Familiares de pessoas mortas pela polícia brasileira denunciam falta de responsabilização, reparação e racismo institucional: “estamos morrendo e nada acontece”, diz ativista
“Há poucos dias, nós vimos uma abordagem em que um homem branco desferiu dois tiros contra dois policiais federais e, por incrível que pareça, a polícia não matou ninguém da família dele, não matou ninguém do bairro dele. Aqui, por muito menos disso, a gente sabe o que ia acontecer”. Essa fala expôs a indignação de Rute Fiúza, coordenadora do movimento Mães de Maio no Nordeste, durante uma audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), para discutir os impactos da violência policial sobre a população negra brasileira.
Rute se referia à operação da Polícia Federal para prender o ex-deputado Roberto Jefferson, que atirou 50 vezes e disparou granadas contra policiais federais, no domingo (23), e que terminou com um policial rindo e se colocando à disposição do atirador pouco antes de sua prisão.
No evento, feito de forma remota nesta quarta-feira (26), diversas representantes de movimentos de familiares de pessoas mortas pelas polícias brasileiras reivindicaram a presença de representantes da Comissão no país. “Nós precisamos de uma audiência física das mães aqui no Brasil com a CIDH para que a gente possa expor e colocar os inquéritos, para que vocês saibam o que está acontecendo, porque aqui se tornou um local de matança para a população jovem, negra e periférica”, declarou Rute.
Um dia depois da prisão de Roberto Jefferson, completaram-se oito anos do desaparecimento forçado de Davi Fiuza, filho de Rute, em Salvador (BA), aos 16 anos, após uma abordagem policial. O julgamento dos PMs envolvidos — por sequestro e cárcere privado, e não homicídio — ainda não aconteceu.
A postura do Ministério Público, que constitucionalmente é responsável pelo controle externo das polícias, também foi criticada. Na audiência, não havia nenhum representante do órgão. “No Jacarezinho, nós tivemos 27 mortos, não tivemos perícia, não tivemos direito nem de enterrar nossos filhos com dignidade, porque fomos obrigadas a dar depoimento com nossos filhos mortos no IML. Muitas de nós, no Dia das Mães, estávamos dentro de um cemitério, e ainda assim nós tivemos 26 arquivamentos e só um deles [dos casos] que seguiu”, disse, muito abalada, Sandra Gomes, mãe de Matheus Gomes, uma das 27 vítimas civis da Chacina do Jacarezinho, que completou um ano em maio deste ano. A pedido do Ministério Público, o Judiciário arquivou inquéritos referentes a 23 mortes, incluindo o do filho de Sandra, que foi fotografado baleado e morto sentado em uma cadeira de plástico.
“A gente que é mãe somos condenadas a ser mortas-vivas”, lamenta Sandra. “Ficamos dependentes de remédios, o Estado não tem esse cuidado com a mãe, não tem cuidado com os filhos, com esses meninos, porque não é só a Chacina do Jacarezinho.”
Um dos principais clamores das mães presentes foi a criação de Núcleos de Atendimento a Familiares de vítimas da violência estatal sejam implementados para fornecer assistências psicossocial e jurídica. “Ao mesmo Estado que tira a vida dos nossos filhos, a gente pede o mínimo, a gente pede o fim da impunidade policial porque essa impunidade que alimenta e faz com que se possa entrar numa favela e matar nossos filhos, filhos esses que são colocados como corpos matáveis”, criticou, às lágrimas, Ana Paula Gomes de Oliveira, do Movimento Mães de Manguinhos. O filho dela, Jonathan Oliveira Lima, tinha 19 anos quando foi morto, em 2014. “A gente está morrendo e não acontece nada, a gente acaba tendo que reviver os casos, adoecendo e sofrendo novamente.”
Na audiência, representantes dos ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Família, Mulher e Direitos Humanos e das Relações Exteriores estiveram presentes, além do coronel Robson Cabanas Duque, que coordenou o projeto de implementação de câmeras nas fardas da PM de São Paulo. O policial mencionou os resultados da iniciativa no estado, com a redução da letalidade policial, e disse que a corporação conta com protocolos e currículos voltados aos direitos humanos.
Os porta-vozes do Estado brasileiro disseram se “compadecer” com as dores das famílias e destacaram que existe um Sistema Único de Saúde (SUS) para atenção básica, incluindo de saúde mental e uma política específica para a população negra. Também alegaram que houve redução dos homicídios, capacitação de agentes em direitos humanos e aperfeiçoamento da legislação sobre discriminação, além de o país ter ratificado a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância neste ano.
As mães rebateram dizendo que o que está escrito em normas não se reproduz na prática. “Os CAPS são sucateados, não tem remédio e, quanto tem remédio, não tem médico e, se tem médico não tem receita”, critica Edna Cavalcante, líder dos movimentos Mães do Curió e Mães da Periferia de Vítima Por Violência Policial do Estado do Ceará, que teve o filho Álef Cavalcante, 17, morto na Chacina do Curió (CE), em 2015. Em 2021, uma ação civil pública pediu e o tribunal cearense acatou para que o governo estadual forneça atendimento psicológico e psiquiátrico a sobreviventes e parentes de vítimas do massacre.
Fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, Débora Maria da Silva, concordou. “Será que a verdade é a dos protocolos que o coronel apresentou? Ela é colocada em prática? Porque nos nossos estudos, nós somos estudiosas da impunidade, somos estudiosas da criminalização que se faz a essa população”, declarou.
Comissários da CIDH presentes na audiência se impressionaram com as denúncias de que 84% das vítimas da violência policial são negras, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e fizeram questionamentos a respeito de como funciona o sistema de justiça para julgar agentes da segurança pública envolvidos em mortes. Perguntaram se existe algum tipo de condução investigativa ou punição diferenciada quando os crimes são motivados pela cor da pele e a respeito do papel do Ministério Público, já que as mães denunciaram que o órgão costuma arquivar os casos sem uma investigação mínima. Como os integrantes do governo brasileiro tinham que dividir as respostas em um intervalo de oito minutos e não conseguiram responder completamente as perguntas, a comissária Julissa Martilla pediu para que as respostas fossem formalizadas por escrito após o encontro.
O assistente na Divisão de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores, Matheus Moreira, disse que o Ministério Público será notificado para prestar informações posteriormente.
O que diz o Itamaraty
Procurado pela Ponte sobre a audiência e por não ter sido chamado um representante do Ministério Público, a assessoria respondeu:
Como tem informado no plano externo, o governo brasileiro está comprometido com a promoção e a proteção dos direitos dos afrodescendentes no país, assim como com o combate à violência. Para tanto, implementa diversas políticas públicas, por diferentes órgãos, que foram objeto da audiência, além de outras. Informações adicionais serão informadas oportunamente à CIDH.