflix. Isso é um ganho histórico”.

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    “Como o cinema ainda é muito machista, um universo muito patriarcal, é uma grande dificuldade para que a gente se insira. Por mais que estejam abertas, a gente, vira e mexe, ainda passa por algum tipo de transfobia ou misoginia. O que está sendo feito não é mais do que já deveria ter acontecido. É sobre a nossa luta, sobre a nossa garra de dar a nossa cara a tapa de mostrando que somos artistas e atores bastante preparades, não só enquanto atuação, mas como produtores, iluminadores, diretores e roteiristas”.

    No mesmo ano, dois longas-metragens com atrizes trans vivenciando as protagonistas chegou ao circuito dos festivais: Alice Júnior, que traz a atriz e youtuber Anne Mota, 22, no papel principal, e Valentina, com Thiessa Woinbackk, 30, também atriz e youtuber, como protagonista.

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    Os dois filmes têm uma narrativa muito parecida: contam a histórias de adolescentes trans que mudam de cidade e precisam lidar com os novos desafios, além dos problemas comuns à adolescência. As transfobias que uma pessoa trans enfrenta na escola são bastante abordados nos dois longas, premiados em festivais mundo afora.

    ‘Para ser assistido em família’

    Alice Júnior acabou de chegar às plataformas digitais, depois de circular por um ano nos festivais, nacionais e internacionais, ganhando pelo menos 16 prêmios e seleções especiais, incluindo de melhor atriz para Anne Mota, que, na época das gravações, tinha apenas 17 anos.

    Dilemas e momentos importantes na trajetória de adolescentes trans na vida escolar são narrados no filme: as dificuldades de usar o banheiro ou ter o nome social respeitado têm a mesma importância de dar o primeiro beijo. A personagem tem uma ótima relação com o pai, que apoia a filha trans e a defende das transfobias na nova escola, após mudarem de Recife para uma cidade pequena no Paraná.

    A Ponte conversou com Anne Mota para contar como foi interpretar Alice Júnior no cinema e os bastidores desse filme. “Sem ser esnobe, mas eu esperava, sim, que Alice Júnior tivesse certa forma de sucesso, porque é uma história muito única”, brinca.

    “Não vemos protagonismo trans dessa forma, não vemos histórias trans sendo contadas dessa forma e especialmente com personagens jovens. Diferente da maioria dos filmes que abordam a temática, Alice sabe quem ela é. Alice é um filme que aborda a causa trans de forma diferente e eu esperava que abrangesse um público maior”.

    Cena em que Alice Júnior é obrigada a usar um uniforme para meninos na nova escola| Foto: Reprodução/Alice Júnior O Filme

    Anne conta que, em 2016, pouco depois de criar seu canal no YouTube, o Transtornada, foi marcada em uma postagem que buscava uma atriz trans, moradora de Curitiba, para ser protagonista de um filme sobre a adolescência trans.

    “Apesar de ser de Recife, eu decidi tentar. Na época eu não tinha currículo nenhum basicamente, mas tinha meu canal no YouTube, tinha feito teatro quando era criança e meu blog que eu passei dois anos atualizando constantemente”, lembra.

    E deu certo. Apesar de fugir do roteiro inicial, em que a personagem deveria sair do sudeste para o sul, Anne conquistou de primeira o diretor Gil Baroni. Com a entrada de Anne no longa, a personagem muda do Recife para o Paraná.

    “Em junho de 2016, ainda menor de idade, eu fui para Curitiba com a minha mãe. Na minha primeira ida eu fui escolhida para interpretar a Alice e tive um intensivão de preparação para interpretar a personagem”. 

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    A atriz conta que sempre teve o sonho de ser artista, desde muito nova. “Queria ser artista, em todas as variadas formas de ser artista: cantora, modelo, atriz, dançarina. Eu fazia apresentações teatrais quando era criança para apresentar para a minha família. Em 2016 isso se concretizou com a chegada da Alice Júnior”.

    Assim que foi escolhida para dar vida à protagonista, Anne voltou para as aulas de teatro, no Recife, para chegar preparada para as gravações. “Em 2017, quando gravamos o filme, fiquei dois meses em Curitiba. Foi um mês de preparação de elenco e umas três semanas de gravação. Depois que rolou isso eu tive certeza que era isso mesmo que eu queria fazer para o resto da minha vida”.

    Foto: Reprodução/Alice Júnior O Filme

    Quando o filme começou a ser aceito nos festivais, Anne teve a certeza de que o filme já era um sucesso. Mas a atriz não imaginava que teria tanto alcance como conquistou quando chegou nas plataformas digitais, como a Netflix, em setembro de 2020. “Quando me contaram que ia chegar na Netflix, já fiquei ‘meu deus, agora vou ser famosa'”, brinca. “Eu fiquei muito feliz, eu quero que esse filme chegue em diversas pessoas”.

