Deputados autores da proposta dizem que órgão de combate à violência policial só serve para “depreciar a PM”; líder do PSDB, Carla Morando assinou projeto e depois recuou
Deputados estaduais de São Paulo tentam acabar com o trabalho da Ouvidoria da Polícia, que tem como função fiscalizar a atividade policial, receber denúncias de violações cometidas por policiais e encaminhá-las à Corregedoria das polícias para que a apuração seja realizada. Para os parlamentares favoráveis ao projeto, em sua maioria integrantes da “Bancada da Bala”, o órgão só serve para “depreciar o trabalho das polícias”.
A atual gestão da Ouvidoria, sob o comando de Elizeu Lopes Soares, tem recebido críticas de movimentos ligados aos direitos humanos justamente por estar tendo uma atuação menos combativa no enfrentamento à violência policial. Em entrevista à Ponte logo que assumiu o cargo, Lopes disse que a polícia se preocupava com direitos humanos e contemporizou quando questionado sobre o racismo na corporação.
Foi o governador João Doria (PSDB) que, em fevereiro deste ano, tirou o sociólogo Benedito Mariano da Ouvidoria, após ignorar a lista tríplice do Condepe (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) que trazia o ex-ouvidor como primeiro indicado. Em seu lugar, colocou Elizeu, o último na lista.
Mariano ficou conhecido por ter uma gestão focada no combate à letalidade e criticou a decisão do governador na época. “Não fui nomeado mais pelo que fiz do que pelo que não fiz”. Nos bastidores, era comum ouvir que a escolha de Doria era uma sinalização de esvaziamento do órgão. Em março, o secretário de Segurança Pública, general João Camilo Pires de Campos, propôs a mudança de sede da Ouvidoria para o prédio da SSP.
As críticas e ataques à atuação da Ouvidoria órgão não são um tema novo. A novidade, agora, é que o projeto de lei 31/2019, de autoria de Frederico D’Avila (PSL) e outros integrantes da “Bancada da Bala”, chegou a ter como coautora a líder da bancada do PSDB, deputada Carla Morando.
D’Ávila, que já chegou a propor homenagem ao ex-ditador chileno Augusto Pinochet, apresentou, em junho do ano passado, esse atual PL em debate e um outro, que propunha diminuir a atuação do órgão. Carla Morando assinava a coautoria do atual projeto de lei, mas, em 18 de junho, mudou de ideia e retirou sua assinatura. Foi duramente criticada pelo colega.
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“Por surpresa, a deputada Carla Morando, líder do PSDB, assinou junto comigo a coautoria e depois retirou [a assinatura]. Com certeza o papagaio de plantão no Palácio dos Governantes deve ter pedido para que retirasse”, disse D’Ávila, em sessão virtual nesta terça-feira (21/7), em que se debateu o projeto. Não houve votação e existe a previsão de que o tema possa voltar à pauta na quinta-feira (23/7).
Para o ex-ouvidor Benedito Mariano, o fato de ter sido preterido por Doria e a proposição do projeto de encerrar a Ouvidoria podem ter ligação. “O que sei com certeza é que o PL foi uma resposta do setor reacionário, conservador da Assembleia, criado pelo Frederico, à atuação da Ouvidoria. Minha atuação em 2018 e 2019 foi firme, priorizando e acompanhando os casos mais graves”, diz o agora assessor parlamentar da deputada Isa Penna (Psol).
A reportagem tentou contato com a deputada Carla Morando para entender por que o que a fez apoiar o PL e depois recuar, mas, até o momento, não houve retorno.
Os argumentos dos ataques
Carlão Pignatari, também deputado estadual pelo PSDB, em 31 de outubro de 2019, defendeu a extinção da Ouvidoria da polícia. “Temos, sim, que coletar assinaturas para que a gente possa pautar o projeto de extinção da Ouvidoria da Polícia, que é o maior atropelo que houve. Temos Corregedoria!”, afirmou, aos 4 minutos e 59 segundos no vídeo abaixo. Ele, no entanto, não aparece como coautor do texto.
Antes disso, em 2016, deputados da Bancada da Bala intimidaram o então ouvidor, o advogado Julio Cesar Fernandes Neves, pelo trabalho em denunciar ações contra a lei de policiais.
Assinam a autoria do atual PL pedindo a extinção do órgão junto de Frederico D’Ávila deputados do PSL, antigo partido de Jair Bolsonaro, PP, Avante e PSB, entre eles os ex-PMs Conte Lopes, Tenente Nascimento, Coronel Telhada, Major Mecca, Coronel Nishikawa e Sargento Neri.
Segundo D’Ávila, parte desses policiais hoje na Alesp trabalharam enquanto a Ouvidoria já existia como “um punhal apontado pelas costas”, definiu sobre a ação do órgão. “Se fosse um órgão plural, com integrantes de associações policiais, nem proporia isso”, afirma.
D’Ávila considera que a existência da Ouvidoria nada mais é do que vazar “informações para coleguinhas de imprensa que compartilham da mesma coloração ideológica para fazer manchetes depreciando o trabalho, seja da Polícia Civil seja da Militar”.
