Mulheres trans que amam mulheres: o Dia da Visibilidade Lésbica também é delas

    A advogada Márcia Rocha e a professora Leona Wolf contam sobre as suas trajetórias enquanto mulheres trans e lésbicas

    Márcia Rocha (à esq.) e Leona Wolf (à dir.) contam sobre suas vivências enquanto mulheres trans e lésbicas | Fotos: Reprodução / Rafael Sant’s

    Com transições de gênero tardias, a advogada Márcia Rocha, 45 anos, e a professora Leona Wolf, 38 anos, dividem muitas lutas. Mulheres trans, lésbicas, ativistas das lutas LGBTs, sobretudo da luta trans, elas sabem bem o quão foi difícil ser quem são.

    Ensinadas desde cedo que deveriam odiar suas existências, permaneceram no armário da cisgeneridade (condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento) até a terceira década de vida.

    Como poderiam ser mulheres trans e amar outras mulheres? Isso ia contra tudo o que se acreditava há pouco mais de 10 anos. “Eu fui a primeira pessoa a assumir publicamente e falar que identidade de gênero [como uma pessoa se sente em relação ao próprio gênero] era uma coisa e orientação sexual [relacionado com as diferentes formas de atração afetiva e sexual de cada um] era outra”, aponta Márcia.

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    O caminho até lá foi longo. Márcia teve muitas transições até se entender uma mulher trans e lésbica. A primeira aos 14 anos, mas essa foi interrompida por seu pai que “me descobriu e me fez ficar no armário. Ele nunca disse não seja, ele dizia não conte, o que fez uma diferença enorme”, conta em entrevista à Ponte.

    Em 2011 aceitou, de uma vez por todas, que era uma mulher trans e se assumiu assim na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em 2013, aos 39 anos. Foi a primeira advogada a usar o nome social na carteirinha da OAB, mudando de vez os rumos da advocacia no país.

    A advogada avalia que traçou o caminho certo: “Seria impossível ser quem eu sou hoje se eu não tivesse ficado escondida no armário. Fez uma diferença muito grande fazer a transição mais tarde porque eu tinha base econômica, financeira e teórica para explicar as coisas e ser respeitada”.

    Márcia Rocha foi a primeira pessoa trans a usar o nome social na carteirinha da OAB | Foto: Reprodução/Facebook

    Então, parou de usar roupas ditas masculinas. “Eu dei muitas roupas para o João, sempre vejo coisas antigas dele com camisas e sapatos meus”, brinca ao lembrar de João W. Nery, psicólogo e pioneiro na luta dos homens trans e pessoas transmasculinas.

    Márcia conta que sempre foi muito bem aceita no movimento lésbico e feminista. “Eu participava da Caminha Lésbica, fui da Marcha das Vadias, fui segurança da Marcha das Vadias duas vezes, participava das reuniões da Caminha Lésbica também”.

    Apesar de dizer que não parou para pensar em tudo o que fez e construiu até aqui, Márcia, que enxergou a questão do seu nome como algo pessoal até ver que esse direito seria estendido para todas as pessoas trans na OAB e seria impulsionador da decisão histórica do STF (Supremo Tribunal Federal) de autorizar a retificação de nome e gênero para pessoas trans nos cartórios, sem necessidade de laudo ou cirurgia, sabe que sua geração fez diferença.

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    “Criamos um ambiente mais favorável e as pessoas começaram a se assumir. Nós, eu, Laerte [Coutinho, cartunista], João Nery mudamos as coisas. Essa luta afetou também os movimentos negros, os movimentos de pessoas com deficiência. Eu sempre falo, se você contratar uma travesti tudo fica mais fácil. Se quiser diversidade, contrata uma pessoa trans, travesti ou não-binária. Existem outras possibilidades entre ser homem ou ser mulher”, afirma.

    Márcia Rocha (à esq.) ao lado de João W. Nery (meio) e Laerte Coutinho (à dir.) | Foto; Reprodução/Facebook

    Márcia conta que enfrentou muita resistência no movimento trans quando dizia que era lésbica. “No começo, eu já estava em transição, mas ainda usava terno e gravata, e frequentava um encontro de travestis e transexuais todas as terças. Um dia eu estava conversando com umas travestis e falei que gostava de mulher”.

    “Elas ficaram horrorizadas. ‘Você gosta de mulher? Então você não pode ser travesti’. Ai eu falei ‘gente, eu estou fazendo uma força desgraçada para enfrentar o mundo para ser quem eu sou e nem aqui eu sou aceita como eu sou?'”, lembra.

    Mas Márcia não desistiu do amor. Foi em um dos eventos pela OAB que Márcia conheceu a “tampa da sua panela”, a também advogada Ana Carolina Borges, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB em Bauru, interior de São Paulo.