    De lá para cá, Anne conta que tem recebido muitas mensagens especiais. “Recebi mensagens de pessoas trans, principalmente as mais jovens, contando o que elas sentiram assistindo, recebi mensagens de pessoas que assistiram em família, eu acredito que Alice Júnior é um filme para ser assistido em família, e recebi mensagens de professores falando que vão falar sobre o filme na sala de aula”.

    Uma dessas mensagens especiais foi a de Maria Joaquina Cavalcanti Reikdal, atleta trans de 12 anos que teve a história de sua família contada pela Ponte no último Dia dos Pais. “Entre várias coisas que ela falou a que mais me marcou foi que a Alice sofreu bullying em um dia e depois ela foi na escola e enfrentou tudo o que estava acontecendo mesmo assim. Isso foi muito importante para ela, se ela vir a sofrer algum tipo de transfobia no meio educacional, ela pode se inspirar na Alice”.

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    “Também teve outro momento na Mostra São Paulo em que o coletivo Mães pela Diversidade levou crianças e adolescentes trans para assistir o filme e uma criança trans veio falar comigo, super emocionada falando que amou o filme. Tem gente que veio falar comigo falando que se inspirou para falar com a família. Se eu tivesse tido um filme como Alice Júnior na infância, ela teria sido diferente”.

    Foto: Reprodução/Alice Júnior O Filme

    A representatividade trans, defende Anne, é “mega importante” para a formação não só de pessoas trans, mas para combater a transfobia nos espaços. “É necessário que nós, pessoas trans, nos enxerguemos no audiovisual e no teatro. É muito importante a pessoa trans fora da telinha se enxergar dentro da telinha. É ali na telinha que mostra que existimos. É com essa presença que vão começar a humanizar e naturalizar a nossa identidade”, completa. 

    “Se você vê na novela, no seriado, e no filme uma pessoa trans, que tá ali sendo quem ela é, vivendo a sua vida e passando por suas questões e preconceitos, aí você vai para a sua faculdade e tem um colega trans ali na sua sala de aula, você vai naturalizar aquela presença de forma muito mais fácil. Principalmente em ambientes educacionais a nossa presença é muito expulsa, sofremos todo tipo de preconceito tanto dos alunos quanto dos professores”, argumenta.

    ‘É isso, eu sou trans’

    Foi se vendo representada em um documentário que Anne se entendeu uma adolescente trans, quando tinha 12 anos. “Eu tive essa sorte de ver representatividade. Aí eu vi e disse: é isso, sou trans. Passei um mês vendo documentários, entrei em comunidades na época do Orkut e cheguei com esse material para a minha mãe e me assumi”.

    A atriz lembra que, até esse momento, teve uma infância confusa. “Eu era uma criança muito limitada, porque eu não podia fazer o que eu queria fazer, falar o que eu queria falar, vestir o que eu queria vestir, me expressar do jeito que eu queria me expressar”.

    Desde que contou para a mãe sobre a sua transexualidade, foi bem aceita. “Tiveram algumas confusões, mas sem intenção. Como ela fala: eu fui a primeira pessoa trans que ele aconteceu”. Mas, com o pai, a coisa foi diferente. “Eu passei uns anos sem falar com ele. Hoje em dia é tudo diferente, as coisas mudam. Eu fiquei anos sem falar com o meu pai e hoje ele é meu empresário”.

    Anne confessa que um dos momentos mais difíceis no filme foi justamente um cena de afeto entre Alice e o pai. “Me senti desconfortável na cena que a Alice, depois de urinar na roupa na sala de aula, fala com o pai chorando, perguntando porque ela existe, como é uma cena de mais proximidade e intimidade foi difícil, porque eu nunca tive isso com o meu pai. Foi estranho fazer essa cena, mas é o desafio da atuação”.

    A relação entre Alice e seu pai é um dos pontos fortes do filme | Foto: Reprodução/Alice Júnior O Filme

    A transição de Anne aconteceu durante uma viagem de intercâmbio. “Eu tentei diversas vezes começar a minha transição no Brasil e não conseguia por medo, vergonha e muito mais, porque eu já sofria muito enquanto uma criança ‘gay’, imagina me assumindo trans. Fiz intercâmbio, mas não para aprimorar meu inglês, para ser quem eu sempre fui”.

    Durante os últimos anos, desde 2017 quando começou a gravar o longa, Anne conta que vivenciou níveis diferentes de impacto com o filme. “Acompanhei o crescimento, acompanhei as músicas serem colocadas, dos efeitos especiais serem colocadas, da cor, da arte, da fotografia”.

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    “Mas o maior momento para mim foi no Festival de Vitória, que foi o primeiro festival que aceitou o filme. Quando eu sentei na primeira sala de cinema, que foi no Festival de Vitória, eu pensei: é isso. Chorei horrores, claro”.

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