Outros deputados defenderam a extinção da Ouvidoria, que consideram ser injusta com a atuação da polícia. Sargento Neri (Avante) usou o exemplo de uma mulher negra que teve o pescoço pisoteado por um PM em Paralheiros, zona sul de São Paulo, para defender a tese de que a polícia não é violenta.
“Policial não a agrediu”, defende. “É muito fácil falar quem está em uma sala com ar condicionado. Combater uma população agressiva é muito difícil. A Polícia Militar não é agressiva, nossa sociedade que está aumentando a violência”, afirmou o deputado.
O deputado Coronel Telhada (PP), em fevereiro deste ano, quando comentava o aumento de 98% de mortos pela Rota, a tropa mais letal da PM paulista, disse que “a Ouvidoria não é pra ficar enchendo o saco, dando opinião e ficar falando o que não o compete”. Também elogiou as mortes cometidas pelo batalhão que já comandou.
Já Douglas Garcia (sem partido após ser expulso do PSL), também coautor, defendeu o fim de outro órgão de controle. “Algumas instituições do estado estão para lá de aparelhadas. Vou dar um exemplo: não apenas a Ouvidoria, mas como também a porcaria do Condepe. Deveria ter um fim, acabar urgentemente”, afirma.
Segundo Dimitri Sales, presidente do Condepe, tanto o órgão que ele preside quanto a Ouvidoria prestam funções relevantes para a sociedade. “A Ouvidoria foi criada para aprimorar a política de segurança e fazer com que as denúncias cheguem até a cúpula da área. O Condepe não pode ser extinto por projeto de lei”, afirma.
Sobre a possibilidade de extinção da Ouvidoria, Sales afirma que “só irresponsáveis, sem compromisso com a defesa da democracia e dignidade da pessoa humana apoiam uma iniciativa dessa”. “Qualquer proposta nessa linha demonstra desconhecimento das normas jurídicas e assume um compromisso com a violência”.
Bancada da bala erra: mortes pela PM estão em alta
Os dados mostram um cenário oposto ao pintado pelos parlamentares autores da proposta de extinção da Ouvidoria das polícias. As mortes cometidas pela PM vêm crescendo desde antes da pandemia de coronavírus: no primeiro trimestre, o governo de João Doria registrou o maior número de vítimas desde o início do levantamento pela Secretaria da Segurança Pública, feito a partir de 1996, com 255 mortes.
Com a pandemia e o isolamento social, os números não caíram. Ao contrário: a PM se tornou responsável por uma a cada três mortes no estado de março até maio, período de menor movimentação das pessoas. Foram 262 crimes, 17% a mais do que no mesmo período de 2019. Em abril, houve um recorde histórico: uma morte a cada seis horas. Maio de 2006 tinha sido a última vez que a PM matou mais de 100 pessoas em um mês.
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O levantamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo surge no mesmo ano em que a Ouvidoria nasce. Para o atual ouvidor, o advogado Elizeu Soares Lopes, a proposta de extinção é uma tentativa de intimidação e não dialoga com o atual momento em que vivemos.
“É um negócio inusitado apresentar um projeto desse enquanto a sociedade clama por maior transparência e controle do trabalho policial. Um projeto que vai na contramão do que espera a sociedade”, define, assegurando que seu trabalho não será interferido por esta intimidação. Cita como argumento os recentes casos de violência policia, como abordagens usando técnicas de sufocamento, aludindo ao episódio de George Floyd, nos EUA. A mais recente delas foi o caso de Jefferson André da Silva, entregador que denunciou tortura de PMs.
“O poder de ter uma arma, decidir sobre a vida de um ser humano, é uma atividade que requer um mecanismo de controle. Vamos continuar firmes atuando, dentro da legalidade, na missão de contribuir para um controle da atividade policial”, diz.
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O ex-ouvidor Benedito Mariano considera um perigo caso o projeto seja aprovado e a Ouvidoria acabe. “Vejo com perplexidade, como via no ano passado. O objetivo é coibir, acabar com órgão de controle social no ano que a letalidade mais cresceu”, afirma.
Oposição aponta para inconstitucionalidade
Para a deputada Beth Sahão (PT), presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Alesp, o projeto é “totalmente inconstitucional”. “O Doria está perdendo o controle da polícia, se aprovar [esse projeto]… As pessoas estão indignadas com o aumento da violência policial”, diz.
Segundo o relator do projeto, o deputado Emídio de Souza (PT), o texto é de fato inconstitucional por ferir uma atribuição que seria do poder Executivo, ou seja, de João Doria, e não do Legislativo, dos deputados da Alesp. Usa como base o artigo 144 da Constituição, sobre responsabilidades da segurança pública.
Em sua decisão, incluiu parecer do professor Fábio Konder Comparato, da Universidade de São Paulo. Nele, o professor aponta que há “usurpação de competência legislativa” e defendeu a existência da Ouvidoria.
“É da mais clara evidência, por conseguinte, que a tentativa de extinção da Ouvidoria da Polícia representa uma grosseira violação do princípio constitucional da segurança pública, e como tal deve ser declarada pelo Poder Judiciário”.
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