Embora nunca tenha sido “batizado” no PCC, Gilberto Aparecido dos Santos era importante fornecedor de drogas para facção e ‘companheiro leal’ de Marcola
Quando ainda estava preso, Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, talvez não imaginasse que se tornaria peça importante do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa paulista que expandiu seus tentáculos por estados do Brasil e do exterior.
E de fronteiras Fuminho demonstrou, com o passar do tempo, entender bem, já que se estabeleceu, ao longo de duas décadas brincando de gato e rato com a polícia, na Bolívia, onde tinha acesso à pasta base da cocaína. Teve passagens pelo menos pela Colômbia e também Paraguai.
Em local estratégico, se tornou, de acordo com autoridades brasileiras, um dos maiores fornecedores da droga para o PCC, como apontou a socióloga Camila Dias Nunes, professora da UFABC (Universidade Federal do ABC) Camila Nunes Dias, uma das principais pesquisadoras sobre PCC no Brasil, em texto publicado no Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em 12 de janeiro de 1999, Fuminho fugiria junto com Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, da extinta Casa de Detenção, o Carandiru, na cidade de São Paulo, cenário da maior massacre da história dos presídios, quando 111 detentos foram assassinados pelo Estado.
Quase duas décadas depois, seria ele um dos principais personagens da série de mortes no seio da maior facção do país, iniciada com os assassinatos de Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, em Aquiraz, região metropolitana de Fortaleza, no Ceará, em fevereiro de 2018.
Esse duplo assassinato, pontua Camila, “surpreendeu autoridades públicas, policiais, especialistas, jornalistas e até mesmo os próprios criminosos”. Não demorou muito para que o Grupo de Atuação e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPE apontasse para uma briga interna, como apontou reportagem publicada na Ponte por Josmar Jozino, autor de “Cobras e Lagartos: a verdadeira história do PCC”, um dia depois das mortes.
Qualquer tese de disputa entre PCC, Comando Vermelho (CV) e Família do Norte (FDN) que tinha como palco justamente alguns estados do Nordeste, como o próprio Ceará, estava descartada. “De resto, ninguém parecia saber o que realmente poderia ter acontecido”, explicou a autora de “Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, com Bruno Paes Manso.
As pistas começaram a ficar mais evidentes quando, no dia 22 de fevereiro de 2018, um bilhete foi encontrado na P2 de Presidente Venceslau, região oeste do estado de São Paulo, onde a cúpula do PCC estava presa, que indicava que Gegê e Paca tinham sido “decretados” (expressão para dizer que a pessoa será morta) porque estariam tocando negócios paralelos e desviando dinheiro da facção. Quem havia coordenado as execuções era Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro, “afilhado” de Marcola e sócio de Fuminho.
Uma ala do PCC discordou das execuções e exigia vingança, que veio no dia 22 de fevereiro, quando Cabelo Duro foi assassinado em frente ao hotel de luxo Blue Tree, no Tatuapé, zona leste da capital paulista.
Um dia antes da morte dele, José Adnaldo Moura, o Nado, foi sequestrado por integrantes dessa ala para revelar o paradeiro do amigo Cabelo Duro. Segundo o DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), Cabelo Duro teria sido executado por Cláudio Roberto Ferreira, o Galo, um velho amigo e antigo parceiro de crime de Nado. Mas, segundo apuração da Ponte, Galo foi atraído sem saber para o endereço de Cabelo Duro.
Quatro meses depois, Galo também foi assassinado com dezenas de tiros no Tatuapé. No DHPP, os rumores são de que Galo foi morto por um ex-PM que tinha ligações com o PCC. Esse ex-PM, Gilson Terra, acabou executado em março de 2019 na zona leste.
O DHPP investiga esses casos e não fornece nenhuma informação sobre o andamento das apurações dos crimes, que correm em segredo de Justiça.
Correr pelo certo
Em abril de 2018, Fuminho enviou um “salve” para a cúpula contando sua versão para os fatos que, àquela altura, como lembra Camila Dias Nunes, já havia gerado como consequência, um banho de sangue.
O bilhete dizia o seguinte: “Quando a ordem veio de W2 [Penitenciária onde estava presa a cúpula do PCC] ninguém discutiu apenas cumpriu pois esse é o procedimento pelo certo […] Eu tenho provas que recebi as ordens escrita e confirmada para fazer a situação do GG e do PAKA. Meu decreto [ordem para matar] tem que ser anulado, e se a ordem do GG e do Paka era errada ou falsa, o decreto tem que ser em cima de quem passou a ordem irmão. É esse o papo”.
“Ao que indicam as informações que se têm sobre o imbróglio que se formou [após o duplo assassinato], essa decisão [de matar Gegê e Paca] não seguiu o procedimento amplamente disseminado pelo PCC para garantir justiça, igualdade e ‘democracia’ nas suas decisões: o debate”, explica.
Leia também: Suspeito de matar Gegê e Paca tentou resgatar Marcola, aponta MP
Na análise, Camila também destaca um episódio de maio de 2017 que levanta dúvidas sobre os reais motivos da morte da dupla: o interesse em criar um canal autônomo do PCC no Porto de Santos para tráfico internacional para a Europa, rota já operada por Fuminho.
Na ocasião, Gegê e Paca teriam informado à facção que falavam em progresso dos negócios e que o esquema estava se consolidando. “É de se perguntar, afinal, quem seria mais diretamente prejudicado pela eventual consolidação do canal de exportação próprio do PCC”.
Segundo o Gaeco do MP de Presidente Prudente, responsável pelas investigações da liderança do PCC, apurou, antes das duas mortes Fuminho exportava cerca de uma tonelada de cocaína por mês para a Europa.