    “Em 2015 me convidaram para fazer palestras pelo Brasil todo e me levaram para Bauru, onde a presidente da Comissão de Diversidade era uma mulher lésbica, mas ela namorava”, lembra.

    Márcia Rocha e Ana Carolina Borges, ambas advogadas, estão juntas desde 2015 | Foto: Reprodução/Facebook

    “A gente se conheceu, começou a rolar um clima e elas terminaram. Um tempo depois a gente se encontrou em Salvador em um congresso, começou a rolar e estamos juntas até hoje”, completa Márcia.

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    Além de dividirem a vida, Márcia e Ana Carolina fazem parte do Transempregos, projeto de empregabilidade para pessoas transgêneras, que possui atualmente o maior banco de dados de currículos e vagas deste segmento no Brasil, com mais de 500 empresas parceiras. O projeto foi criado em 2013 por Márcia, Laerte Coutinho, a consultora Maite Schneider e a psicanalista Letícia Lanz.

    Para Márcia, é pela educação que se muda o mundo. Ela conta que foi assim que as coisas se tornaram menos difíceis. “Tem gente que é estúpida e agressiva, mas a grande maioria fala as coisas por ignorância, se a gente conversar pode ter um jeito”.

    “Sou casada com a Carol, tenho minha filha, cuido da minha mãe como qualquer outra pessoa. Mas as pessoas têm dificuldade em entender, perguntam que é o homem do casal e eu digo que é a Carol, claro”, brinca.

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    Aliás, Márcia sabe que a sua missão nesse mundo é essa: causar mudanças. No começo da transição, ela percebeu que precisava estudar e se especializar no assunto para debater com erros em trabalhos acadêmicos de medicina e psicologia.

    “Eu cheguei a ver trabalhos médicos dizendo que mulheres trans eram gays exagerados. Eu comecei a perceber que eu tinha base teórica, que sempre leu e estudou muito, para argumentar. Eu precisava entrar nesse papel para mudar as coisas”.

    “Eu tive que abrir mão de muita coisa na vida, amigos, familiares. Eu sabia o preço que eu ia pagar e estava disposta a pagar. Eu vejo muito mudança de 20 anos para cá. Estamos indo na direção certa, é difícil, mas tem resistência”, conclui a advogada.

    Professora, trans e lésbica

    Para Leona Wolf, professora da rede pública de ensino na região metropolitana de São Paulo que dá aulas para alunos do ensino médio, a aceitação dentro do movimento lésbico nunca foi uma possibilidade. Leona também é integrante do Coletivo LGBT Prisma – Dandara dos Santos, que participou para a vitória das cotas para pessoas trans da UFABC (Universidade Federal do ABC), onde ela faz pós-graduação. Aliás, a falta de aceitação começou em sua trajetória com ela mesma.

    “Eu acabava reprimindo isso e falando que não fazia sentido, até eu perceber que eu não conseguia controlar isso quando eu estava sozinha. Mas eu achava que se eu falasse isso para alguém me mandariam para um hospício”, confessa em entrevista à Ponte.

    “Eu tive que primeiro saber que existiam pessoas trans lésbicas, tive que desconstruir uma ideia que ser uma pessoa trans era possuir uma disforia genital gigantesca. Quando eu quebrei esses dois eixos eu já estava passando da metade dos 30 anos”, explica. 

    Assim como Márcia Rocha, Leona teve uma transição de “idas e vindas”. “Aos 10 anos fui excluída das brincadeiras por ser uma pessoa perigosa. Essa questão pode estar associada em uma discordância de não ser um menino. Eu era lido como um menino gay, mas eu me atraia por meninas. Eu não tinha uma referência de pessoa trans, não conhecia um debate de transexualidade”.

    Apesar de não conseguir precisar quando sua transição de fato começou, Leona enxerga que o epicentro foi em 2016, aos 35 anos, quando se distanciou do “mundo masculino”. “Chega uma hora que eu tô pintando a unha junto com a minha mulher e ela me pergunta porque eu nunca tinha feito isso, aí me vem uma série de lembranças de proibições na infância”.

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    A transição veio depois do relacionamento com a também professora Melina Kurin, com quem Leona divide a vida desde 2015. Muita conversa e teorias fizeram parte da vida do casal antes de Leona nascer Leona. A professora avalia que o fato de a companheira ser bissexual facilitou o processo para ambas.

    “O mais duro é aguentar essa reação transfóbica, porque quem se relaciona sofre com você. Você não sofre a violência sozinha”, aponta. Ter Melina ao seu lado, diz com firmeza, tornou o caminho menos difícil.

    “Lembro da primeira vez que usei batom e fui para o centro da cidade. Aí ela me falou ‘a gente vai sair, aguenta o baque e levanta a cabeça’. Na hora que eu sai, no terminal de ônibus eu senti muito medo, aí ela falou para eu levantar a cabeça e eu fui”.