Fuminho nunca foi filiado à facção. Poderia ser, talvez, encarado como um Sancho Pança para o Dom Quixote do PCC, Marcola, apontado pelo Ministério Público Estadual como líder máximo da facção?
Não exatamente, já que no tudo ou nada do mundo do crime, é mais interessante basear as relações em acordos e “ganha-ganha”. E, com isso, começam os compromissos que devem ser honrados dos dois lados.
Sobre a relação da dupla, Camila Nunes Dias destaca que Fuminho era um “companheiro leal” do PCC, que “corria junto” e construiu um canal de fornecimento estável e rentável de cocaína.
Foi ele o responsável por planejar um ousado plano de resgate de Marcola que envolvia aeronaves, blindados e metralhadoras ponto 50. Descoberto no início do ano passado, o plano foi considerado a gota d’água para a transferência do líder do PCC e outros integrantes da cúpula para a Penitenciária Federal de Brasília, onde seguem presos até hoje.
“A filiação ao PCC, num processo que se denomina batismo e que transforma companheiros em irmãos, é essencial para conformar a forma através da qual a organizações se configura e se estrutura em termos de suas dinâmicas organizacionais. Contudo, isso não significa que as relações estabelecidas se encerrem no vínculo produzido através do batismo. Ao contrário. O vínculo através do batismo implica compromissos econômicos e profissionais que não necessariamente um empresário bem sucedido, como parece ser o caso de Fuminho, tem interesse em criar”, pondera.
Leia também: Após 2 anos, Polícia Civil de SP não esclareceu crimes que marcaram racha no PCC
Em março de 2013, escapou de ser capturado pela Polícia Federal depois de uma operação atrapalhada da Rota, a tropa mais letal da PM paulista. Um mês antes, a PF havia descoberto que Fuminho e sua quadrilha tinham montado bunkers para armazenamento de drogas em Juquitiba, Piracicaba e Anhembi. Mas antes que pudessem fazer uma operação para prender os traficantes, policiais da Rota invadiram o sítio em Juquitiba e não encontraram nada além de algumas centenas de cocaína, crack e armas.
No dia 17 de setembro de 2019, Fuminho pode ter estado em terras brasileiras. A Ponte teve acesso a uma procuração protocolada em Santos, no litoral paulista, (confira o documento aqui) constituindo o advogado Eduardo Dias Durante como seu defensor.
Sete meses depois, em 13 de abril deste ano, ele foi capturado em um hotel de luxo em Maputo, capital de Moçambique, quando, acima de qualquer suspeita para os hóspedes vizinhos, fumava um cigarro e tomava um ar, observando o movimento da rua.
Fuminho estaria expandindo os negócios da droga, já bem estabelecidos na América do Sul, em território africano. Apontado como o “dono de Heliópolis”, maior favela da capital paulista, ele chegou a ser considerado o traficante mais procurado do Brasil, já que ficou mais de duas décadas foragido.
A prisão foi resultado de uma operação ampla que contou com a participação do Itamaraty, da DEA – Drug Enforcement Administration, do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e do Departamento de Polícia de Moçambique.
Por causa do gesso no pé direito por conta de um dedo quebrado, Gilberto não ofereceu resistência e muito menos tentou correr ao receber voz de prisão. Com passaporte boliviano falso, ele foi extraditado no último dia 19 de abril em um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) e levado justamente para o Presídio de Catanduvas, no Paraná.
Com Fuminho ou sem ele, a cocaína continua
O sociólogo Gabriel Feltran, autor do livro “Irmãos” sobre a facção paulista e professor da Universidade Federal de São Carlos, afirma que a prisão de Fuminho impacta muito pouco a estrutura do PCC, já que, se Fuminho se tornou um importante fornecedor, certamente não era o único.
Na obra, Feltran cria uma analogia da facção com a forma organizacional da maçonaria e usa o termo “sociedade secreta” para explicar como se dão as dinâmicas nessa estrutura de crime bem sucedida: a saída de uma pessoa, por qualquer motivo, não acaba com o grupo. É apenas uma peça da engrenagem.
“Se um grande empresário brasileiro do setor automobilístico, maçom, é preso por qualquer motivo, o ramo de veículos no país vai quebrar? Não vai. A maçonaria, da qual o empresário faz parte, vai quebrar com sua prisão? Não vai. A mesma coisa acontece quando um grande empresário do tráfico de drogas ligado ao PCC, sendo ou não irmão, é preso”, compara.
O sociólogo explica que seria ingênuo acreditar que a prisão de Fuminho impactaria de maneira significativa o mercado do pó. “É um ramo muito diversificado, um mercado global, com operadores conectados. As empresas continuam funcionando quando o executivo é preso, talvez com alguma dificuldade por algum tempo. Assim é o mercado de drogas. A estrutura da facção, do PCC, não depende dela, nem do lucro de seus membros”, avalia.
Gabriel Feltran afirma que a lógica do estar “pelo certo” suplanta o fato de você ser batizado ou apenas um parceiro. “Ser ou não ser batizado é uma escolha de cada ladrão.”
A organização do PCC prevê políticas de regulação de mercado, segundo o pesquisador, fixando preço de varejo, por exemplo, e de produção de ordem urbana nas favelas e cadeias em que é hegemônico, promovendo uma disciplina, que é cobrada por um sistema de justiça extralegal, mas reconhecido pelos moradores.
“Quanto maior o traficante, maior sua rede de operadores, que seguirão trabalhando. A forma de combater a regulação ilegal dos mercados ilegais é formalizar essa regulação, não é prender traficantes. Temos prendido grandes e, sobretudo, pequenos traficantes há quatro décadas, e não tem faltado cocaína nas biqueiras”, avalia.