    As professoras Leona Wolf (à esq.) e Melina Kurin (à dir.) estão juntas desde 2005 | Foto: Amanda Laleska

    O apagamento das relações lésbicas, explica Leona, ganha mais força quando uma das mulheres é trans. “Uma mulher trans com uma mulher cis é deslegitimada, no sentido que ela não é homem suficiente para estar junto de uma mulher”.

    “Essa lógica vai criando deslegitimações e apagamentos. É você estar em algum lugar e um cara chegar dando em cima de você ou te assediando de uma maneira direta. Ou assediando a sua parceira. Isso é comum. A transfobia se junta com a lesbofobia, vai formando opressões muito particulares”, denuncia. 

    Essa hipersexualização dos corpos de mulheres trans, continua a explicação, fazem com que as pessoas tenham dificuldade de imaginar que mulheres trans podem e são lésbicas. “As pessoas leem as travestis ou as mulheres trans como homens gays. Uma mulher trans lésbica tem o seu corpo lido enquanto um homem bem gay que se veste de mulher para atrair os homens, para fazer programa e aí por diante”.

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    Dentro dos movimentos lésbicos e feministas, aponta a professora, as coisas também não são fáceis. “Existe muita transfobia dentro de coletivos lésbicos e em coletivos gays, que também não aceitam mulheres trans como lésbicas ou homens trans como gays por ligarem identidade à genitália”.

    Para Leona, os homens héteros e cisgêneros não têm vergonha de se dizerem transfóbicos, mas internamente no movimento LGBT+ a situação não funciona dessa forma. “O que não se quer nessa ideia é rejeitar uma pessoa trans porque ela é trans e ouvir que você está sendo transfóbico por conta disso”.

    “A transfobia nesses casos não é algo direto, pensado para excluir pessoas trans, mas sim estrutural, é pensar os corpos de maneira cisgênera, de maneira normativa. Para uma mulher cisgênera lésbica que só pensou a existência lésbica cisgênera, se cria uma identidade genital em torno dessa lesbianidade”, avalia. 

    Para Leona, a questão das genitálias exclui as mulheres trans desses espaços. “Se você é uma mulher trans e vê algum evento lésbico que fala ‘só vulva’, isso não está te convidando, já te exclui pelo nome. Mas você tem mulheres lésbicas e trans que entram nesses espaços e são vistas como armadilhas”.

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    Na escola, Leona não se apresenta como uma pessoa trans. “Eu transicionei já concursada, mas isso não significa que eu não tive problemas dentro da escola”.

    Antes mesmo da transição, precisou enfrentar uma diretora que ficou por um ano assediando moralmente para cortar o cabelo. “Eu me recusei, porque era algo que eu queria desde criança e nunca pude. Não aguentei e precisei mudei de escola para não ter que me relacionar com outra pessoa. Eles não te mandam embora, mas fazem da sua vida um inferno para você sair”, detalha.

    Nos últimos anos, avalia, ficou mais difícil ser LGBT+ e dar aulas. Além da reação dos pais, de achar que os professores LGBTs estariam induzindo os filhos a se tornarem LGBTs, passou a lidar com o tratamento diferenciado dos alunos depois da transição.

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    “Eu vou ter pai reclamando de mim, aluno me desrespeitando e sendo agressivo comigo. Vai chegar um momento que a secretaria me fecha na sala de arquivo, começa a berrar comigo que tipo de ideologia eu estava passando para os alunos por conta das minhas roupas”, detalha.

    Por isso, argumenta Leona, ela não pede a retificação do nome na escola e dá aulas com roupas neutras, “camiseta e calça jeans”. “Eu não entrei na questão funcional porque eu preciso ter uma direção que me dê apoio, se eu não tive eles não vão me tirar por ser trans, mas vão encontrar outros meios. Se você tiver passabilidade cis, que não é o meu caso, e um nome de acordo com a sua identidade de gênero você se apaga no meio cisgênero”.

    O isolamento social para Leona, diferente do que para professores cis, tem feito bem para sua saúde mental. “Sair na rua é me expor a uma agressão direta. Já pensei em desistir da escola mais de uma vez, mas eu sigo insistindo”.

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    Por outro lado, apesar das dificuldades, Leona percebe que é uma referência para alunos gays, alunas lésbicas e alunos trans. “Eu lembro dos primeiros alunos trans que eu tive. Uma aluna trans me disse que ia sair da escola porque não estava mais aguentando e saiu mesmo. Outra aluna trans só me contou que era trans no último dia de aula, porque ela esperou até o final do terceiro ano e iniciou um processo de transição depois”. 

    “Eu conheço uma aluna que sumiu da escola durante um ano e voltou já em transição, mas não aguentou ficar um ano. Pessoas trans aguentam a vivência da escola e quando encontram uma figura como professor e professora ou diretor e diretora isso dá um ânimo para a pessoa continuar”.

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